"Essa série de reportagens venceu o I Prêmio de Jornalismo do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará"
► “Que tal um apartamento perto de um parque ecológico e de um centro comercial? / Já é possível imaginar o VT na telinha, a festa dos especuladores. / E o povo, aonde vai? / O que será feito de uma gente que depende do mar, que tem no céu do Mucuripe um teto, que tem nas ruas um lar? / Adeus pagode, cheiro de peixe assado, bate-papo nos botequins... / Adeus terra, cultura, trabalho pertinho de casa. / Adeus Mucuripe vivo. / Onde foi poesia será um aglomerado de prédios. / E a trilha sonora desse filme vai ser o silêncio. Ou a barulheira alucinante do trânsito de carros”. — Mundinha do Mucuripe
Enquanto narra os versos do poema “Especulação imobiliária”, de 1993, a líder comunitária e artista plástica Raimunda Alves de Sousa é acompanhada pelo incessante barulho de obra.
Sons do que parecem ser marretadas e uma sirene de trator ironicamente compõem o pano de fundo de um texto que, embora redigido há três décadas, se mantém atual.
Aos 90 anos, a simpática poetisa carrega na voz, no semblante e na memória as marcas de uma vida dedicada à luta em defesa do território que testemunhou ser transformado de vila de pescadores a bairro nobre com vocação para o turismo: o Grande Mucuripe.
Trinta anos se passaram desde que ela viu os dizeres serem publicados
Mundinha do Mucuripe, como é conhecida, é vizinha do prédio que descortinou-se sob o título de arranha-céu mais alto de Fortaleza: o One Residencial, da construtora Colmeia, com 50 andares distribuídos ao longo de imponentes 170 metros de altura.
“Você no topo de Fortaleza” é a frase que estampa o edifício de luxo cujos apartamentos custam, em média, R$ 10 milhões cada. O tamanho do projeto inicial era bem menos ousado: menos da metade, mais precisamente (72 metros).
Mas os responsáveis pela obra tentaram, junto à Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), e conseguiram, por meio da flexibilização de parâmetros da Outorga Onerosa de Alteração de Uso (OOAU), que o empreendimento tivesse mais que o dobro de altura.
Apesar das obras avançadas e a previsão de que seja entregue no primeiro semestre de 2024, o barulho deve persistir — já que uma segunda torre, o Sky Residencial, ainda começará a ser erguida exatamente ao lado, no terreno antes ocupado por mais de 80 famílias compostas por amigos e conhecidos de Mundinha, em frente à foz do
As águas que serviam para brincadeiras, encontros e lazer ou atividades como pesca, lavagem de roupas e plantação de verduras, foram fonte de inspiração para as telas da artista plástica que hoje, da janela, lamenta não reconhecer mais o riacho que outrora foi um símbolo de pertencimento.
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“Eu, pequena, sonhava em crescer e me tornar uma pessoa importante porque queria acabar com isso. E ainda venci, venci enquanto eu pude. Só que agora está aí, bem na minha porta”, desabafa.
Nativa do Mucuripe e considerada patrimônio vivo do bairro, ela assistiu, de perto, ano após ano, o desenvolvimento pôr abaixo boa parte do que foi ocupado e construído pelo povo tradicional no território.
Consideradas assentamentos irregulares, uma a uma as casas instaladas no polígono foram compradas pela incorporadora Nordeste Participações e Empreendimentos Ltda (Norpar) para a liberação do espaço e, mesmo com a resistência de muitos, a área foi desocupada para a implantação do empreendimento imobiliário.
A OUC Parque Riacho Maceió foi a primeira a ser aprovada, durante a gestão de Juraci Magalhães (1997-2005). Ela foi criada em 2000, anteriormente à instituição do Estatuto da Cidade (2001), atendendo às diretrizes do PDDUFor (1992). A área da operação era considerada ambientalmente instável e ocupada por assentamentos irregulares.
O objetivo dessa operação era a requalificação da foz do riacho Maceió em parceria com a Norpar. Para isso, a Prefeitura concedeu alterações nos índices construtivos, no microzoneamento e no perímetro, delimitado anteriormente como área de proteção e preservação ambiental, para implantação dos empreendimentos residenciais na quadra que viria a ser desocupada por cerca de 80 famílias.
Sem estudo de impacto de vizinhança ou assistência econômica e social junto às famílias removidas, a operação prossegue com a incorporação das torres a cargo da construtora Colmeia.
Ainda que contra a vontade de Mundinha: “Eram meus amigos, os vizinhos que eu tinha. Disse: ‘não vou deixar’. E aí começamos a luta, eu revirei essa cidade toda, abri processo. Mas aconteceu. Fiquei decepcionada”.
Um dos principais argumentos era o não cumprimento de artigos da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade pela Lei Nº 8.503/2000, que regulamentou a operação, pelo fato de o projeto não envolver nenhum programa de atendimento econômico e social para a população afetada, nem a elaboração de estudo de impacto de vizinhança, além da falta de debate com a sociedade civil.
“Eu procurava advogados, consultava se eu ‘tava’ certa ou não, qual era a penalidade. Com o passar do tempo e o convívio com outras pessoas, desenrolava tudo, achavam que eu era formada. Fiquei com o conhecimento e isso tem me servido muito, porque quando vejo uma coisa errada eu me meto no meio”, relata.
