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Envelhecimento saudável: é possível manter a mente ‘ativa’ na velhice
Reportagem Especial

Envelhecimento saudável: é possível manter a mente ‘ativa’ na velhice

De acordo com pesquisadores, atividades físicas, de cognição e de socialização podem ajudar a manter a mente ativa por mais tempo

Envelhecimento saudável: é possível manter a mente ‘ativa’ na velhice

De acordo com pesquisadores, atividades físicas, de cognição e de socialização podem ajudar a manter a mente ativa por mais tempo
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Diante de uma guerra que já vitimou mais de 10 mil civis, seria uma situação, no mínimo, embaraçosa confundir o nome dos líderes dos países envolvidos no conflito. Foi exatamente o que Joe Biden, atual presidente dos Estados Unidos, fez no discurso de finalização da Cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), realizado entre os dias 9 e 11 de julho. Ele chamou o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, de Putin, presidente da Rússia.

Biden, que tem 81 anos de idade, também chamou atenção ao se confundir e esquecer falas durante o primeiro debate presidencial às eleições estadunidenses de 2024. As situações geraram questionamentos sobre a condição de saúde do político — que abandonou a corrida eleitoral neste domingo, 21 —, além de dúvidas sobre o processo de envelhecimento. É normal começar a esquecer das coisas? É possível manter a mente ‘ativa’ depois dos 80 anos?

Lentificação é normal durante o processo de envelhecimento, mas é possível fazer muita coisa para se manter ativo (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Lentificação é normal durante o processo de envelhecimento, mas é possível fazer muita coisa para se manter ativo

A resposta para ambas as perguntas é sim: é possível envelhecer com a mente 'ativa' e a lentificação do processo cognitivo é algo natural, mas que não impede a pessoa de fazer nada. Agora, o desenvolvimento de processos demenciais é algo fora do normal, uma doença. A ocorrência se torna mais comum na velhice, mas não há nenhum determinismo. Não são todos os idosos que sofrem com a síndrome.

De acordo com Manuela Vasconcelos de Castro Sales, geriatra e professora do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal do Ceará (UFC), o envelhecimento, de fato, vem acompanhado com uma lentificação na velocidade de resposta para algumas atividades, em razão da atrofia cortical. "O paciente vai executar algumas tarefas cognitivas — que exigem raciocínio — de uma forma mais lenta, comparado com ele mesmo mais jovem”.

“Caso [o paciente] não tenha nenhuma doença, nenhum processo demencial, ele vai conseguir executar todas as atividades que ele executava antes, só que de modo mais lento. Ele continua tendo a capacidade de aprender e fazer suas tarefas do dia a dia", adiciona.

Apesar da lentificação ser algo natural, várias pessoas conseguem permanecer ativas e com saúde durante o envelhecimento. Fernanda Montenegro, por exemplo, continua trabalhando aos 94 anos de idade. Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones, continua fazendo shows aos 80.

Como citado, a situação só se torna problemática caso o indivíduo desenvolva algum tipo de processo demencial. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 55 milhões de pessoas — acima dos 65 anos — vivem com algum tipo de demência ao redor do mundo. As projeções apontam que esse número deve aumentar para 78 milhões em 2030 e 139 milhões em 2050.

 

Estimativa do número de pessoas vivendo com demência (em milhões) por região

 

 

O que é a demência?

 

A demência, segundo a professora Manuela Sales, é uma síndrome caracterizada pelo declínio da cognição, que é a capacidade do cérebro se relacionar com o mundo através de várias funções. "Falam muito da memória, mas não é só isso que a demência pode afetar. Também afeta questões executivas, de planejar tarefas, como: dirigir, pagar as contas, desorientação etc".

Bruno Iepsen, neurologista do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), destaca que a pessoa pode ser considerada com algum processo demencial a partir do momento que os sintomas cognitivos passam a comprometer a funcionalidade do indivíduo — de não conseguir realizar atividades sozinhos. "A gente tem que entender a demência como uma condição patológica, como uma doença, uma coisa fora do normal".

Apesar de não ser uma condição do envelhecimento, a demência é mais comum entre os mais velhos. “Aos 65 anos existe um risco de 5%, mas [a porcentagem] vai dobrando a cada cinco anos. Então, com 70 anos o risco é de 10%. Isso não impede que as pessoas continuem executando várias atividades", ressalta Manuela.

