Há 30 anos o estado do Ceará se tornava palco de uma história de amor, traição, reencontros e ambição. Tropicaliente, novela da TV Globo, exibida em 1994, mostrou ao Brasil e ao mundo as belezas de um Ceará em pleno crescimento e chegou a influenciar as eleições presidenciais da Rússia.
Escrita por Walther Negrão e dirigida por Gonzaga Blota, a novela foi exibida entre os dias 16 de maio e 30 de dezembro de 1994. Encabeçando o elenco, o trio protagonista formado por Herson Capri, Silvia Pfeifer e pela saudosa Regina Dourado, formaram um triângulo amoroso pelo qual o público pôde acompanhar e se emocionar por 194 envolventes capítulos.
Com sua roupagem solar, Tropicaliente mostrou aos telespectadores uma cidade de Fortaleza inacessível para a maior parte de sua população. Em uma época em que a capital cearense padecia com casos de cólera, a novela optou por omitir este dado e mostrar o Ceará como um "Caribe brasileiro".
Um amanhecer virando um drink tropical, guardas-sol que se mostram grandes frutas cítricas, um prato de salada que se revela uma ilha paradisíaca no meio do oceano. Esses foram alguns dos elementos usados já na abertura da novela para ambientar o telespectador em uma viagem para uma Fortaleza dos sonhos.
O dia era 16 de maio de 1994. Cedo pela manhã, a edição do jornal O POVO estampava a manchete "Quércia confirma favoritismo e vence prévias". A notícia narrava mais um episódio da corrida presidencial brasileira daquele ano.
Vinte e uma semanas depois, o favoritismo do ex-governador de São Paulo, filiado ao então PMDB, ficaria apenas na pré-campanha. Orestes Quércia finalizou as eleições presidenciais na 4ª colocação, obtendo mais de 2,77 milhões de votos. Acima dele, Enéas Carneiro, Lula e Fernando Henrique Cardoso. Este último foi eleito presidente do Brasil ainda em primeiro turno.
Nesta mesma edição do O POVO, no dia 16 de maio de 1994, no caderno Vida & Arte, as atrizes Carla Marins e Carolina Dieckmann estampavam um flagrante das gravações de Tropicaliente. Ao lado delas, a chamada "Mar, sol, dunas, coqueirais e muita sedução" estarão presentes nas telas brasileiras a partir das 18h de hoje, pela Rede Globo".
Segundo o dramaturgo Lucas Martins Néia, em entrevista ao O POVO, é comum de Walther Negrão, o autor da novela, ambientar suas histórias em paisagens praianas, como ocorreu com Top Model (1989), Como uma Onda (2004), Flor do Caribe (2013), Sol Nascente (2016) e a própria Trocaliente.
No caso de Tropicaliente, a escolha da ambientação em Fortaleza se deu graças à vontade do então diretor artístico da Globo, Paulo Ubiratan que, era "apaixonado pelo estado do Ceará e por Fortaleza".
Na novela, Ramiro (Herson Capri) é um pescador que vive de insucessos no litoral do Maranhão. Decidido a dar uma nova vida à família, ele decide voltar ao Ceará, à contragosto da esposa, Serena (Regina Dourado), que teme que um amor do passado, a jovem Letícia (Silvia Pfeifer), abale o relacionamento do casal.
Nos primeiros minutos da noite de 16 de maio de 1994, o estado do Ceará se via na televisão. Entrava no ar Tropicaliente, a nova novela das 6 da Rede Globo, e que viria a ser mais um sucesso no universo da teledramaturgia. Relembre abertura:
O ano de 1994 ficou marcado por grandes acontecimentos. No feriado de 1º de maio, o Brasil recebeu a notícia do falecimento do automobilista Ayrton Senna, durante o Grande Prêmio de San Marino, na Itália.
Dois meses depois, a seleção brasileira, comandada pelo técnico Zagallo, batia a Itália nos pênaltis e conquistava o tetracampeonato do mundo. Dias antes, o Plano Real lançava uma nova moeda que punha fim à era das hiperinflações na economia brasileira.
