Logo O POVO+
Os bastidores do caso do homem acusado de aliciar mães que abusavam sexualmente de seus filhos
Reportagem Especial

Os bastidores do caso do homem acusado de aliciar mães que abusavam sexualmente de seus filhos

| OPERAÇÃO ANÊMONA | O POVO teve acesso a documentos inéditos que detalham como atuaria Uel do Nascimento Vitoriano, acusado de instigar mulheres a violentarem seus próprios filhos e ainda compartilhar vídeos e fotos dos crimes na Deep Web

Os bastidores do caso do homem acusado de aliciar mães que abusavam sexualmente de seus filhos

| OPERAÇÃO ANÊMONA | O POVO teve acesso a documentos inéditos que detalham como atuaria Uel do Nascimento Vitoriano, acusado de instigar mulheres a violentarem seus próprios filhos e ainda compartilhar vídeos e fotos dos crimes na Deep Web
Tipo Notícia Por


 

“Especialista em conhecer e aliciar mulheres para que produzam material de abuso dos próprios filhos”. É assim que a Polícia Federal (PF) diz que se apresentava em fóruns da Dark Web "Joao1206" — ou melhor, Uel do Nascimento Vitoriano, de 32 anos, a pessoa por trás do nickname.

Uel foi preso em 24 de dezembro de 2022 no contexto da operação Psiqué Sombria, da PF, que investigava compartilhamento de material de abuso sexual infantojuvenil na internet.

O nome com o qual a ação policial foi batizada, “Psiqué Sombria”, faz alusão à profissão do acusado: Uel é bacharel em Psicologia. Ele não clinicava, mas, conforme o Ministério Público Federal (MPF), trabalhava "em instituições que desenvolvem o acompanhamento psicológico de crianças e adolescentes”. Ele integrava uma Organização Não Governamental (ONG) com foco em pessoas com deficiência.

Equipamentos eletrônicos apreendidos, em dezembro de 2022, na operação Psique Sombria(Foto: Divulgação Polícia Federal)
Foto: Divulgação Polícia Federal Equipamentos eletrônicos apreendidos, em dezembro de 2022, na operação Psique Sombria

A partir do material apreendido durante a Psiqué Sombria, a PF obteve elementos para deflagrar uma segunda operação, esta chamada de “Anêmona”. Desta vez, a referência eram a mães que abusavam sexualmente de seus próprios filhos, da mesma forma que a anêmona-do-mar, o animal marinho cuja característica é não cuidar de seus filhotes.

Em 31 de julho de 2023, os policiais federais caíram em campo para cumprir seis mandados de prisão, uma medida cautelar de afastamento do lar e seis mandados de busca e apreensão. As ordens judiciais eram em desfavor de seis mulheres residentes em Fortaleza, Maranguape (Região Metropolitana de Fortaleza), Juazeiro do Norte (Cariri Cearense) e Belford Roxo (RJ). À época das prisões, elas tinham idades que variavam dos 27 aos 54 anos.

Conforme divulgado à época pela PF, as mulheres seriam indiciadas por estupro de vulnerável, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, além de crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, cujas penas máximas somadas eram de até 45 anos de prisão.

Antes, em 27 de abril de 2023, uma mulher, moradora de Camaçari (BA), também havia sido presa preventivamente pelas mesmas suspeitas. Ela já havia sido alvo de um mandado de busca e apreensão em 8 de setembro de 2022, ocasião em que se constatou que ela mantinha contato com Uel por meio do aplicativo WhatsApp.

À época da deflagração da operação, a PF informou que os filhos das mulheres presas no Ceará foram atendidos pelos respectivos Conselhos Tutelares, que tratou de firmar termo de guarda para que pais, avós e outros familiares passassem a ser os responsáveis por essas crianças e adolescentes.

Material apreendido na casa do aliciador cearense, em dezembro de 2022, na operação Psique Sombria(Foto: Divulgação Polícia Federal)
Foto: Divulgação Polícia Federal Material apreendido na casa do aliciador cearense, em dezembro de 2022, na operação Psique Sombria

As vítimas dos abusos que foram identificadas tinham entre 1 e 9 anos, à época dos crimes, informou a PF. Eram cinco meninos e uma menina. Quando da divulgação dos resultados da operação, a delegada Luciana Mota, que coordenou a investigação, afirmou ter sido a primeira vez no Ceará que a PF identificou mães abusando sexualmente dos próprios filhos e compartilhando registros dos crimes na internet.

