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Os sem-número de vidas silvestres impactadas pelas enchentes no RS
Reportagem Especial

Os sem-número de vidas silvestres impactadas pelas enchentes no RS

Primeiras vítimas da degradação do habitat nos Pampas, animais silvestres também se vêem arrastados e desolados pelas enchentes

Os sem-número de vidas silvestres impactadas pelas enchentes no RS

Primeiras vítimas da degradação do habitat nos Pampas, animais silvestres também se vêem arrastados e desolados pelas enchentes
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Os servidores do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) acompanhavam diariamente os alertas do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Pelo menos desde o dia 14 de abril, os avisos sobre fortes chuvas preenchiam o portal do instituto. No dia 20 de abril, o alerta laranja passou para vermelho, quando ao menos 22 municípios já relatavam danos à Defesa Civil. Na sexta-feira, 3 de maio, os servidores se viram na obrigação de evacuar os animais.

Cerca de 120 animais foram evacuados no Cetas em Porto Alegre, antes do prédio ser inundado(Foto: Ibama)
Foto: Ibama Cerca de 120 animais foram evacuados no Cetas em Porto Alegre, antes do prédio ser inundado

Entre pássaros, papagaios, marrecos, macacos-prego e tartarugas, foram cerca de 120 animais transferidos do Cetas para instituições parceiras: a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o empreendimento de turismo ecológico Quinta da Estância, no município de Viamão (RS). O esforço durou dois dias. No domingo, a água começou a entrar.

Ela avançou até os dois metros de altura, inundando completamente a enfermaria do centro, localizado no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Apesar dos servidores também terem retirado equipamentos eletrônicos, os mais pesados e caros, como as máquinas de raio-x, ficaram totalmente submersos. No segundo andar do prédio, livre da enchente, sobraram algumas medicações e equipamentos.

“O lugar acabou”, lamenta Paulo Wagner, chefe do Cetas de Porto Alegre, analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e médico veterinário, “mas nenhum animal sofreu algum dano nesse processo de evacuação”. Por enquanto, a equipe foi remanejada para o Jardim Botânico, onde continua recebendo animais dos resgates das enchentes. É aí que o cenário se mostra assustador.

De acordo com a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, até o dia 16 de maio foram resgatados 11.932 animais. O órgão atualiza os dados diariamente, às 9h, 12h e 18h. A maioria domésticos, como cães, gatos, cavalos, porcos, galinhas… Mas há também uma parcela de animais silvestres igualmente vítimas do desastre climático; alguns sequer entrarão nas contagens oficiais, pelo menos não por enquanto.

Pelas redes sociais, circulam as imagens de corpos de porcos pendurados no alto de árvores, peixes aos montes nas avenidas, jacarés nadando pelas ruas de Porto Alegre… No perfil do Instagram do Ibama, um vídeo (abaixo) mostra um gato-do-mato-do-sul (Leopardus guttulus) machucado, quietinho dentro de uma caixa transportadora. Ele foi resgatado e encaminhado para a UFRGS, onde recebe atendimento médico veterinário.

 

 

“Os felinos silvestres são muito afetados porque eles estão muito adaptados aos campos de arroz”, explica Paulo, “e estávamos em plena colheita”. O gato-do-mato-do-sul está em perigo de extinção, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Biologia (ICMBio), especialmente pelo desmatamento e pela perda e fragmentação de habitats.

Assim como mais de 2 milhões de gaúchos foram afetados e perderam casas, escolas, creches e espaços de lazer, os animais também perderam lares, tocas e famílias. Tejus, por exemplo, tiveram as tocas inundadas. Cobras provavelmente foram arrastadas. Os silvestres moradores da zona urbana, como os gambás, sofrem os impactos da desestruturação do habitat.

 

 

“Com certeza, mesmo as aves menores de beira de rio também sofreram com a inundação. Esses bichinhos que ficam na beira da água têm uma uma linha de vida bem estabelecida, e o lago não tem maré”, comenta o chefe do Cetas. “O interior (deve estar ruim), mas eu não consegui ir ainda porque nós estamos isolados. A enchente vai deslocando o animal e a destruição.

Para ter uma ideia geral do impacto da enchente na fauna silvestre, é preciso esperar a água baixar. Enquanto isso, o Ibama apoia o resgate de cães e gatos — e qualquer outro ser vivo.