Nesse misto de acontecimentos e situações, jornais anunciavam que uma nova novela da Globo seria gravada no Ceará. A jovem atriz cearense Jamilca Brito via ali, a chance de ouro da sua carreira.
Tropicaliente começou a habitar o Ceará bem antes de sua estreia na televisão. Em março de 1994, uma movimentação incomum marcou a praia de Porto das Dunas, em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza.
Ali, de frente para o Oceano Atlântico, trabalhadores construíram casas e comércios, fazendo emergir da areia uma cidade tal como uma criança brinca de faz de conta.
Aquelas simples casinhas de madeira abrigariam um número limitado de pessoas por um curto período de tempo, mas seriam vistas por milhões de telespectadores e imortalizadas na história do Ceará e, principalmente na da Rússia.
Naquele lugar se instalava a vila de pescadores de Tropicaliente. Alguns dos proprietários das residências eram rostos novos na TV, mas que viriam a ser nacionalmente conhecidos tempos depois. Entre eles: Carolina Dieckmann, Giovanna Antonelli, Selton Mello, Paloma Duarte e Márcio Garcia. Entre os novos moradores daquela vizinhança, os cearenses que atuaram na novela e aqueles que acompanharam de perto as gravações, sentiam-se em casa.
Nascida na cidade do Crato, a 508 km de Fortaleza, Jamilca Brito, hoje com 57 anos, tem as artes cênicas correndo em suas veias. Poliglota e mãe de duas filhas, a atriz acumula trabalhos em campanhas publicitárias, peças teatrais, curtas-metragens e telenovelas.
Por quase um ano, uma das casinhas da vila de pescadores de Tropicaliente pertenceu à Jamilca. Em entrevista ao O POVO, ela relembra que as filmagens ocorriam durante 10 dias por mês. No período, o elenco vinha do Rio de Janeiro para gravar
Os figurantes contratados pela TV Globo eram levados para a cidade cenográfica montada no Porto das Dunas, em Aquiraz. “Eu pegava o ônibus fretado na avenida
Chegando na praia, sob as ordens do diretor da trama, Gonzaga Blota, todos se colocavam a postos.
Silêncio no set!
Apenas o som do vento e das ondas quebrando na arrebentação eram ouvidos, até que o sonoro “Ação!” ecoava pela areia e era chegada a hora de brilhar sob o sol equatorial do Ceará.
Entre uma gravação e outra, não faltaram ocasiões para registrar os momentos, confessa a atriz cearense. Como quem guarda um precioso tesouro, Jamilca exibe fotografias com astros do elenco, como Herson Capri, Márcio Garcia, Carolina Dieckmann e Carla Marins.
Ao longo da produção, não faltaram oportunidades para tietar e ser tietada. Jamilca relembra uma ocasião onde, após uma rodada de filmagens no Beach Park, um grupo de pessoas se aproximou dela e pediu seu autógrafo.
"Para mim, os melhores momentos daquela época das gravações era ver a alegria dos moradores quando vinham falar com a gente. Em todos aqueles sorrisos e olhares de admiração residiam o meu prazer pela atuação"
Assim como Santana do Agreste, de Tieta, ou a famosa Pontal D'Areia, de Mulheres de Areia, e tantas outras que vieram depois, a vila de pescadores de Tropicaliente foi desmontada. Certamente os materiais foram reutilizados em outros microcosmos de outras telenovelas. No local onde outrora o mundo se fez, hoje é a Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio Pacoti.
Ao lado seguem-se os luxuosos condomínio na faixa de areia que vão até depois do Beach Park. Sob a busca de uma vista tropical e de um clima "caliente", a especulação imobiliária também se fez presente nas lembranças de Tropicaliente.