Todas essas investigações transcorreram em segredo de Justiça, mas O POVO teve acesso a documentos inéditos que permitem detalhar melhor as “atrocidades”, que é como o MPF classificou as práticas perpetradas por Uel e pelas mulheres contra as crianças.

Uel foi condenado, mas sua defesa recorre em segunda instância. Ele continua preso, assim como a maior parte das mães acusadas. Nas próximas linhas, O POVO relatará as condutas atribuídas aos suspeitos sem publicar os nomes das mães, a fim de se evitar que as crianças vítimas dos crimes sejam identificadas.

 

 

Joao1206 e as “pedomons”

De acordo com a PF, entre 2016 e 2022, Uel adquiriu e compartilhou vídeos de abuso sexual de crianças e adolescentes em fóruns e sites da Deep Web — onde não há indexação por sistemas de pesquisa comuns e é preciso utilizar programas específicos para o acesso.

A Polícia Federal afirma que é possível aferir que, durante esse período de cerca de seis anos, o acusado chegou a armazenar mais de 12 mil arquivos de pornografia infantojuvenil. Dentro desse catálogo, havia, até mesmo, conteúdo envolvendo animais e atos de tortura, descreveu a PF.

As mídias eram adquiridas e compartilhadas em sites em que já nos nomes se tinha uma mostra do conteúdo criminoso que viria a ser encontrado ali: “Amorzinho”, “Rindexxx”, “MagicKingdom”, “forbiddenFruit”, “ChildAPriori”, “PromisedLand”, “BabyHeart”, “ChildsPlay”, “HurtMeh”, “LoliLyst”, "Boystown”, “Hurt_2theCore” e “AnjosProhibidos”, eram alguns deles.

A PF passou a investigar Uel a partir de informações repassadas pelo National Center for Missing & Exploited Children (NCMEC), organização privada sem fins lucrativos dos Estados Unidos, e por autoridades australianas.

Imagens mostram policiais federais em operação(Foto: Agência Brasil)
Foto: Agência Brasil Imagens mostram policiais federais em operação

A partir do mapeamento dos hashs Código criado a partir de conjunto de dados singular, com um algoritmo criptográfico para garantir segurança  de arquivos digitais com práticas de abuso sexual, é feito um trabalho de mapeamento para identificar conteúdos criminosos novos que passaram a circular na internet, assim como para identificar os países de onde o material é proveniente. Em um trabalho que conta com a atuação da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), a respectiva autoridade nacional responsável é acionada.

No caso de Uel, não bastassem as mídias criminosas, a investigação também encontrou postagens feitas sob a alcunha Joao1206 com “lições” e “tutoriais” sobre como aliciar “pedomons”, isto é, mães pedófilas. As investigações apontaram que mães com filhos pequenos eram os principais alvos dele.

“Segundo a denúncia, em algumas das publicações, o usuário revela ter conhecimentos de psicologia e compartilha técnicas para convencer as mães de crianças a abusarem de seus filhos”, consta no trecho de uma decisão judicial a qual O POVO teve acesso.

Luciana Mota, titular da Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal no Ceará, que coordenou trabalhos da operação Anêmona(Foto: DIVULGAÇÃO POLÍCIA FEDERAL)
Foto: DIVULGAÇÃO POLÍCIA FEDERAL Luciana Mota, titular da Delegacia de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal no Ceará, que coordenou trabalhos da operação Anêmona

Conforme divulgado pela PF à época da deflagração da operação, Uel buscava potenciais “pedomons” em grupos voltados a conteúdo sexual criados em aplicativos como Telegram ou, então, em aplicativos de relacionamento como o Tinder. “A PF encontrou pelo menos 24 contatos de mães, mas muitas recusavam a prática criminosa”, informou O POVO em 31 de julho de 2023.

Conforme uma decisão judicial, Uel, a partir da abordagem feita com as mães, publicava nos fóruns da Dark Web as mídias com conteúdo criminoso que conseguia induzir as mulheres a produzir. Ele ainda tinha como hábito postar prints Print, ou print screen, é a captura de tela de um dispositivo eletrônico. Ou seja, no caso, é a reprodução em imagem de uma conversa feita no app  das conversas que mantinha com elas.