“Eu já fui recolher uma coisa e sair com senhora que estava desalojada, os cachorros, papagaio, passarinho, gato… Literalmente tudo no mesmo lugar, porque o pessoal tinha uma casa na área alta e os vizinhos foram botando para lá”, descreve Paulo. “O pessoal criava frango em casa, tava uns frango ali morrendo de sede. Eu carreguei de tudo, tudo mesmo.”

 

Grupos de animais vulneráveis às enchentes


“Geralmente, é difícil obter estimativas precisas do impacto nas populações de animais após desastres naturais, como enchentes, devido à complexidade e à extensão das áreas afetadas, bem como à dificuldade de monitoramento de todas as espécies afetadas. Mas podemos estar olhando para a extinção de 90% das espécies silvestres nesse evento extremo”, diz a doutora Patricia Eichler-Barker, bióloga oceanógrafa e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e no EcoLogic project em Santa Cruz na Califórnia.

A pesquisadora destaca a importância de relatórios e estudos que forneçam informações mais detalhadas sobre o número de animais afetados pelas enchentes para a análise dos impactos ambientais e para a orientação de medidas de conservação e recuperação de ecossistemas.

 

 

Árvores centenárias afogadas

Se as árvores da beira do rio estão adaptadas à quantidade de água recebida, o mesmo não pode ser dito para a flora da zona urbana. O rio avançou mais de dois quilômetros nas cidades, afogando árvores antigas, de mais de 50 anos de idade. “As raízes estão ficando todas podres”, relata Paulo Wagner, chefe do Cetas de Porto Alegre.

Além de elas mesmas serem vidas perdidas, o afogamento delas também influi na perda de habitat de diversos animais. É, ainda, um impacto cultural, já que Porto Alegre sempre se orgulhou e se dedicou com a arborização da cidade.

Em 2011, Porto Alegre chegou a ser a capital mais arborizada do Brasil. O título foi resultado de um plano de arborização centenário, iniciado ainda no século XIX, com o plantio de 180 espécies, maioria exóticas como o ligustro (Ligustrum lucidum), originário da Ásia. Os bairros mais antigos, por outro lado, ostentam espécies nativas como o jacarandá-mimoso (Jacaranda mimosifolia); em 2006, as plantas nativas representavam 47% das espécies plantadas na capital.

Desde 2017, a supressão de árvores na capital motivava artigos clamando pela revalorização da flora urbana. Agora, elas estão totalmente debaixo d’água.

 

 

“Vamos perder muito elemento arbóreo. Essas árvores antigas e urbanas, com as raízes podres, provavelmente vão cair”, diz Paulo. Ele conta que a equipe que guardava o carro durante um resgate de um animal quase sofreu um acidente pela queda de uma árvore de quase 1,5 metro de grossura.

“A gente nunca pode deixar o carro sozinho. O carro estava dentro da água, mas a nossa camionete aguenta, ela tava quase pela metade na água e estava tranquilo, mas o pessoal resolveu recuar um pouco porque a água tava alta”, descreve. “Recuaram com camionete e não deu cinco minutos a árvore de quase 1,5 m de grossura desabou exatamente onde estava o carro.”

 

 

Pampas já eram vulneráveis

De acordo com a bióloga Patricia Eichler, os pampas gaúchos sofrem com o avanço da pecuária desde o século XVII. A partir do século XX, em 1985, até 2021, o bioma perdeu 3,4 milhões de hectares para a agricultura e a silvicultura. “A fauna já era degradada por causa do agronegócio”, estabelece Patricia. “Os pampas foram dizimados.”

A bióloga ressalta como a tragédia no Rio Grande do Sul é consequência não apenas da crise climática, mas também do desmonte de políticas ambientais, impulsionado pelo governo de Jair Bolsonaro.

O descaso político e a ausência de políticas públicas de mitigação e de adaptação culminaram no desastre anunciado no Sul. Com a ebulição global, o cenário só tende a piorar, já que o oceano está aquecendo mais rápido que a atmosfera terrestre. “O aquecimento dos oceanos desempenha papel significativo no aumento da ocorrência e intensidade de eventos climáticos extremos, como enchentes extremas”, afirma.

 

Como o aquecimento do Oceano influencia a enchente no Sul


O resultado está aí. Dois milhões de gaúchos transformados em refugiados climáticos dentro do próprio País e incontáveis espécies de fauna e flora arrastados, mortos e vulnerabilizados de uma vez só.

Assim como a reconstrução das cidades do Rio Grande do Sul, a recuperação da vida silvestre gaúcha será um desafio. Estudos de impacto ainda devem indicar a dimensão da perda de biodiversidade e o grau de complexidade para recuperar, conservar e preservar o que restou dos pampas.

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