Lembranças que fazem parte da história de Jamilca Brito e as quais a atriz guarda consigo até os dias atuais. No decorrer destas três décadas, ela aprendeu a falar outros três idiomas, estudou filosofia, morou na Argentina e se tornou mãe de duas filhas, Pétala e Catarina, mas nunca esqueceu os momentos vividos ao longo da trama de Tropicaliente.
Após a novela, Jamilca manteve-se imersa no meio cênico. A atriz foi modelo das lojas Mesbla, ministrou cursos de atuação no Teatro José de Alencar, deu vida outros personagens, como Maria Madalena, na peça "Jesus, o Cristo", produzida pela A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Atualmente, Jamilca auxilia no processo de alfabetização de crianças no residencial Cidade Jardim II e no
Atualmente a Rede Cuca conta com 5 sedes localizadas nos bairros José Walter, Mondubim, Jangurussu, Pici e Barra do Ceará.
As ações da Rede Cuca tem como público-alvo os jovens de 15 a 29 anos. Conforme divulgado pela Prefeitura de Fortaleza, todas as atividades ofertadas na Rede são gratuitas."
Para ela, o espaço do Cuca a faz "sentir viva, pois é um local onde posso atuar, ser artista e passar meu conhecimento".
"Para mim, os melhores momentos daquela época das gravações era ver a alegria dos moradores quando vinham falar com a gente.", relembra Jamilca, emocionada.
"Reunidos no segundo seminário Mucuripe Resiste, de 3 a 6 de agosto de 1994, as diversas organizações populares preocupadas com as transformações que estão ocorrendo na área subscrevem o presente documento que será encaminhado aos poderes Municipal e Estadual."
Para além do sol, do mar e das belezas da capital cearense, Tropicaliente também gerou impactos na sociedade local. Desde o começo de sua exibição, avenidas foram abertas, túneis escavados, viadutos construídos, velas saíram para pescar, prédios foram erguidos, a história se fez escrita e parte da memória se perdeu no fluxo natural do tempo.
E mesmo na época, apenas com o prelúdio de tamanhas mudanças, movimentos populares (e artísticos) denunciavam as exclusões sociais que se seguiriam como legados de abruptas transformações.
Um exemplo histórico foi registrado no manifesto histórico Carta ao Mucuripe, cujo o trecho está transcrito logo acima, e que foi produzido como forma de denunciar a crescente especulação imobiliária que se acentuou na região do Mucuripe após o cenário ser televisionado para o Brasil.
A cidade cresceu de maneira frenética à medida em que a quantidade de moradores aumentou de igual maneira. Para além de vias e prédios, se fazia necessário, também, prover o básico para a população do município, que já figurava como o quinto mais populoso do Brasil.
Em janeiro de 1994, o jornal O POVO noticiava que a falta de saneamento básico era o maior problema da capital cearense. Na época, a Região Metropolitana de Fortaleza abrigava cerca de 2 milhões de habitantes. Desse total, apenas 17% tinha acesso à rede de esgoto, ou seja, apenas 340 mil pessoas.
Ao passo em que a ineficácia do sistema de esgoto da Capital e região metropolitana eram alvos de reclamações da população, casos de cólera preocupavam os governantes. Para conter o avanço da doença, o Governo do Estado do Ceará promoveu uma verdadeira "Guerra à Cólera", como informou o jornal O POVO no dia 25 de fevereiro de 1994.
Doze dias depois, em 9 de março, o caderno de Cidades do mesmo jornal trouxe a seguinte informação: "Meningite e amebíase preocupam hoje no mesmo grau da cólera". Todas as três doenças têm um potencializador em comum: a falta de saneamento básico.
Na mesma página, logo abaixo, um verdadeiro contraste. "Começam hoje gravações de telenovela". Ainda chamada provisoriamente de "Summertime", Tropicaliente desembarcou com sua equipe técnica e elenco em terras cearenses para dar início à nova novela das 6 da Globo.
Para tornar a trama realidade, a gestão do então governador do Ceará, Ciro Gomes (1991-1994), investiu cerca de
Vale ressaltar que no primeiro semestre de 1994, a moeda vigente no Brasil era o cruzeiro real (CR$). Devido aos altos índices de inflação da época, não foi possível realizar a conversão do valor em dólar (US$) para cruzeiro real.
