Logo O POVO+
Os praças desconhecidos que salvaram a Itália na Segunda Guerra Mundial
Reportagem Especial

Os praças desconhecidos que salvaram a Itália na Segunda Guerra Mundial

O Brasil enviou 25 mil soldados brasileiros para combater o nazifascismo na Itália nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Pouco lembrados no Brasil, os pracinhas da FEB são homenageados com carinho pelos italianos da Toscana e vizinhanças. Conheça a história deles a partir de Miguel Pereira, ex-sargento marconista e único soldado brasileiro a ficar na Itália após a guerra

Os praças desconhecidos que salvaram a Itália na Segunda Guerra Mundial

O Brasil enviou 25 mil soldados brasileiros para combater o nazifascismo na Itália nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Pouco lembrados no Brasil, os pracinhas da FEB são homenageados com carinho pelos italianos da Toscana e vizinhanças. Conheça a história deles a partir de Miguel Pereira, ex-sargento marconista e único soldado brasileiro a ficar na Itália após a guerra
Tipo Notícia Por

 

Aos combatentes estadunidenses e brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial, era proibido compartilhar remédios e comida com os civis. Ter penicilina em 1944 era um luxo, principalmente no contexto da Itália, então arrasada pelo nazifascismo. No entanto, para os pracinhas brasileiros — em geral civis trabalhadores e sertanejos dos cinco cantos do País — negar alimento e cura para as pessoas a quem deveriam proteger era absurdo.

Por muitos anos, a história dos combatentes da Federação Brasileira Expedicionária (FEB) ficou à sombra dos estadunidenses aliados. Os italianos de localidades como Montese e Monte Castello diziam que tinham sido libertados pelos “americanos”, sem terem consciência de que foram principalmente os sul-americanos, do Brasil, responsáveis por combates vitoriosos contra os “boches” "Boche é uma palavra pejorativa usada para se referir aos alemães. A palavra foi internacionalizada ainda na Primeira Guerra Mundial." do Eixo.

Soldados brasileiros transportam um ferido durante a Batalha de Montese. (Foto: FEB)
Foto: FEB Soldados brasileiros transportam um ferido durante a Batalha de Montese.

Com o Monumento Votivo Militar Brasileiro (MVMB) erguido pela Embaixada do Brasil na cidade italiana de Pistoia, a verdadeira memória aflorou. Vários signore e signori compartilharam lembranças com os praças da FEB, ressaltando o carisma e a acolhida daqueles homens ao compartilharem alimento para as crianças famintas e penicilina para aquelas que, sem ela, morreriam de pneumonia ou tantas outras infecções.

Quem resgata toda essa história é Mario Pereira, 64 anos, ítalo-brasileiro filho do ex-sargento Miguel Pereira, gaúcho que serviu à FEB durante a Segunda Guerra e foi à Itália lutar contra o Eixo. Foi o único pracinha a voltar à Itália após o fim da guerra, na missão de cuidar do MVMB e, é claro, continuar ao lado da família.

 

 

Miguel Pereira, o guardião dos soldados esquecidos

Sargento marconista, responsável por comunicações em rádio e em código morse, Miguel não esteve nas linhas de frente propriamente ditas, mas sobreviveu aos campos de batalha.

“Minha primeira missão em Pistoia terminou em cinco de dezembro, pois fui chamado em serviço no front. O front ficava parado na defensiva no trecho da Linha Gótica entre o Rio Reno e Rio Panaro, pois a progressão fora impedida pela resistência dos adversários e pelo rigor do inverno. Brasileiros e americanos não conseguiam arrombar a Linha Gótica porém mantiveram todas as posições conquistadas, progredindo aos poucos”, lembra em publicação italiana.

Os efetivos brasileiros da FEB totalizaram 25.334 (19.679 pracinhas), dos quais 451 foram mortos (13 oficiais, 430 praças e 8 oficiais da FAB) e 1.577 feridos em combate.

 

 

Quando Miguel chegou à Itália em um dia 12 do ano 1944, mês desconhecido, chovia torrencialmente. Tudo estava destruído em um aspecto “horrorizante”, como nunca poderia imaginar. Acontece que o nome Miguel Pereira tinha ficado no Brasil: na guerra, ele era conhecido como 245. “Somos mesmo um número”, escreveu em diário na época. Ele comandava dez a 12 homens, entre eles tradutores de inglês.

