Esqueça as lutas corporais com espadas, lanças e escudos. Também apague da memória a imagem de soldados com rifles, movendo-se por entre trincheiras em campos de batalha. Com o avançar do tempo e das tecnologias, esse tipo de conflito se tornou cada vez mais matéria de livros, documentários, filmes e séries. O motivo não é o fim das desavenças humanas, mas sim uma profunda transformação na indústria da guerra, proporcionada por drones, robôs, inteligência artificial e uma infinidade de outras inovações.
Historicamente, tecnologias e guerras têm uma relação estreita e interdependente. Desde a utilização de ferramentas rústicas como paus e pedras, passando pela descoberta da pólvora, até a criação de armas de destruição em massa, percebe-se uma conexão intrínseca entre os conflitos bélicos e os avanços tecnológicos. Essa simbiose continua a evoluir.
Não é segredo que a indústria bélica desenvolve uma variedade de tecnologias para aplicar em armas e equipamentos, com o objetivo de diminuir a exposição de seus aliados e aumentar a eficiência letal contra inimigos. Nas redes sociais e em veículos de notícia, frequentemente surgem novos dispositivos que prometem ser protagonistas nos conflitos armados do futuro (cada vez mais próximo).
Embora estejam em lados distintos na geopolítica internacional, representando forças diametralmente opostas, Estados Unidos e China andam de mãos dadas no desenvolvimento de novos equipamentos para a guerra. Em 2024, vídeos que exibem duas tecnologias inovadoras para combates terrestres ganharam destaque na internet. Em ambos os países, robôs em formato de cachorro estão sendo criados para poder auxiliar forças armadas ao entrarem de áreas hostis.
Pelo lado chinês, um cão-robô foi exibido durante um exercício militar em parceria com o Camboja. Equipado com um rifle automático em suas costas, o "Golden Dragon 2024", como é chamado o cãozinho, é guiado à distância e capaz de se mover em todas as direções, além de pular e deitar.
Nos EUA, desde pelo menos 2020, a Força Aérea tem utilizado cães robóticos equipados com inteligência artificial e sistemas de análise de dados para detectar e combater ameaças. Essa tecnologia tem sido tão estudada e desenvolvida que já está sendo comercializada.
Anunciado pela empresa Throwflame, o "Thermonator" é um cão-robô similar ao modelo chinês, mas equipado com um lança-chamas. Operado via wi-fi ou bluetooth diretamente do celular, o dispositivo pode ser adquirido por qualquer pessoa por 9.420 dólares (cerca de R$ 51 mil). De acordo com a fabricante, o equipamento é destinado ao controle e prevenção de incêndios florestais, gestão agrícola, conservação ecológica, remoção de neve e gelo, ou entretenimento.
No Instagram, o cientista político Heni Ozi Cukier, conhecido como Professor HOC, compartilhou um vídeo do Thermonator, indagando seus seguidores: “Conseguem imaginar o potencial bélico que esse robô pode gerar?”. Ele comentou: “Parece 'O Exterminador do Futuro', mas é a realidade. Este é um robô quadrúpede, semelhante a um cachorro, equipado com um lança-chamas. Pode ser controlado à distância e tem a capacidade de evitar obstáculos. O assombro tecnológico deve chegar em breve aos campos de batalha”.
Vale lembrar que, em 1906, Alberto Santos Dumont apresentou o 14 Bis como uma verdadeira obra de arte que ajudaria as pessoas a se locomoverem pelo ar. Poucos anos depois, porém, o avião já era usado como uma máquina mortífera de guerra.
Ainda nos Estados Unidos, um caça F-16 experimental controlado por inteligência artificial fez história ao vencer um piloto humano em um teste de combate. De acordo com informações da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), a primeira tentativa de combate com esse caça ocorreu em setembro, e desde então, a IA passou a “aprender rapidamente”, sendo agora capaz de prever e contra-atacar os movimentos dos pilotos humanos. Para a Força Aérea americana, esta é a maior inovação da aviação militar das últimas décadas – uma tecnologia que ainda é exclusiva dos Estados Unidos.
Com manobras a mais de 880 quilômetros por hora, a aeronave promete proporcionar mais proteção às forças de aviação, pois o fato de não ser tripulada lhe permite entrar em espaço aéreo inimigo sem colocar em risco a vida de pilotos humanos. Oficialmente, os voos ainda são restritos a simuladores, mas, de acordo com o secretário da Força Aérea dos EUA, Frank Kendall, o que está em jogo não é apenas uma demonstração de habilidade, mas um vislumbre do futuro da aviação militar e possivelmente civil.