Historiador, guia turístico e preservador de memórias, Diêgo Di Paula é o responsável por manter, catalogar e preservar livros, cordéis, atas de reuniões, fotografias e documentos que narram a história de um dos mais importantes bairros de Fortaleza, palco de inúmeras gravações da trama de Tropicaliente.
O museu comunitário administrado por Diêgo recebe o nome do mesmo logradouro imortalizado na canção de Belchior: Acervo Mucuripe e se apresenta como um registro vivo dos detalhes que fazem a história da região.
Em entrevista ao O POVO, o neto de pescadores rememora as transformações ocorridas no Mucuripe para a chegada de Tropicaliente e as mudanças que ocorreram após o fim das gravações.
Diêgo relata que na época a região do
A Rota do Morro foi responsável por dar fama a diversos restaurantes de Fortaleza, como o Albatroz, o Alfredo, o Rei da Peixada, e o Alô, Brasil, que dispunha de telefones de disco no centro das mesas como decoração.
Diêgo relata que neste período diversos dos restaurantes atuantes na era de propriedade de estrangeiros, pessoas essas que subiam o morro, viam a beleza do local, a vista da praia, e compravam casas e montavam seus comércios.
Em 1994, a Rota do Farol do Mucuripe foi utilizada para servir de locação para as gravações. Em uma cena exibida no dia 25 de agosto de 1994, os personagens Gaspar (Francisco Cuoco) e Stella (Branca de Camargo) visitam o histórico Farol.
No momento da gravação, um verdadeiro malabarismo cênico é feito. Por meio da posição das câmeras, toda a comunidade existente ao redor do Farol é "apagada" e não tiveram espaço de tela, assim como os contrastantes níveis de desigualdade social e as vias paralelas ao esgoto a céu aberto.
No ao vivo, a cena enquadrava o farol, o porto, o mar e os prédios do bairro Meireles. A crise de meningite, amebíase e cólera não faziam parte do adorno previsto para a novela.
Na época de Tropicaliente, o estado do Ceará experimentou um verdadeiro "boom" no turismo. O setor hoteleiro registrou um aumento de 30% em relação aos anos anteriores.
A região do Grande Mucuripe ganhou visibilidade e, com isso, as rotas turísticas do Farol e do Morro viveram seu auge, ao passo em que a especulação imobiliária se agravou.
Trinta anos depois, um Mucuripe bem diferente existe em Fortaleza. Como narrou a jornalista Karyne Lane, do O POVO+, em reportagem veiculada em julho de 2023, a especulação imobiliária foi responsável por "redesenhar" a Capital cearense.
Um terreno, antes ocupado por mais de 80 famílias na região, em breve receberá um arranha-céu construído na faixa litorânea da cidade, "estrangulando" a foz do riacho Maceió e fazendo crescer o paredão de concreto e ferro que margeia a beira-mar alencarina.
Em 1994 o turismo se fazia chegar ao Morro Santa Terezinha. No fim da década de 2000, o discurso da "extrema insegurança" relacionado ao bairro afastou visitantes e foi o responsável por dar fim às rotas do Farol e do Morro, como afirma Diêgo.
"Na época, os donos de restaurantes do Morro Santa Terezinha começaram a alegar violência, perigo e quase todos os restaurantes foram fechados. E também, toda aquela paisagem paradisíaca do Mirante do Mucuripe foi, pouco a pouco, sendo minada com a construção de prédios na orla de Fortaleza."
A construção de prédios próximos ao mar, gerando a expulsão de moradores do local, bem como a propagação exacerbada de discursos que associavam a região à criminalidade e violência, foi denunciada ainda nos anos 1990.
Os registros, preservado por Diêgo Di Paula, apresentam o clamor dos habitantes oriundos do Mucuripe.