A organização em geral vinha dos Estados Unidos. Nunca faltou material aos pracinhas, mas tudo tinha um custo: “Apontavam tudo aquilo que nos davam. Quando voltei ao Brasil depois da guerra, chegou a conta dos americanos, e tinham apontado todos os detalhes. Quando construímos Brasília, a despesa devia ser de 500 bilhões; a conta que os americanos nos mandaram depois da guerra do equipamento era duas vezes o preço de Brasília”, narra, em diário resgatado por uma publicação italiana, que também entrevistou o praça.

A ambiguidade da paisagem italiana impressionava. Para o gaúcho oriundo da fazenda, de uma casa com dez irmãos, cheias de animais (que amava imensamente e odiava abater), a guerra era um lamento pintado de esperança por liberdade e por democracia.

 

“O sangue dos nossos bravos camaradas tinge de vermelho essas belas verde escuras montanhas dos Apeni e algumas centenas dos nossos valentes companheiros já não retornarão à Pátria conosco porque dormem o sono eterno, sob terras úmidas e verdejantes planícies da Toscana.”

 

A Linha Gótica, primeira missão do front de Miguel, foi uma das últimas defesas elaboradas pelos inimigos na Segunda Guerra. Tinha cerca de 280 quilômetros de extensão, saindo do Mar Tirreno, no norte italiano, indo até o oeste, nas regiões de Carrara e La Spezia. De lá, passava pela cordilheira dos Apeninos, e terminava na faixa litorânea do Mar Adriático.

Foi na cordilheira onde os brasileiros mais sofreram, não apenas pela resistência do Eixo em uma batalha que parecia “invencível”, mas também pelas pneumonias e pleurisias adquiridas no tempo frio ao qual não estavam acostumados.

Membros da 92ª Divisão Americana combatendo na Linha Gótica(Foto: U.S. National Archives and Records Administration)
Foto: U.S. National Archives and Records Administration Membros da 92ª Divisão Americana combatendo na Linha Gótica

“As notícias do front eram muito preocupantes, a contribuição dos brasileiros em baixas e mortos era cada vez mais pesada. Após as primeiras batalhas ganhas entre Porretta Terme e Vergato, a Linha Gótica parecia agora invencível. As mensagens a respeito dos mortos e baixas eram sempre mais compridas, verdadeiras listas de nomes. A FEB, como as outras forças aliadas na luta, tinha a necessidade de instalar o próprio Cemitério Militar. A localidade foi escolhida foi ainda uma vez Pistoia, até porque vários feridos tinham sido recuperados no Hospital de campo de Pistoia, e muitos morreram aqui."

 

 

No meio da dor, o amor

A base dos Aliados na Itália era a cidade de Pistoia, na Toscana. Lá morava Giuliana Menichini, nascida em 31 de janeiro de 1928. Em 1944, quando os brasileiros botaram pé na comuna, Giuliana tinha 16 anos. Tinha sofrido muito com a guerra, tendo fugido um ano antes, 1943, de bombardeios à Pistoia. Ela estava em uma avenida quando viu a cidade iluminada por sinalizadores e rumou ao campo com a família para se proteger.

Foram evacuados para Torbecchia, mas as tropas nazistas avançavam sem parar. O pai de Giuliana, Pietro, junto a outros homens prepararam-se com rifles para combater a ofensiva; quando os soldados britânicos enfim apareceram para a batalha, foram recebidos com aplausos e comemorações pelos italianos.

Tropas do VIII Exército Britânico avançam pelo centro-leste da Itália. Agosto, 1944 (Foto: Lupson (Sgt), No 2 Army Film ENTITY_amp_ENTITYPhotographic Unit )
Foto: Lupson (Sgt), No 2 Army Film ENTITY_amp_ENTITYPhotographic Unit Tropas do VIII Exército Britânico avançam pelo centro-leste da Itália. Agosto, 1944

No entanto, o primeiro contato com os pracinhas foi comedido. Muitas das mulheres tinham medo de se aproximar dos aliados, parcialmente pelas propagandas fascistas racistas, mas principalmente por ouvirem histórias confirmadas de estupros em Roma e outras cidades italianas por parte dos soldados.