"Esse é um momento de transformação"
O uso de aviões habilitados por inteligência artificial ganhou força devido ao menor custo, maior segurança e capacidade estratégica. A Força Aérea da China também está desenvolvendo uma frota de armas voadoras não tripuladas, mas ainda não conseguiu realizar testes fora de um simulador (pelo menos oficialmente).
No conflito entre Rússia e Ucrânia, uma guerra particular tem sido travada no ar com o uso de drones. Ambos os lados veem nesses equipamentos a possibilidade de invadir espaços inimigos e atingir suas bases. Em abril de 2024, a Ucrânia anunciou ter bombardeado e destruído seis aviões militares russos e danificado outras oito aeronaves utilizadas na linha de frente da guerra, além de ter matado 20 pessoas em território russo.
Os ataques foram realizados graças ao uso de drones com sistemas integrados em uma forma ainda muito básica de inteligência artificial que auxilia na navegação aérea de modo a evitar bloqueios inimigos. “Cada aeronave possui um computador terminal com dados de satélite e terreno. Os voos são determinados antecipadamente com nossos aliados e as aeronaves seguem o plano de voo para nos permitir atingir alvos com metros de precisão”, explicou uma fonte próxima ao programa de drones ucraniano à CNN.
Esses drones são equipados com "visão de máquina", uma forma de inteligência artificial que permite aos equipamentos se comportarem de acordo com o treinamento prévio. Dessa forma, tanto a geografia quanto os alvos são identificados, permitindo que os drones desviem de armadilhas e detectores inimigos. Para isso, não é necessária nenhuma comunicação via satélite, tornando o drone totalmente autônomo.
“Este nível de autonomia ainda não tinha sido visto em drones antes, mas ainda estamos nos estágios iniciais do potencial dessa tecnologia”, afirmou à CNN Chris Lincoln-Jones, ex-oficial militar britânico e especialista em guerra de drones e inteligência artificial.
Se esse nível de sofisticação ainda está em fase incipiente, o que o futuro dos conflitos bélicos nos reserva como sociedade? Será que os seres humanos se tornarão obsoletos nessas disputas cada vez mais tecnológicas? As desigualdades se tornarão ainda mais acentuadas? E o Brasil, como se posiciona e prepara sua Defesa nesse contexto?
Para tentar responder essas e outras perguntas, O POVO+ conversou com Gustavo Guerreiro, doutor em política públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades, da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Confira mais abaixo.
Antes disso, veja onde estão algumas das principais guerras em curso atualmente pelo mundo:
Para explorar como as novas tecnologias estão transformando os modelos de combate em conflitos armados e entender o papel do ser humano nesse cenário, O POVO+ conversou com Gustavo Guerreiro, doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Segundo ele, "guerra e tecnologia são dimensões inseparáveis", com o ser humano desempenhando um papel decisivo no desenrolar e na resolução dos conflitos.
O POVO+ - Como o senhor avalia que as novas tecnologias de guerra estão influenciando as táticas e estratégias militares tradicionais? Há aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir ou replicar?
Gustavo Guerreiro: Certamente que sim. As tecnologias influenciam o jeito de guerrear desde sempre. Mesmo os indígenas, como os suruwahas, especialistas em manipulação bioquímica, utilizavam flechas envenenadas e quando queriam esgotar recursos de pesca de povos inimigos, envenenavam riachos usando a raiz de uma planta (Timbó) para atordoar os peixes e assim esgotar os recursos dos inimigos. A Cavalaria Pesada, os arqueiros e a infantaria surgiram a partir de inovações tecnológicas na Idade Média, bem como o uso de mosquetes na idade moderna e o papel da engenharia na guerra de trincheiras, decisiva na Primeira Guerra Mundial. Não seria agora, com um avanço tecnológico acelerado a partir das tecnologias informacionais e da robótica que isso não se verificaria no jeito de fazer guerra.
Destaco que a recente digitalização das ações militares, que envolve a combinação de redes de computadores, sistemas de armamentos de combate a distância altamente precisos e pessoal altamente qualificado, configura o que os estudiosos da guerra convencionaram chamar de Guerra de Quarta Geração, ou G4G. Portanto, guerra e tecnologia são duas dimensões inseparáveis.