Uma das técnicas comumente utilizadas por abusadores sexuais de menores é apresentar a potenciais alvos material pornográfico. O objetivo é sondar as reações da outra parte e, a partir disso, prosseguir com o assédio. Conforme descrito pela PF, Uel dizia às mães que havia sido vítima de abusos sexuais na infância, “a fim de conquistar a simpatia” delas. A partir disso, ele passava a enviar fotos em que crianças aparecem sendo abusadas.

 

 

Com práticas como essa, ele obteve das mulheres diversos arquivos de abuso sexual infantojuvenil. Nou notebook dele, a PF localizou pastas com os nomes de dez mulheres. Sete delas foram identificadas e presas.

Em apenas um dos casos, a PF constatou indícios de que as mães comercializavam os registros da violência sexual mediante pagamento. Em 2019, uma mulher vendeu imagens a Uel por um valor aproximado de 50 reais. Em mensagens de texto e áudio, ela narrou ter praticado atos sexuais com crianças de 3 e 5 anos de idade e que repetiria os crimes, incluindo contra o seu filho, mediante dinheiro.

Ela ainda tirou duas fotos acariciando a genitália de uma criança não identificada, mas que a PF acredita ser “possivelmente” do filho dela de 10 anos. Ouvida pela PF, a acusada negou ter praticado qualquer ato libidinoso com o filho, afirmando que apenas repassou a Uel uma imagem que havia encontrado na internet. “Essas declarações, contudo, são contrariadas pelo teor do depoimento prestado por Uel do Nascimento”, destacou o MPF.

 

 

“Incrível como é fácil manipular uma mulher que gosta de vc”

Em todos os outros casos, porém, a investigação da PF não encontrou indícios de que os materiais criminosos eram vendidos pelas mulheres. Os abusos, pelo contrário, ocorreriam para satisfazer a libido delas.

Em uma das pastas encontradas no computador de Uel, que foi designada com o nome de uma das mulheres que viriam a ser presas, os investigadores encontraram dezenas de vídeos produzidos pela própria mãe. Três crianças apareciam sendo abusadas sexualmente nos registros, sendo que duas delas eram seus filhos. Conforme a PF, Uel compartilhou os arquivos no fórum MagicKingdom.

“Na publicação, datada de 17/07/2017, o acusado afirma ter conseguido manipular sua amiga a abusar de sua filha menor, adicionando ainda: ‘incrível como é fácil manipular uma mulher que gosta de vc’”, consta na denúncia do MPF.

“Já em um momento posterior (no período de 19/03/2018 a 14/08/2020), o acusado conseguiu manipular (a acusada) a gravar cerca de 54 vídeos contendo cenas de toques, carícias, abusos, sexo ou exposição de órgãos genitais com as crianças”.

A denúncia também faz menção a um áudio enviado pela ré em que esta afirmava aguardar por Uel para que os dois pudessem, presencialmente, abusar juntos de “seus objetos”. Ela também dizia desejar que Uel se sentisse cada vez mais feliz com o “progresso” dela no cometimento dos abusos, afirmou o MPF. O órgão ministerial também acrescentou que, ao menos, um dos vídeos foi produzido com a atuação simultânea, à distância, de Uel.

“Ademais, verifico que os vídeos e as fotos foram produzidos na residência da acusada e dos seus filhos menores, valendo-se da convivência familiar”, também afirmou na denúncia o MPF.

Sede da Polícia Federal em Fortaleza, Ceará(Foto: Thays Maria Salles)
Foto: Thays Maria Salles Sede da Polícia Federal em Fortaleza, Ceará

“Surpreendentemente, em diversas passagens, a investigada revela que sente prazer sexual, ao praticar atos libidinosos com os próprios filhos menores. E, como se não bastasse, a investigada espera que o menino cresça um pouco, a fim de que não somente possa ter maior desenvoltura sexual, como também para que seu pênis fique maior e possa lhe proporcionar mais prazer”.

Outra acusada presa morava no Crato, no Cariri Cearense, e teria praticado os crimes em janeiro e fevereiro de 2020. Conforme a denúncia do MPF, ela gravou um vídeo e fez uma videochamada acariciando a genitália de um bebê de aproximadamente 1 ano. A mulher era babá da criança.