Aos poucos, os brasileiros provaram-se confiáveis. Chamava a atenção de que os soldados brasileiros brancos e negros andavam juntos, diferente da separação racial total entre os militares estadunidenses.

Miguel Pereira e Giuliana Menichini(Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira)
Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira Miguel Pereira e Giuliana Menichini

Giuliana conheceu Miguel quando ele foi entregar açúcar à família dela, outro artigo de luxo para a Itália. "Os brasileiros não davam... Eles dividiam! Se tinham café, levavam café em casa. Se tinham chocolate, levavam chocolate em casa, o mingau, o pão branco. Era uma divisão, o que era muito diferente (dos outros soldados). Era como confraternizar com os brasileiros; eles se integraram logo à família", relembrou a mãe de Mario em entrevista ao Exército brasileiro, como relembrado em artigo da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).

Na época, foram 59 casamentos de italianas com brasileiros, das quais 58 foram morar no Brasil, buscadas por um navio enviado pelo governo federal. A mãe de Mario foi a única a continuar na Itália, pois o pracinha tinha solicitado continuar no país europeu para cuidar do cemitério militar.

 

 

O cemitério vira monumento

Por 37 anos (1966 a 2003), Miguel foi administrador do Monumento Votivo Brasileiro, em uma sequência de dificuldades. Mario Pereira, filho do ex-sargento, conta que enquanto o monumento não era construído o pai esteve suspenso do exército, sem receber salário algum, apesar de continuar cuidando do terreno onde surgiria o monumento.

Família de Mario Pereira no Cemitério Militar, onde atualmente está o Monumento Votivo Brasileiro(Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira)
Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira Família de Mario Pereira no Cemitério Militar, onde atualmente está o Monumento Votivo Brasileiro

“Você sabe que aqueles cinco anos depois dos anos 1960 foram muito complicados”, explica Mario, em referência à ditadura militar brasileira. Nesse período, uma das irmãs precisou de muita assistência hospitalar e o pai arranjou emprego em uma firma que garantia plano de saúde. Infelizmente, a empresa fracassou em cinco anos e Miguel colocou a casa da família à venda.

Apesar de em 1966 ele ser readmitido pela Embaixada do Brasil como guardião do Monumento Votivo, o salário equivalia à décima parte do recebido anteriormente. “Em meados dos anos 60, a gente praticamente perdeu tudo. A gente perdeu a casa, os móveis, tudo, tudo… e ficamos alojados por quatro anos em uma canônica, numa paróquia, que nos recebeu porque a gente estava no meio no meio da rua”, relembra.

Sem dinheiro para viajar e outros luxos, as férias e brincadeiras das crianças era acompanhar o pai nas visitas ao Monumento, recebendo brasileiros. Foi assim que Mario cresceu aprendendo tudo sobre a participação da FEB na Segunda Guerra Mundial, o que o motivou a estudar ainda mais sobre o impacto do Brasil na vida dos civis italianos.

Miguel e Mario Pereira em homenagem no Monumento Votivo Brasileiro(Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira)
Foto: Arquivo Pessoal / Mario Pereira Miguel e Mario Pereira em homenagem no Monumento Votivo Brasileiro

Ouviu histórias de pessoas que foram salvas por pracinhas da FEB ao receberem penicilina deles, de meninos que foram alimentados pelos soldados e até de um senhorzinho que, na época bebê, aprendeu a caminhar com dois soldados brasileiros que estavam hospedados na casa dele.

“É uma demonstração dos brasileiros, uma outra ideia de estar na guerra. A guerra em si é um drama absurdo, mas eles amenizaram um pouco os sofrimentos da população. Os 30 anos de fascismo e os cinco anos de guerra tinham deixado especialmente aquela população das montanhas sem nada”, diz Mario.

“A gente pode até imaginar o nada, mas mesmo assim talvez seja muito em respeito ao nada para aquelas pessoas. Os italianos preferiam eventualmente morrer debaixo dos estúdios da própria casa a serem desalojados. Os brasileiros tentavam dizer que a casa podia ser reconstruída, mas era muito complicado enfiar isso na cabeça das pessoas naquele momento”, lamenta.

