Imagine o estádio Presidente Vargas, quase no coração do Benfica, abarrotado de animais. É uma barulheira medonha, entre rugidos, gritos, sibilos e muitos, muitos piados de aves. Você está bem no centro do campo, olhando a bicharada: são pássaros engaiolados, onças feridas, macacos com dentes arrancados. São também lagartos, cobras e outros répteis e bichos que talvez você não saiba dizer o nome. Às patas de todos, incontáveis espécies mortas.
O PV do dia-a-dia tem capacidade para receber até 20.600 humanos, mas a arena imaginada representa os 30.565 animais silvestres traficados no Ceará entre 2015 e 2022 e recebidos pelo Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetras/Ibama) de Fortaleza.
O número é apenas um recorte da dimensão que é o tráfico ilegal no Estado, já que representa apenas os que foram levados ao Cetras — órgão gerenciado pelo Ibama responsável por receber e reabilitar animais silvestres. O dado não dá conta dos que morreram na rota do tráfico e nunca foram contabilizados pela polícia ambiental, ou dos produtos oriundos de animais silvestres (por exemplo, peles, escamas e dentes).
Já quando o assunto é apreensão de animais, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS) dá conta de 21.929 animais resgatados pelo Batalhão de Polícia Militar Ambiental (BPMA) entre 2018 e 2022. Já a Polícia Civil (PC-CE) contabiliza as ocorrências com animais apreendidos: 2.463. Cerca de 80% dos animais recebidos pelo Cetras vêm de apreensões policiais.
O problema é que os dados da SSPDS incluem animais silvestres e domésticos sem distinção, o que dificulta ainda mais a análise do cenário de tráfico no Estado.
Não é só no Ceará que os dados de tráfico de animais silvestres pincelam apenas um recorte limitado. O relatório O tráfico ilegal de animais silvestres no Brasil, publicado em 2020 pela ONG Traffic, aponta a falta de dados como uma das inibidoras de políticas públicas mais efetivas no combate aos crimes ambientais.
“A falta de dados faz com que as ações de fiscalização e combate sejam despriorizadas, resultando em menos dados a serem coletados. É um ciclo vicioso que tem impactos graves e duradouros nos esforços locais de conservação, na economia e no Estado de Direito ", disse a autora do relatório Juliana M. Ferreira, em nota.
Em geral, falta integração e atualização nas bases de dados do Ibama e outros órgãos ambientais. “Não existe uma lista consolidada dos Cetas, Cras e outros centros de triagem e reabilitação de fauna silvestre do Brasil, nem tampouco um banco de dados integrado com informações sobre os animais e espécies recebidos por apreensões ou doações”, destaca o relatório.
Mas os dados de apreensão da BPMA e do recebimento do Cetras dão as pistas para um fenômeno preocupante. Após um boom de animais resgatados em 2018, os números vão caindo progressivamente. A razão está bem longe do enfraquecimento do tráfico; pelo contrário, é culpa do fortalecimento dele.
Em 2018, o Cetras Ceará, com unidade única em Fortaleza, recebeu quase 11 mil animais para triagem e reabilitação, quando a capacidade normal é de 2,5 mil/ano. A demanda, portanto, foi quatro vezes maior do que o órgão dava conta. A partir daí, foi necessária uma restrição técnica, impedindo o recebimento de novos animais a partir de 2019.
Se o Cetras não recebe, os órgãos de policiamento ambiental ficam limitados na destinação dos animais. A consequência é mais dificuldade logística para o resgate. Em nota enviada ao O POVO, o
"
Percebendo essa dificuldade no Estado, surgiu o Instituto Pró-Silvestre (IPS), uma organização do terceiro setor focada no combate ao tráfico. Ela foi reconhecida como uma entidade parceira da Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (Sema) e do Ibama/CE.
Para eles, são encaminhados animais silvestres que precisam de reabilitação e tratamento veterinário. Desde a fundação, em 2021, o IPS recebeu mais de 2 mil animais, com média de 250 a 300 por mês.
“É porque não é só o tráfico. É maus-tratos, é associação criminosa”, explica Karine Montenegro, diretora do IPS e advogada animalista. Ela relembra o caso de uma apreensão de 52 filhotes de papagaio-verdadeiro: estavam infestados de piolho e verminose. A única sorte deles foi ter sobrevivido, já que especula-se que a cada 10 animais capturados, nove morrem.
No Ceará, assim como em todo o Brasil, as aves são as principais vítimas. De acordo com Karine, é mais fácil alojar e manter aves, por serem pequenas e por geralmente comerem alpiste e frutas, além de serem muito mais procuradas pelo canto. “Elas trazem um prazer imediato (para o comprador)”, reflete.