Em um dos documentos, o poema "Especulação Imobiliária" (transcrito abaixo), de autoria desconhecida, narra o pesar da população de ver suas terras virarem prédios, do fim da alegria, da tristeza de ser removido do local onde cresceu seu corpo e sua identidade.
"Que tal um apartamento perto de um parque ecológico e de um centro comercial? / Já é possível imaginar o VT na telinha / a festa dos especuladores. / E o povo aonde vai? / O que será feito de uma gente / que depende do mar, / que tem no céu do Mucuripe um teto, / que tem nas ruas um lar? / Adeus pagode, cheiro de peixe assado / bate-papo nos botequins... / Adeus terra, / cultura / trabalho pertinho de casa / Adeus Mucuripe vivo. / Onde foi poesia será um aglomerado de prédios. / E a trilha sonora desse filme vai ser / o silêncio. / Ou a barulheira alucinante / do trânsito de carros."
Em meio a tanta história sendo apagada, o Farol do Mucuripe segue de pé, como um símbolo de resistência. Desativado em 1957, restaurado e tombado cerca de uma década antes de estrear a novela, o monumento padeceu com o abandono, ficando à mercê da própria sorte e ao vento, a chuva, ao sol e a maresia.
Em abril de 2024, uma ação do Ministério Público do Ceará (MPCE) determinou o escoramento da laje do Farol, devido ao risco de desabamento da estrutura. O marco centenário que outrora orientou navegantes que se aproximavam de Fortaleza, viveu momentos de descaso que se prolongaram por décadas. Essa situação, contudo, está prestes a mudar e o marco histórico viverá um novo capítulo na própria história.
No dia 18 de setembro de 2024, o governador Elmano de Freitas assinou a ordem de serviço que dá início a processos de reforma e modernização do Farol do Mucuripe, assim como também a urbanização de seu entorno.
"É um investimento de mais de R$ 2,6 milhões e que vai mantar o nosso povo tranquilo [...] Hoje, nós iniciamos uma obra para restaurar aquilo que é um dos símbolos do nosso Estado", afirmou Elmano na ocasião.
As obras do Farol do Mucuripe serão divididas em duas etapas. A primeira, de revitalização do monumento, e a segunda, para a urbanização do entorno. A expectativa é de que o novo modelo atraia turistas e moradores, que relatam pouca relação direta com o farol.
Pedro Fernandes, coordenador da Associação de Moradores do Titanzinho, comunidade próxima ao Mucuripe, conta que a população sempre se fez presente no local, mas em maior contato com a duna, já que o acesso ao farol era restrito.
"A relação da gente com o farol sempre foi muito intensa. É um ponto de encontro, um mirante, onde a partir dele a gente consegue ver o mar, ver o pôr do sol. Essa relação com o mar eu costumo dizer que é uma relação com a duna. A gente gosta de estar em cima da duna. O farol mesmo, o equipamento a gente nunca conseguiu ter uma relação mais íntima dentro dele. Ao redor dele é que a gente conseguiu"
Outra preocupação é acerca da gestão do equipamento após a reforma. Além da obra, a população reivindica que a gerência do Farol seja compartilhada entre eles e o Governo do Estado.
Questionado, o secretário executivo da Secretaria do Turismo do Ceará (Setur), Jonas Dezidoro, não descartou essa possibilidade, mas afirmou que ela deverá passar por discussão entre Setur, a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) e moradores.
Ainda que Fortaleza tenha crescido nas últimas três décadas e que as doenças advindas da falta de saneamento básico não ocupem mais tanto espaço os noticiários, parte da população ainda sofre com a ausência da coleta de esgoto na Capital cearense.
Em março de 2024, dos 121 bairros de Fortaleza, 40 ainda contavam que menos de 50% da área com cobertura de esgoto.
O bairro Curió é o caso mais extremo e não conta com nenhuma rede de esgoto, conforme publicado pelo Anuário do Ceará 2024-2025 com informações da Companhia de Água e de Esgoto do Ceará (Cagece)
Logradouros como o Mondubim, Dendê, Planalto Ayrton Senna e outros 30 bairros contam com no máximo 25% de cobertura de esgoto.