Apesar dessas profundas mudanças, há certos aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir, nem mesmo replicar completamente. Clausewitz enfatizava a importância da tomada de decisão e do juízo dos comandantes. Embora não concorde completamente com sua ideia de guerra como continuidade da política, ele mostrou que a guerra continua sendo uma expressão da realidade social e política. As decisões sobre o uso de tecnologias militares estão indissociavelmente ligadas às transformações políticas e sociais, refletindo as condições políticas de uma sociedade. Além desse aspecto, elementos psicológicos e morais, como a motivação, a moral das tropas e a capacidade de adaptação, são áreas em que a intervenção humana ainda é essencial. O fator humano ainda é decisivo na guerra moderna.
O POVO+ - Até que ponto o avanço de tecnologias como drones, cães-robôs e sistemas de combate cibernético pode tornar o soldado humano obsoleto nos conflitos futuros?
Gustavo Guerreiro: O avanço dessas tecnologias como drones, cães-robôs e sistemas de combate cibernético tem justamente esse objetivo de reduzir a necessidade de soldados humanos em conflitos, mas não os tornará completamente obsoletos. O uso dessas tecnologias em ações militares permite executar operações de alta precisão e menor risco para os combatentes humanos. E embora tenha como um dos objetivos promover maior eficiência e segurança nas missões, sua tarefa principal é reduzir os custos políticos e econômicos da guerra.
Em 2010, escrevi um artigo com o professor Manuel Domingos na Revista Tensões Mundiais, intitulado “O encolhimento dos exércitos”, que trata justamente dessa dimensão da substituição do elemento humano pelos aparatos tecnológicos. (Clique aqui para acessar). Uma das nossas observações era de que as baixas (mortes de soldados) nas guerras no Iraque e Afeganistão tinham um dividendo político interno muito forte. Muitas famílias que enviaram seus filhos, pais e maridos como heróis nacionais recebiam caixões de volta. Isso era avassalador para a imagem do governo perante a opinião pública.
Além disso, os maiores gastos militares com salários, pensões e assistência médica e psicológica representavam grande parte do orçamento das forças armadas dos EUA, país com o maior gasto militar do mundo. A retirada do elemento humano é uma necessidade estratégica, mas sobretudo política e econômica.
No entanto, há aspectos do combate humano que a tecnologia ainda não pode substituir. A tomada de decisão em situações complexas, a liderança em campo, a capacidade de adaptação a circunstâncias imprevistas e a manutenção da moral das tropas são áreas onde a atuação humana continua sendo fundamental. Como disse antes, a guerra é uma expressão social e política, onde a presença e o julgamento humano são indispensáveis para a condução e resolução dos conflitos.
O POVO+ - Considerando o papel crescente da inteligência artificial e da automação nas guerras, quais são os principais desafios éticos e morais que devemos enfrentar ao integrar essas tecnologias nos conflitos armados?
Gustavo Guerreiro: A guerra se constitui de aspectos culturais, sociais, psicológicos, políticos e econômicos que não são completamente capturados pelos avanços tecnológicos. Devemos entender a guerra como um fenômeno em si mesmo, com sua própria lógica e dinâmica. Isso inclui considerar os impactos humanitários, as transformações sociais que ela provoca e as motivações variadas que podem não ser diretamente políticas, como questões étnicas, religiosas ou econômicas.
O perigo de se “terceirizar” a guerra a ponto de colocar cada vez mais decisões nas mãos de sistemas de inteligência artificial (que eu não acredito que sejam realmente inteligentes) reside em desumanizar a guerra ou determinados conflitos mais frequentes e prolongados. Operadores e comandantes que colocam esses sistemas em ação podem se distanciar emocionalmente das consequências de suas ações.
A própria sociedade pode perceber a guerra de forma menos crítica e dramática. A competição tecnológica pode levar a uma nova corrida armamentista e à proliferação de IA para grupos não paraestatais. Penso que o Direito Internacional Humanitário precisa se debruçar sobre essas questões no sentido de discutir novas normas para acompanhar essas transformações.
O POVO+ - O senhor acredita que a dependência de tecnologias avançadas nas guerras futuras poderá levar a uma nova forma de desigualdade entre nações, favorecendo aqueles com maior capacidade tecnológica? Como o Brasil se posiciona nesse cenário tecnológico militar?
Gustavo Guerreiro: Certamente. A dependência de tecnologias avançadas nas guerras levará a uma nova forma de desigualdade entre nações. Países produtores de tecnologias de ponta, como drones, sistemas de combate cibernético e inteligência artificial, terão uma grande vantagem em termos de capacidade de defesa e projeção de seu poder militar. Isso criará uma disparidade tecnológica que resultará em uma concentração de poder em poucas nações tecnologicamente avançadas, exacerbando a desigualdade global. Acredito que isso deva também resultar em novos desequilíbrios geopolíticos.