 

Estimativa de prevalência de demência por sexo e idade

 

Também é importante destacar que existem vários tipos de demência, sendo o Alzheimer o mais comum. De acordo com Ministério da Saúde, 1,2 milhão de pessoas vivem com a doença no Brasil. Cerca de 100 mil novos casos são registrados a cada ano. No Ceará, 4.848 pacientes recebem medicamentos para a doença, conforme a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa).

O Alzheimer, no início, acomete a memória recente do paciente. “A pessoa esquece compromissos, pergunta a mesma coisa várias vezes, esquece de tomar os remédios etc. Esse [esquecimento] vai progredindo ao longo dos anos e também vai acometendo outras funções cognitivas: comportamento, julgamento, autocuidado etc. No estágio final, vem a dependência total. Mas, isso acontece ao longo de anos", explica Manuela.

 

Tipos de Demência

 

 

Tem alguma forma de manter a mente ‘ativa’ por mais tempo?

 

Existem uma série de atividades que dificultam o surgimento da síndrome. Uma delas é o estudo. Quanto maior a escolaridade, menor o risco. "É um fator protetor [...] o seu cérebro tem conexões a mais que lhe protegem da manifestação da doença, é o que a gente chama de reserva cognitiva", explica Manuela.

Isso, no entanto, não significa que a pessoa precisa de um pós-doutorado para manter a mente saudável. O importante é se manter ativo de alguma forma. Leitura, quebra-cabeças e até mesmo a socialização são atividades bem-vindas. Elas também podem retardar a degeneração.

Aos 89 anos, Rosa Ximenes Aguiar Dantas tem a leitura e práticas religiosas como suas atividades favoritas. Próxima do centenário, ela tem uma lucidez que impressiona: fala bem e lembra de histórias da juventude. Há 11 anos ela vive na Casa São Vicente, uma instituição de longa permanência para idosos.

"Faço tudo sozinha: tomo banho, ajeito minhas roupas, me visto, não procuro ninguém para [me ajudar]. Aos sábados, às 16 h, tem uma missa e eu sempre vou", destaca.

"Eu era arquiteta e viajava muito, para Recife, João Pessoa, Maceió e também para fora do país para fazer exposições [...] eu gostava muito de trabalhar, às vezes choro porque queria trabalhar, mas não posso mais", adiciona.

 Rosa Ximenes, 90, se mantém ativa e independente. Ela mora no lar para idosos,  Casa São Vicente(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Rosa Ximenes, 90, se mantém ativa e independente. Ela mora no lar para idosos, Casa São Vicente

Manuela, a professora da UFC, ressalta que não são apenas as atividades cognitivas que retardam a degeneração cerebral. “As atividades físicas também são importantes. Tem um estudo que acompanhou pessoas de meia idade — por volta dos 50 anos — e dividiu as pessoas em dois grupos: um deles começou a praticar atividades físicas e outro não”.

“Dez anos depois, o volume cerebral da população [que se exercitava] era maior. Eles tiveram uma atrofia e degeneração cerebral menor. Então, a atividade física é um protetor enorme. Além de proteger contra doenças cardiovasculares, também evitam a demência”, continua.

Simone Carvalho Pereira, 81, tem o bordado como hobby, é uma forma de ‘desanuviar a mente’. Ela também vive na Casa São Vicente. "Todos os dias eu faço alguma coisa [relacionado aos bordados]. Todo o meu dia é preenchido com isso".

Todo o material produzido é disponibilizado em bazares que a instituição realiza. Simone, além disso, ajuda funcionárias da Casa, quando precisam remendar alguma roupa ou de ajustes nos vestuários. "Também participo de fisioterapias e [da oração do] terço. Hoje não fui porque estava ocupadíssima [fazendo a estampa de bolsas] e queria terminar tudo logo".

Simone Carvalho, 81, bordadeira, mora na Casa São Vicente(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Simone Carvalho, 81, bordadeira, mora na Casa São Vicente

 

 

A importância da socialização

 

Sair de casa com os amigos e participar de um grupo de leitura, por exemplo, parecem atividades ordinárias. Mas, também podem ajudar a manter a mente ativa. "A socialização é um tipo de estímulo, [é importante] conversar e participar de grupos sociais. Ainda tem a questão do propósito de vida. Isso faz com que a pessoa tenha uma melhor qualidade de vida e viva melhor", cita Manuela.

"Na pandemia, pacientes que já tinham quadros demenciais tiveram uma aceleração desse quadro e pioraram mais rápido porque perderam o contato com amigos e familiares. [Além disso], várias pessoas que não ainda tinham sintomas começaram a apresentar, por conta do isolamento", continua.

