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Aratanha, o santuário vazio à procura de habitantes
Reportagem Especial

Aratanha, o santuário vazio à procura de habitantes

Sofrendo da síndrome da floresta vazia, a Serra da Aratanha é um dos exemplos mais drásticos do que boa parte das florestas cearenses (e brasileiras) têm sofrido, acionando sinal de alerta para a sobrevivência em médio e longo prazo da serra e os impactos dela na sobrevivência do Ceará à crise climática

Aratanha, o santuário vazio à procura de habitantes

Sofrendo da síndrome da floresta vazia, a Serra da Aratanha é um dos exemplos mais drásticos do que boa parte das florestas cearenses (e brasileiras) têm sofrido, acionando sinal de alerta para a sobrevivência em médio e longo prazo da serra e os impactos dela na sobrevivência do Ceará à crise climática
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► Os passos dos humanos amassam folhas e quebram galhos. Afastando as plantas com as mãos ou agachando-se para desviar delas, caminhamos minutos a fio ao som das cigarras. E só. Nada de galhos quebrados ao longe com os passos de mamíferos, nenhuma cobra fugindo da trilha, nem lagartinhos balançando cabeças atentas. Não vimos ou ouvimos macacos pulando de lá para cá, nem ensurdecemos com incontáveis cantos de pássaros. A Serra da Aratanha silencia em socorro.

Apesar da diversidade de flora, recheada de bromélias, orquídeas e helicônias, a serra sofre com a ausência de fauna. Essa condição é chamada de síndrome da floresta vazia, com dois sintomas principais: o silêncio e o apodrecimento de frutos no chão. Os seres humanos são os responsáveis pela síndrome, já que a defaunação ocorre pela degradação do habitat e pela caça e tráfico de espécies.

 

 

Neste santuário silencioso, há diversidade, espaço, comida e abrigo para todos, mas as frutas apodrecem no chão porque não há quem as coma. A energia desprendida pelas plantas para criar uma proteção polposa em torno de sementes, a fim de atrair os bichinhos e eles dispersarem futuras árvores, é perdida. No universo sem pássaros, mamíferos, répteis e anfíbios, sobram larvas e insetos. As cigarras gritam, sem predadores ocupados em comê-las.

Caso ela continue assim, é provável que o ecossistema entre em colapso e diversas espécies de flora desapareçam pela ausência de dispersores. “Os trópicos são o que são em termos de recursos graças à variabilidade e à riqueza de espécies. Mexer nesse componente importante de um ecossistema pode o abalar ao nível que não volte a se equilibrar”, explica o biólogo Fábio Nunes, gerente do projeto Periquito Cara-Suja na organização não governamental (ONG) Aquasis.

Desde 2022, a Aquasis está reintroduzindo o periquito cara-suja (Pyrrhura griseipectus) na Aratanha como um primeiro passo de recuperação da fauna serrana. Transportados do Baturité até a Aratanha, já foram soltos 34 caras-sujas após climatização em recinto construído pela organização no sítio Espírito Santo, propriedade privada no topo da serra. Apesar de a maioria dos periquitos introduzidos serem de vida livre, também houve a liberação de caras-sujas apreendidos em operações policiais. Atualmente, três aves seguem no recinto, todas resgatadas do tráfico de animais silvestres.

Os periquitos cara-suja, além de exclusivos da região nordeste e ameaçados de extinção, são ótimos dispersores de sementes. No entanto, somente eles não conseguem resgatar a Aratanha. O objetivo da Aquasis, diz Fábio, será introduzir mais oito pássaros na região, além de mamíferos como a cutia. Quando e como depende de vários fatores, especialmente aprovação de projetos de reintrodução e captação de recursos para tal.

 

 

O projeto se inspira no sucesso de refaunação do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. Desde 2009, o parque tem reintroduzido cutias (Dasyprocta leporina) e bugios (Alouatta guariba), recuperando aos poucos os complexos e intrincados processos ecológicos florestais. Existem as chamadas espécies-chaves que ao serem retiradas ou adicionadas em um ambiente são capazes de transformar a cadeia de correlações do local.

Fábio Matos

“O impacto da ausência de dispersores de semestres ainda é muito subestimado.” - Fábio Nunes, biólogo

“A ausência de uma onça, por exemplo, empobrece o ecossistema e a riqueza de espécies, porque ela controla alguns predadores que, em descontrole, podem extinguir outras espécies”, exemplifica o biólogo. “Existem escalas, componentes que se forem alterados até um certo nível tendem ao empobrecimento.” Ademais, há consequências imprevistas mesmo pela Ciência, que não necessariamente conhece todas as espécies de um habitat e todas as relações delas.

Outra boa amostra da influência das espécies é o caso da reintrodução de lobos nos Estados Unidos, responsáveis por mudar o curso dos rios no Parque Nacional de Yellowstone. “Os lobos passaram a caçar os cervídeos que se alimentavam na margem do rio. E aí, para se refugiarem, os cervídeos saíram de lá e começaram a crescer árvores na beira dos rios. Os rios começaram a mudar e a ficar mais profundos. Ou seja, tem toda uma dinâmica na qual uma espécie já faz a diferença”, diz.

 

 

Além da superexploração, da caça e do desmatamento, o impacto humano no clima também impulsiona mais florestas vazias, especialmente na Caatinga. Segundo um estudo brasileiro publicado em outubro de 2023 na revista científica Global Change Biology, 85% dos mamíferos perderão os habitats até 2060, e um quarto deles perderão totalmente os habitats adequados.