Geralmente, a transferência de tecnologia militar vem acompanhada da doutrina que o país produtor e fornecedor dessa tecnologia em seu pacote. Devemos entender a “doutrina” como a definição da finalidade da Força Armada, sua organização, a maneira de formar e treinar os combatentes, as regras hierárquicas e disciplinares corporativas, bem como as relações entre a corporação militar e a sociedade. A unidade de doutrina é uma peça-chave para a eficácia militar. O poderio militar está estreitamente ligado à capacitação científica, tecnológica e industrial, o que envolve a renovação permanente de armas, equipamentos, meios de locomoção, instrumentos de observação, serviços médicos e possibilidades logísticas. Nesse sentido, a modernização das Forças Armadas em países com pouca capacidade científica, tecnológica e industrial representa uma forma dissimulada e eficaz de dominação das potências detentoras de tecnologias sensíveis.
No contexto brasileiro, o país enfrenta alguns desafios e oportunidades em relação à incorporação de tecnologias avançadas na defesa militar. Entre os desafios, destaco as limitações orçamentárias. Apesar de ter cerca de 350 mil militares, o país destina apenas 7% do orçamento de defesa para investimentos em tecnologia, muito abaixo dos mais de 20% em outros países. Isso resulta na baixa capacidade militar brasileira em relação a potências como Estados Unidos, Rússia, China e Israel, que estão na vanguarda do desenvolvimento de tecnologias como drones, satélites e mísseis guiados. Não há como desenvolver ciência e tecnologia sem uma consistente base industrial voltada para a defesa. A indústria de defesa brasileira está fragilizada, precisando de uma política de compras regulares. O país não tem capacidade de compra e manutenção das suas indústrias, o que gera problemas para a indústria, como a Avibras, que entrou com pedido de recuperação judicial.
Como oportunidade, eu destacaria algumas parcerias estratégicas com países tecnologicamente avançados e no âmbito dos BRICS, que podem facilitar a transferência de tecnologia e o desenvolvimento conjunto de novos sistemas de defesa. Recentemente o Brasil inaugurou uma nova sede do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) em Fortaleza. Focar em pesquisa e desenvolvimento em áreas específicas onde o Brasil possui vantagens competitivas, como tecnologia aeroespacial de vigilância na Amazônia, pode fortalecer a capacidade tecnológica para a defesa nacional. A indústria aeronáutica brasileira, com destaque para a Embraer, é uma das mais avançadas do mundo, projetando e produzindo aeronaves civis e militares. Isso representa uma vantagem tecnológica para o país.
O POVO+ - Diante das rápidas inovações no campo militar, quais são as implicações para a formação e treinamento dos soldados do futuro? Que habilidades e conhecimentos serão essenciais para os militares brasileiros para se adaptarem a esse novo cenário?
Gustavo Guerreiro: As inovações tecnológicas terão reflexos significativos na formação dos soldados, que precisarão aprender a operar, manter e controlar drones, sistemas autônomos e equipamentos cibernéticos. A crescente importância do combate cibernético vai exigir habilidades em cibersegurança e defesa cibernética cada vez maiores. Os soldados deverão ser capazes de proteger redes, prevenir ataques cibernéticos e responder a incidentes de segurança digital.
Para os militares brasileiros, certas habilidades e conhecimentos tornam-se essenciais à medida que os sistemas aeroespacial e cibernético ganharem mais espaço nos combates armados. A competência tecnológica está no topo da lista. Mas não basta apenas manusear equipamentos de ponta; é crucial entender seus princípios e mecanismos de funcionamento para uma operação eficiente.
Creio que os conhecimentos em cibersegurança e defesa cibernética são igualmente vitais, sobretudo para proteger infraestruturas críticas e saber responder a ameaças digitais. Tudo isso exige uma formação robusta em Ciencia, Tecnologia e Inovação, por meio de cursos especializados e simulações de ataques cibernéticos.
Outro aspecto importante é a adaptação dos comandantes militares às novas tecnologias. Com o avanço desses sistemas, eles precisam estar preparados para gerir operações que envolvam essas tecnologias, interpretando-as estrategicamente em ações de combate.
Além disso, destaco a capacidade de operar conjuntamente e a interoperabilidade. É essencial que os militares estejam aptos a colaborar eficazmente em operações conjuntas, tanto nacionais quanto internacionais, por meio de plataformas e sistemas que funcionem de maneira integrada. Nesse sentido, o papel da diplomacia é relevante. A análise de dados também é crucial. O processo de coleta e análise de dados é central nas operações militares contemporâneas. Acredito que aqueles que dominam essas técnicas têm uma vantagem estratégica significativa.