Por isso, mais que libertadores, os pracinhas da FEB foram alentadores do povo italiano. Homenageados em diversos monumentos, muitos deles levantados pelos próprios cidadãos italianos, não apenas a embaixada brasileira, a memória dos soldados é carinhosa.

 

 

"Eu sentindo ainda mais coragem, tinha também medo"

“A relação entre militares brasileiros e famílias italianas foi muito legal, mesmo na área do front. Em Riola, Montese, Gaggio Montano, as famílias nos acolhiam, não falávamos italiano, mas trazíamos as coisas que tínhamos, leite, pão excelente, muita carne de peru, que nos davam a cada dia, e a gente ia aquecer-se na frente da lareira”, relembra Miguel em diário. “Quando fomos atacar Monte Castello, cheguei na casa do senhor Marchiani, por acaso, poucos dias depois do filho ser fuzilado. A velha era carteira; o marido, que era carteiro, faleceu e ela entrou no papel dele, dona Pia. Foi comovente, chamava-me de filho, dizia: ‘Meu filho morreu! Há poucos dias, durma na sua cama’, eu sentindo ainda mais coragem, tinha também medo, mas meu dever eu cumpri.”

 

 

Miguel faleceu com 84 anos, em 2003, e Mario tomou as rédeas da administração do Monumento Votivo, tirando dinheiro do próprio bolso para as pesquisas e para a divulgação histórica da participação brasileira na guerra em escolas italianas. Foi demitido em 2021, após criticar a visita do então presidente Jair Bolsonaro (PL) à obra no dia 2 de novembro daquele ano, mantendo-se distante da comitiva.

Ele não queria ser visto como um apoiador de Bolsonaro, além de considerar que Miguel se “reviraria no túmulo” se visse Bolsonaro homenageando soldados da FEB, que combateram os mesmos ideais defendidos pelo ex-presidente. “Os pracinhas estavam alinhados com os ideais de democracia e da liberdade, que hoje em dia estão fortemente em risco tanto no Brasil como na Italia”, relatou na ocasião à Piauí.

 

 

Leia o especial Memórias da Guerra, do O POVO

 

O ideal de guerra adorado pelos bolsonaristas faz pouquíssima referência à verdadeira luta dos praças da FEB em 1944 e 1945. Para Mario, a falta de memória coletiva sobre a participação dos brasileiros na Segunda Guerra é, inclusive, forjada. Afinal, por muito pouco o Brasil, então governado por Getúlio Vargas, não ficou do lado do Eixo. A aproximação aos Aliados se deu apenas para agradar os Estados Unidos.

Os 25 mil soldados, majoritariamente civis do interior, sertanejos, trabalhadores do campo, foram à guerra praticamente como mártires, em um fracasso anunciado. Nenhum general queria comandar a FEB, “sobrando” para o general Mascarenhas de Morais, de quem Miguel Pereira tornou-se amigo. “Getúlio não contava com a sequência de vitórias da FEB”, diz Mario. “Quando eles voltaram, Getúlio Vargas tinha medo deles. Porque esses brasileiros viram que podiam lutar por democracia e liberdade e vencer.” Daí o esquecimento forçado sobre o sucesso do Brasil na guerra.

Soldados da FEB sendo saudados por moradores de Massarosa. Final de setembro, 1944. (Foto: Durval Jr./Wikicommons)
Foto: Durval Jr./Wikicommons Soldados da FEB sendo saudados por moradores de Massarosa. Final de setembro, 1944.

Mesmo demitido, a missão de Mario continua a mesma: fazer jus à memória dos soldados brasileiros e manter a história viva. Em maio de 2023, enviou carta ao Itamaraty informando o contexto de sua demissão e pedindo a revisão do cargo. Recebeu retorno do governo em junho, pelo qual soube que sua situação estava em análise. O Itamaraty ainda não deu respostas sobre uma possível readmissão.

Enquanto isso, continua fazendo palestras e guias com brasileiros na Itália pelos monumentos à FEB, além de planejar trazer ao Brasil todo o conhecimento que adquiriu com as próprias pesquisas.

Quem sabe um dia o “soldado desconhecido”, único ainda enterrado no cemitério em Pistoia (todos os outros restos mortais foram enviados ao Brasil), seja redescoberto pelo mundo e especialmente pelo Brasil, e tenha sua história contada sem desvios.

O que você achou desse conteúdo?