“Isso resultará em um decréscimo de riqueza de espécies em mais de 90% das assembleias de espécies”, ou seja, o conjunto de animais que vivem no mesmo local. Também significa dizer que a biodiversidade entre diferentes habitats vai diminuir, homogeneizando a fauna. Os mais afetados serão os pequenos mamíferos.

 

 

Florestas vazias, humanos vazios

A defaunação da Serra da Aratanha remonta ao período colonial. Ela foi uma das primeiras serras a serem ocupadas no Estado, cenário impulsionado pela inauguração da linha férrea em Pacatuba em 9 de janeiro de 1876, criada para escoar a produção ao porto de Fortaleza. “Dois anos depois da inauguração da estação em Pacatuba, os caras-suja começaram a aparecer na Europa”, relata Fábio.

Houve um desmonte ambiental sistematizado na Aratanha, e a única floresta remanescente foi um cinturão de mata preservada para proteger os humanos do vento de agosto. No Maciço de Baturité, mais tarde, o mesmo processo de exploração ambiental foi planejado. “Baturité é uma floresta degradada com muito bicho e a Aratanha é preservada sem bicho”, lamenta o biólogo.

O curso da vida fez os seres humanos perderem contato com a natureza e, consequentemente, esquecer o quão dependentes são dela. Não apenas turística ou economicamente, mas ambientalmente: as serras cearenses são importantes reservatórios de água.

“Do ponto de vista das mudanças climáticas, as serras são extremamente estratégicas. Aqui chove três vezes mais do que no sertão, então aqui acumula e dispersa a água para abastecimento humano”, descreve Fábio. No momento em que essas florestas entram em colapso, em qualquer cenário induzido pela ação humana, a recarga hídrica é prejudicada. No futuro, o semiárido cearense pode ficar totalmente árido, como já ocorre em Irauçuba, município assolado pela desertificação há décadas.

De qualquer maneira, não é preciso viajar até o sertão central para ver o colapso ambiental. Basta olhar para algumas comunidades no Maciço de Baturité que dependem do abastecimento de carros pipa. “Há 20 anos, isso era inimaginável na Serra de Baturité. A tendência não é melhorar, pelo que a gente está vendo das mudanças climáticas”, pontua.

Fábio Nunes

“As mudanças climáticas vão acentuar a pobreza, porque você vai ter menos alimento, menos produção e menos água” - Fábio Nunes, biólogo

De acordo com Fábio, praticamente todas as matas cearenses sofrem da síndrome da floresta vazia. A maioria foi “extirpada” dos mamíferos de grande porte, como onças, porcos do mato (ambas provavelmente extintas no Ceará) e veados (em perigo de extinção).

O desafio agora é repopular, tanto em diversidade, quanto em quantidade, as matas cearenses. No que tange às serras, a Aquasis já tem planos para a refaunação de outras regiões além da Aratanha.

Na noite da terça-feira, 23 de janeiro de 2024, chegaram ao Ceará um casal de adolescentes cara-suja para ajudar a repovoar outras serras estaduais. Eles vieram de Foz de Iguaçu (PR), filhotes de terceira geração de periquitos apreendidos do tráfico no Estado e encaminhados ao Parque das Aves. Os adolescentes ficarão no recinto de aclimatização da Aquasis em Aratanha até terem destino oficializado. Uma das possibilidades é a serra de Maranguape.

A experiência na Aratanha tem se mostrado exitosa. Durante a visita ao recinto da organização, o canto dos caras-suja preencheu o silêncio da floresta, e no chão várias sementes de helicônias indicaram o trabalho de dispersores em ação.

Além disso, os periquitos já estão confortáveis para explorar mais áreas da serra, como confirmaram alguns moradores à Fábio durante a subida. Seu Chiquinho, agricultor acompanhado de burrinhos carregando banana, e outros dois trabalhadores confirmaram a revoada de vários caras-sujas para a mata seca da Aratanha. Todos trabalham com a colheita de bananas, monocultura que ainda persiste na região.

 

 

Com um ano de soltura, os novos caras-sujas da Aratanha já reproduziram, estabeleceram territórios e garantiram comida sem necessidade de suplementação.

A distribuição da espécie em diferentes serras é também uma garantia de preservação dos caras-sujas. É perigoso deixar uma espécie ilhada em um só lugar, pois podem ocorrer desastres naturais ou sanitários dizimadores. No momento em que essas aves são “espalhadas” em outras regiões, faz-se um back-up genético. A Serra da Aratanha é ótimo ponto de partida, principalmente porque é mais úmida e mais resiliente que a de Baturité.

Periquito cara-suja recém-nascido ao lado de ovos de cara-suja, dentro da Caixa Ninho, recurso desenvolvido pela Aquasis para preservação da espécie(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Periquito cara-suja recém-nascido ao lado de ovos de cara-suja, dentro da Caixa Ninho, recurso desenvolvido pela Aquasis para preservação da espécie

O que a gente está tentando fazer é uma reparação histórica”, reforça Fábio. “Os nossos antepassados destruíram essa floresta, agora a gente tenta trazer algumas espécies de volta para uma reparação ecológica também, já que os bichos vão trazer benefícios para a floresta em si.”

Expediente

  • Texto Catalina Leite
  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Fotografias Samuel Setubal
  • Apoio e consultoria Fábio Nunes e Matheusz Stycz / Aquasis
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