Os dados indicam que, mesmo após três décadas, grande parcela dos moradores de Fortaleza ainda vive em condições semelhantes às da época das gravações de Tropicaliente.
Paisagem de gravações de Tropicaliente, os bairros do Grande Mucuripe vivem atualmente diferentes realidades na cobertura de esgoto. Dos sete logradouros da região, apenas três tem índice de cobertura de esgoto acima de 95% do território, sendo a Varjota, o Papicu e o próprio Mucuripe.
Os demais bairros, Cais do Porto, Vicente Pinzón, De Lourdes e Praia do Futuro I, tem entre 50% e 75% do território assistido pela rede de esgoto da Cagece.
Para efeitos de comparação, o Vicente Pinzón apresenta uma densidade demográfica de 14.542 habitantes por quilômetro quadrado (km²). Quase o dobro do índice registrado na cidade de São Paulo, que é de 7.528 hab./km², segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Porém, apesar de seu território de 3,13 km² ser densamente povoado, o Vicente Pinzón ainda apresenta mais da metade de seus 45.518 habitantes vivendo sem rede de coleta e tratamento de esgoto. Exatos 30 anos depois de ter sido televisionado para todo o Brasil e ganhado a admiração de telespectadores mundo afora, parte do Grande Mucuripe ainda vive como se estivéssemos em 1994.
Dentre as polêmicas envolvendo Tropicaliente, uma das que geraram mais reclamações foi o fato da novela ter omitido a verdadeira situação da Capital cearense na época. Mas, não foram as únicas problemáticas sociais da Cidade a serem "deixadas de lado" na ambientação da trama na Capital.
Além dos casos de cólera, da rede de saneamento básico ineficiente, a população de Fortaleza vivia o temor da insegurança. Conforme publicado pelo jornal O POVO no dia 18 de setembro de 1994, a cidade registrava cerca de 50 arrombamentos de casas todo mês.
Durante o carnaval daquele ano, ocorrido entre os dias 12 e 16 de fevereiro, 24 pessoas foram vítimas de homicídio, a maioria deles cometida por arma branca. A escalada na insegurança da Capital também não foi abordada ou teve impacto nos roteiros de Tropicaliente. Mas, até que ponto as novelas devem levar as situações cotidianas para a televisão?
Professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Cristina Mungioli, em entrevista ao O POVO, ressalta o fator do horário de exibição da novela como algo determinante na escolha do que mostrar e do que omitir.
"Tropicaliente foi veiculada às 6h da tarde. Nesse horário é mais comum que passem tramas mais leves, de época, rurais... Enredos mais 'digeríveis' por todas as camadas da audiência. Além disso ainda temos o fato de que foi uma novela que recebeu investimentos do Governo do Ceará, então tem esse viés de mostrar o 'lado mais agradável' da cidade", comenta Cristina relembrando o fato de Governo do Estado do Ceará, na época, ter aplicado cerca de
Novamente ressaltamos que no primeiro semestre de 1994, a moeda vigente no Brasil era o cruzeiro real (CR$). Devido aos altos índices de inflação da época, não foi possível realizar a conversão do valor em dólar (US$) para cruzeiro real.
O dramaturgo Lucas Martins Néia complementa destacando o fato de o autor de Tropicaliente, Walther Negrão, ter nascido no interior de São Paulo, não tendo, portanto, muitas referências de locais que sejam distantes da realidade dele.
"A escolha de Fortaleza para ambientar Tropicaliente partiu muito da vontade do então diretor de novelas da Globo, Paulo Ubiratan, falecido em 1998. Ele assinou a direção artística da novela, assim sendo responsável por dar o tom na fotografia das cenas, a própria cenografia e a ambientação. O Ubiratan era apaixonado pelo estado do Ceará e assim escolheu Fortaleza como pano de fundo para Tropicaliente."