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De 2015 a 2022, o Cetras-CE recebeu 26.779 aves, correspondendo a 87,6% dos acolhimentos. Não há descrições de espécies. A taxa confere com o valor geral brasileiro: 81% de todos os animais recebidos pelos Cetas são aves, na sua maioria passeriformes (as aves canoras).
No Estado, 63 aves constam na lista vermelha de fauna ameaçada de extinção. As principais causas são a perda de habitat e o tráfico.
Depois das aves, répteis configuram o segundo grupo mais ameaçado, seguido dos mamíferos. No Ceará, são 11 espécies de répteis e 30 mamíferos terrestres com algum grau de vulnerabilidade à extinção.
A advogada animalista e diretora do IPS, Karine Montenegro, classifica como "vital" uma atualização da lei de crimes ambientais para o crime de tráfico de animais ser punível com prisão. Isso porque, atualmente, "só" o crime de tráfico implica multa e detenção. É comum que criminosos sejam detidos por um dia, paguem a multa e depois reincidam.
"Vale a pena para eles, compensa pagar a multa. Porque eles lucram muito mais", explica. Aqueles realmente presos são resultado do esforço de delegados em relacionar o crime de tráfico com os de maus-tratos, associação criminosa e porte ou tráfico de armas. Ela também defende que a recepção de animais silvestres seja equiparado ao crime de tráfico.
Vários projetos de lei (PL) já foram apresentados no intuito de aumentar a penalidade a crimes de tráfico. Em 2003, o PL 347/2003 foi proposto pela
Outra questão é a rota do tráfico. Segundo o relatório da Traffic, o Nordeste (Bahia, Pernambuco, Paraíba, Piauí e Ceará), a região amazônica do Norte e todo o Centro-Oeste são as principais fontes de captura de animais silvestres.
Os principais capturadores são famílias em vulnerabilidade social e baixa renda, enquanto os locais de captura apresentam cobertura vegetal bem preservada e a existência de áreas protegidas. “(Isso) demonstra a importância tanto de programas de inclusão social quanto de fiscalização nessas áreas”, analisa o documento.
Já a região de destino desses animais é o Sudeste (menos o Espírito Santo) e o Rio Grande do Sul. Por outro lado, existe uma tendência de animais estarem sendo traficados em direção ao norte, saindo do Sudeste para o Nordeste.
O transporte desses animais ocorre por terra, em rodovias, mas principalmente pelos aeroportos. Eles são transportados via aérea, seja contrabandeados, seja utilizando documentos e autorizações falsas. “Os principais aeroportos brasileiros para o tráfico internacional de animais silvestres são os de São Paulo (Guarulhos), Manaus, Belém, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Fortaleza.”
No Nordeste, o esquema funciona assim: os animais capturados são repassados para pequenos traficantes, com ajuda das redes sociais para combinar a entrega. Depois, pequenas levas de animais são repassadas para traficantes de médio porte, até que os de grande porte providenciem os transportes de longa distância para levar os bichos para o sudeste ou para o exterior.
É então que a venda começa de verdade, em feiras, em pet shops e também online. O WhatsApp e outros aplicativos de mensagem são muito usados para encomendar animais silvestres específicos ou combinar a entrega deles em estações movimentadas de metrô.
Na reportagem sobre o estímulo do compartilhamento de memes ao tráfico de animais silvestres, O POVO+ também apresentou a rota estadual, com base em uma pesquisa da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas).
Vale destacar que essas informações precisam ser atualizadas por órgãos de fiscalização e pesquisa, como sugere o documento da ONG Traffic, destacando a importância do mapeamento de “ações, capacidades e problemas de fiscalização em portos, aeroportos, estradas, áreas de fronteira, mercados, áreas urbanas, áreas protegidas e seus entornos”.
Reprodução do mapa "Principais rotas terrestres utilizadas para o tráfico de animais silvestres Brasil - Região Nordeste", da Renctas. Os círculos em preto são pontos de compra e venda. Os círculos em vermelho, de captura; enquanto os em laranja são pontos de captura e compra e venda.
Ibama Linha-Verde: 0800 061 8080 (De segunda à sexta, das 7h às 19h)
Disque Natureza: 0800 275 2233
Disque Denúncia: 181
Foto: Carmem A. Busko/Wikicommons
Polícia Ambiental e Agefis: 190 e 156
Cetras Ceará: (85) 3474-0001 | Rua Wilson Pereira, 351 - Guajeru
Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA): (85) 9 8439-9110
Foto: Tiago Falótico/Wikicommons
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