Thais Bento, professora do curso de gerontologia da Universidade de São Paulo (USP) destaca que, comparado a outras fases da vida, os indivíduos 60+ passam por uma redução de suporte social. "Por esse motivo, muitas vezes, eles perdem significado de vida e se isolam socialmente. E, quando a gente fala de fatores de risco para a demência, o isolamento social é um dos principais fatores de risco".

"Nesse sentido, os estudos científicos da área do envelhecimento mostram que, quando um idoso participa de atividades cognitivas, culturais e de lazer, ele acaba tendo um fortalecimento das relações sociais, ele começa a ter pessoas que compõem sua rede social", adiciona.

Quem gosta de bater um papo é Maria Nilda Rodrigues de Medeiros, 77, que também vive na Casa São Vicente. "Tendo atividade é comigo. Não gosto de ficar parada, porque não vem ninguém. Fico invocada".

“Gosto muito de conversar. Tem uma [outra idosa] que é muito engraçada. Adoro conversar com ela, porque damos risada. É bom que ‘desopila’ o fígado”, adiciona.

Maria Nilda, 77: "risada desopila o fígado"(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Maria Nilda, 77: "risada desopila o fígado"

 

 

Ginástica cerebral ajuda a manter qualidade de vida

 

Além de professora de gerontologia, Thais Bento também é parceira científica do 'Método Supera', a primeira rede de escolas de ginástica para o cérebro da América Latina. A técnica visa expandir as conexões do órgão para que ele continue funcionando de forma adequada.

"[A ginástica] é um treinamento para as atividades mentais. O objetivo é otimizar o desempenho de atividades de raciocínio lógico, linguagem e criatividade para melhorar a rotina de pessoas de qualquer faixa etária", explica Thais.

"No caso dos idosos, [a ginástica] pode melhorar a qualidade da execução das tarefas do dia a dia, tanto as básicas quanto as complexas, fazendo com que a pessoa tenha atividades que previnam o declínio cognitivo que possam ser fatores de risco para uma doença neurodegenerativa", continua.

As aulas acontecem de forma cooperativa. Os participantes interagem entre si, o que pode facilitar a inclusão da pessoa em um novo círculo social. “Tem muitos casos de pessoas que são viúvas, os filhos moram em outro estado ou país, tem uma rotina empobrecida e, nas aulas, eles criam novos vínculos que se tornam amizades. Elas se estendem para o depois da sala de aula: vão tomar café juntos, marcar visitar em espaços culturais, etc”.

 

Método Supera no Ceará

 

 

Como é o cuidado com as pessoas com demência?

 

A principal dica das cuidadoras é a paciência. Cuidar de pessoas com demência não é algo fácil. "O desafio é grande. Quando acontece das idosas iniciarem algum processo de comprometimento da cognição, a gente trabalha junto com a médica em como cuidar. Também precisamos aprender com elas. O esquecimento nos pega de surpresa e cada uma tem uma maneira de se manifestar", cita Márcia Corrêa Marques, assistente social e coordenadora da Casa São Vicente — o lar de idosos onde Rosa, Simone e Maria Nilda vivem.

De acordo com a assistente social, é comum que as idosas comecem a se isolar, quando começam a apresentar alguns sinais. Como Thais Bento havia citado, a situação também atinge a autoestima e, por conta disso, podem existir mudanças de comportamento: a pessoa pode ficar mais deprimida ou até mesmo agressiva.

"Nós tivemos a experiência de uma paciente que chegou na Casa com tremor essencial, que é da família do Parkinson, e quando, de fato, se transformou em Parkinson ela começou a se isolar. Ela viu que estava sendo observada, que os outros estavam percebendo. No momento que ela se percebeu mais debilitada, ela saiu da casa", lembra Márcia.

“A gente conversava bastante e eu percebia que a dificuldade dela era aceitar as mudanças. Ela preferiu se esconder das outras idosas [com quem tinha amizade] e isso é normal. [...] Então, durante a semana, a gente busca realizar oficinas de memória, jogos lúdicos para que elas se exercitam”, adiciona.

 

Dicas das cuidadoras da Casa São Vicente

 

A Casa São Vicente cuida de 29 idosas, todas mulheres, de forma gratuita. Eles aceitam doações de gêneros alimentícios, materiais de limpeza, higiene pessoal, etc.

  • Pix: aicsvpaulo@gmail.com
  • Endereço: R. Antônio Augusto, 2346 - Aldeota
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