Lucas segue argumentando que também pode existir um interesse da própria população local em não ver críticas de agentes externos ao seu local. Lucas cita o exemplo da novela O Grito, exibida entre 1975 e 1976, onde "o autor da trama, Jorge de Andrade, tecia críticas à cidade de São Paulo, caracterizando ela como uma metrópole 'claustrofóbica'".
Em função disso, a repercussão e audiência da novela na capital paulista caíram. Ele arremata argumentando que "de alguma maneira, ninguém quer ver seus 'demônios' sendo expostos assim em cadeia nacional", traçando uma hipótese de que os próprios fortalezenses não teriam gostado de ver os problemas de sua cidade sendo exibidos para todo o Brasil.
Sobre o assunto, Cristina Mungioli ainda afirma que telenovelas são obras de ficção e que podem se inspirar na realidade, mas que a completa representação do real é feita por outros tipos de obras audiovisuais, como os documentários.
Mesmo mostrando uma Fortaleza "maquiada", ocultando os reais problemas da metrópole, bem como tento registrado uma audiência inferior às suas antecessoras (Sonho Meu e Mulheres de Areia), Tropicaliente fez um grande sucesso no exterior, sendo exportada para países como Bolívia, Chile, Indonésia, Turquia, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
A trama foi exibida em diversos países e momentos históricos, mas foi na Rússia que a novela se consagrou como um grande fenômeno, levando russos aos risos e às lágrimas em meios as paisagens do litoral e da metrópole que surgia à beira-mar.
O sucesso do "sol cearense" na Rússia foi tamanho que chegou a influenciar as eleições do país, conquistando um feito histórico.
Em terras russas, a trama foi batizada de Tropikanka, ou “Mulher Tropical”, em português, foi exibida pela emissora estatal ORT, atual Canal Um, e no dia 3 de julho de 1996, a novela foi utilizada como artifício na disputa presidencial da Rússia naquele ano.
O fato foi comprovado em publicações do jornal britânico The Independent. No caso, o então presidente russo Bóris Ieltsin tentava a reeleição, disputando o segundo turno com o membro do Partido Comunista da Federação Russa, Guennadi Ziuganov.
O 3 de julho de 1996 se apresentou como um típico dia quente do verão no hemisfério norte. O segundo turno das eleições presidenciais russas estava marcado para aquele dia e tudo parecia que iria ocorrer normalmente, sem grandes surpresas, mas nada poderia preparar os historiadores russos para a relação da novela brasileira com o resultado do pleito daquele ano.
Na Rússia, é importante lembrar, o voto não é obrigatório, assim, o dia quente e ensolarado se tornou um atrativo para que os russos deixassem suas residências e viajassem para as casas de campo, chamadas de “dachas”, como usualmente ocorre durante os fins de semana de pleitos eleitorais no país.
Entretanto, como forma de tentar evitar o fluxo de eleitores saindo de seus locais de votação, o antigo canal estatal russo, ORT, exibiu, em sequência, os três últimos capítulos de Tropicaliente naquela manhã.
A estratégia não apenas funcionou, mas como também foi decisiva para a surpresa da Rússia ao término da contagem dos votos. Na época, o jornal The Independent constatou um aumento no número de eleitores nas cabines de votação após o horário do almoço.
Como resultado do aumento expressivo na quantidade de votos nas zonas urbanas no período da tarde, após os episódios da novela, Ieltsin, que não estava tão bem nas pesquisas eleitorais de véspera, foi reeleito presidente da Rússia.
Diante do aumento do público eleitor que estava em seus locais de votação e compareceu às urnas após a exibição dos capítulos finais da novela, Ieltsin recebeu mais de 40 milhões e 208 mil votos, representando cerca de 54% dos votos totais.
Tal feito garantiu a Tropicaliente, ou Tropikanka, a vaga na lista dos 25 programas de TV mais influentes do mundo de todos os tempos, segundo ranking divulgado pelo portal inglês Mental Floss.