A mesma acusada ainda tirou e compartilhou uma foto na qual indica estar se masturbando ao lado de seu filho. Esta foi a única suspeita presa na operação Anêmona que O POVO constatou ter ganhado o direito de aguardar o julgamento em liberdade.


 

Justiça afastou hipótese de insanidade mental de suspeito

A defesa de Uel recorreu à alegação de insanidade mental para afirmar que ele não poderia ser punido pelos abusos. Para os advogados dele, Thiago Batista e Jessica Souza, laudo elaborado por profissional forense indica que Uel não era capaz de entender o caráter ilícito de sua conduta.

Na interpretação do MPF e da Justiça Federal, porém, os laudos psiquiátricos não mostram os supostos prejuízos à compreensão da natureza criminosa dos abusos. A decisão prevaleceu tanto em primeira, quanto em segunda instância.

Procuradoria da República no Ceará(Foto: THAÍS MESQUITA 11/09/2022 )
Foto: THAÍS MESQUITA 11/09/2022 Procuradoria da República no Ceará

Uel tem paralisia cerebral atáxica, conforme comprovado por avaliação de especialistas. Questionado pelo MPF se o réu era “capaz de entender o caráter criminoso do fato”, o perito oficial respondeu que ele “não era capaz de entender que o fato representava crime, apenas que era repreensível pelas normas vigentes como se no máximo fosse punido por sua mãe chamando-lhe a atenção”. 

Dessa forma, a Justiça entendeu que a ação penal que Uel responde poderia sim prosseguir, uma vez que  ele “possui desenvolvimento mental completo” e que as condições diagnosticadas nele sequer eram doenças — a paralisia cerebral não é uma doença, mas conjunto de sintomas decorrentes de malformações cerebrais e/ou de danos a partes do cérebro.

“Não há dúvidas de que a conclusão pericial é a de que não há, no caso concreto, inimputabilidade, o que afasta, portanto, a isenção de pena prevista no art. 26 do Código Penal, não havendo a necessidade de novo exame pericial”, afirmou o desembargador federal Leonardo Resende Martins em acórdão publicado em fevereiro deste ano.

“É dizer que não se detectou nenhum transtorno suficientemente capaz de alterar a capacidade de julgamento do ora apelante, estando preservada a sua capacidade de discernimento, entendimento e determinação, sendo considerado, sob a ótica médico-legal psiquiátrica, imputável para o delito descrito na denúncia”.

Agente federal analisa documentos da operação Anêmona, deflagrada em 31 de julho de 2023
Agente federal analisa documentos da operação Anêmona, deflagrada em 31 de julho de 2023 Crédito: Divulgação Polícia Federal

De acordo com o advogado Thiago Batista, o material extraído do computador de Uel aponta que ele apenas compartilhou e não produziu material ilícito, o que era feito por terceiros. “A operação Anêmona é apenas um desdobramento da anterior e não traz fatos novos com relação a Uel, mas somente com relação a terceiras pessoas que tinham crianças sob os seus cuidados”, afirmou Batista. 

“Não foram ouvidas testemunhas nem houve a escuta especializada das supostas crianças envolvidas nos casos. E a prova produzida durante o processo revelou que Uel jamais tocou ou participou de qualquer ato na presença de crianças”, disse o advogado, que ainda acrescentou que não há certeza que Uel tinha 12 mil arquivos de pornografia infantil, uma vez que apenas uma parte do material foi considerada pelo MPF para a oferta da denúncia.

Já a defesa de uma das mães presas na operação Anêmona questionou a competência da Justiça Federal para julgar o feito, já que, conforme sustenta, a ré não sabia que o material que registrava os abusos era disponibilizado internacionalmente através da Deep Web.

No caso dela, pedido de habeas corpus chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que manteve o entendimento de que o caso competia ao juízo federal. A defesa da acusada também argumentava que a prisão era desnecessária, por se tratar de ré, entre outros argumentos, com bons antecedentes e que a pena que viria a ser imposta a ela, no máximo, levaria à prisão em regime semiaberto. O ministro Joel Ilan Paciornik também não acolheu os argumentos.

 

O que você achou desse conteúdo?