Gravada no Ceará, a novela Tropicaliente é um dos maiores sucessos da televisão russa, tendo influenciado uma eleição do país e se imortalizado na mente dos telespectadores
Tropikanka ganhou sua segunda exibição em solo russo em fevereiro de 2019, pelo canal russo YU, e fez novamente um estrondoso sucesso. Matérias veiculadas na época descreviam a trama como "a lendária série brasileira".
O sucesso de Tropicaliente na Rússia é inegável. O êxito foi tamanho que quando a novela Mulheres de Areia foi exibida nas terras do czar, ela recebeu o nome de Tropikanka 2, sendo vendida como uma continuação da história criada por Walther Negrão, mesmo não havendo nenhuma relação entre os dois folhetins.
A relação era uma tentativa de alavancar o desempenho da nova estreia, mas nenhuma outra produção brasileira foi tão bem quista pelos russos como a trama ambientada em solo cearense.
Para além de Tropicaliente, o Ceará foi palco de outras produções ao longo dos anos. A isso, muito se deu por vontade do diretor-artístico da Globo, Paulo Ubiratan, que nutria certa admiração pelo estado do Ceará e sua capital, Fortaleza.
Final Feliz, escrita por Ivani Ribeiro, dirigida por Paulo Ubiratan e exibida em 1982 foi a primeira novela da Globo que teve o Ceará como pano de fundo. Protagonizada por José Wilker e Natália do Valle, a trama foi ambientada na praia de Morro Branco, em Beberibe, a 92 quilômetros de Fortaleza.
A casa onde foram gravadas diversas cenas da novela ainda existe e é aberta para visitação. Hoje em dia, também funciona no local uma pequena loja de artesanato.
Em 1998, o Ceará era palco de mais uma produção, desta vez como pano de fundo da novela Meu Bem Querer, de Ricardo Linhares. Ambientada na fictícia São Tomás de Trás, no litoral cearense, a abertura da trama apresentou imagens feitas em ciclogravura, mais conhecidas como “arte em garrafas de areia colorida”, típicas dos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte.
Em 2009, a 16ª temporada de Malhação contou com as cenas iniciais gravadas na praia de Canoa Quebrada, em Aracati, a 163 quilômetros da Capital. Na novela teen, os personagens passam as férias de verão no Ceará antes de voltarem para o ano letivo no Colégio Múltipla Escolha, no Rio de Janeiro.
Situação semelhante ocorreu na 24ª temporada da novela, exibida em 2016, intitulada de “Pro Dia Nascer Feliz”. A protagonista Joana (Aline Dias) vive no Ceará, onde conhece o mocinho da trama, Gabriel (Felipe Roque). Nos capítulos seguintes, a trama passa a se desenvolver na capital fluminense.
Em 2010, a Record TV gravou cenas da minissérie Sansão e Dalila na praia de Morro Branco. O litoral de Beberibe foi escolhido pela direção da emissora para simular a Palestina dos tempos bíblicos. Baseada no livro de Juízes, a minissérie foi exibida entre janeiro e fevereiro de 2011.
Pela Netflix, a série O Cangaceiro do Futuro contou com cenas rodadas no distrito de Juatama, em Quixadá, a 186 quilômetros de Fortaleza. Artistas cearenses como Max Petterson, Edmilson Filho e a humorista Valéria Vitoriano, a Rossicléa, atuaram na obra.
O ano de 1994 foi, sem dúvidas, de transformações. Na economia brasileira, a adoção de uma nova moeda, o Real, acabou com a era das hiperinflações nos preços. Nos esportes, a Seleção Brasileira conquistou o tetracampeonato de futebol, após 24 anos de jejum e, pela primeira vez, um time cearense chegou na final da Copa do Brasil.
Também naquele ano, o maior ídolo do automobilismo brasileiro, Ayrton Senna, nos deixava de forma repentina. Confira a seguir o que foi destaque no ano de 1994 e quais líderes exerciam poder ao redor do mundo.
Linha do tempo