“Eu, pequena, sonhava em crescer e me tornar uma pessoa importante porque queria acabar com isso. E ainda venci, venci enquanto eu pude. Só que agora está aí, bem na minha porta” (Mundinha do Mucuripe)
Na época, o custo previsto para a realização do parque pelo empreendedor privado seria em torno de R$ 2,4 milhões, dos quais 25%, ou seja, R$ 600.000, estavam destinados à indenização dos habitantes, de acordo com o plano de investimento.
Com a atualização monetária para o ano de inauguração (2014), os investimentos foram estimados em R$ 7 milhões, segundo dados do Sindicato da Indústria a Construção Civil do Ceará (Sinduscon-CE).
Ela lembra, no entanto, que a intervenção chegou a ser iniciada antes mesmo que o processo de licenciamento fosse finalizado, e que essa não foi a primeira vez em que a área se tornou visada por algum grande empreendimento.
Além dos crimes ambientais cometidos contra o riacho, que iam desde despejo de escombros de construção e canalização de esgoto até instalação de muros, nos anos 90 um projeto da Câmara de Dirigentes Lojistas de Fortaleza (CDL) propunha a implantação de um shopping 24 horas no local, baseado no potencial de lucro e expansão de lojas, restaurantes e entretenimento naquela região.
“Eu participei de reunião, de audiência, fui para o jornal, escrevi, fui na televisão, nas rádios, fazia questão de falar abertamente o nome de quem estava por trás e que não iam fazer aquilo, porque era desumano. Eles tinham muita raiva de mim, mas eu não ‘tava’ nem aí, queria saber era se defendia. Fui perseguida e ameaçada”, recorda.
O projeto enfrentou grande resistência por parte da população, cuja mobilização resultou no Fórum Popular Mucuripe Resiste, uma associação da qual Mundinha se tornou representante e lutou pela preservação do bairro como um espaço de morar e viver.
A revolta se tornou impulso para que ela buscasse formas de denunciar o que acontecia — assim, a filha de um pescador com uma labirinteira passou a ser conhecida e construiu um legado.
Diversos jornais e documentos em que Mundinha aparece permitem reconstituir narrativas locais sobre o bairro, desde reivindicações por direitos básicos como moradia, lazer, educação e saúde, até a preservação de áreas públicas e identitárias como a do riacho.
Com o avançar da idade, o cansaço de estar em constante movimentação pesou sobre os ombros da idosa, que preocupou-se em manter os registros bem cuidados e cedeu boa parte do material para um companheiro de luta: Diêgo di Paula.
Também nativo, o guia turístico de 35 anos é responsável pelo Acervo Mucuripe, um museu comunitário montado na própria casa onde abriga a história da cidade contada a partir desse território de memórias.
Sozinho, ele cataloga jornais, fotografias, livros, documentos e arquivos importantes, que frequentemente são visitados pelo público de moradores, estudantes, pesquisadores e jornalistas.
Para o neto de pescador, desbravar está no sangue: Diêgo segue, munido de conhecimento, a defender o Grande Mucuripe. “Faço questão de destacar o Grande porque o Mucuripe reúne sete bairros sob sua tutela: Vicente Pinzon, Varjota, Cais do Porto, Dunas, Praia do Futuro, Papicu e o próprio Mucuripe”, explica.
Ao tatear algumas pastas, ele aponta a quantidade de conteúdos que parecem se encaixar como uma linha do tempo para mostrar como as ações especulativas do mercado imobiliário avançaram nessa região ao longo dos anos.
“Não é de hoje que a gente está denunciando, já é de muito tempo. Estrangularam a foz do riacho Maceió, mas nós já falávamos sobre as ameaças que levaram a isso”, assevera.
“Todos somos testemunhas que o Mucuripe está sendo alvo de agressiva e galopante especulação imobiliária, apoiada na estratégia do Governo de desenvolver o turismo como porta de entrada de recursos para Fortaleza. Sendo um bairro secular, o Mucuripe é uma área tradicionalmente ocupada por populações ligadas à atividade pesqueira, abrigando milhares de famílias pobres, nativas, que tiram sustento do mar.
Atualmente a Prefeitura decidiu que o Mucuripe tem uma ‘vocação turística’. Por isso vem elaborando projetos para a área que, seguramente, vão aumentar a especulação e expulsar os nativos para dar lugar a ruas, avenidas, viadutos e shoppings centers. O povo do Mucuripe ocupou e construiu esse bairro dando a ele outra vocação: morar e viver.
Tudo que existe no bairro é obra de sua população, como a igreja, o cemitério, o Terra e Mar, a maioria das escolas, sem falar das tradições culturais ainda hoje existentes. Não havia ‘vocação turística’. Não foi o turista que desenvolveu o bairro e construiu sua história. E não deve ser o povo que construiu que deve pagar por esse ‘desenvolvimento’”. (O Arrastão, 1993)
Os “gêmeos”, One e Sky, são fruto da primeira Operação Urbana Consorciada (OUC) do município, aprovada em 2000, durante a gestão de Juraci Magalhães (1997-2005), numa parceria público-privada em que a empresa comprometeu-se a financiar e executar uma requalificação e urbanização da foz do Maceió.
Envolta em uma série de polêmicas que iam desde a intervenção no curso do riacho e remoção da mata ciliar original existente até a desapropriação dos moradores tradicionais, a OUC Parque Foz do Riacho Maceió somente foi executada mais de dez anos depois, em 2014, na gestão de Roberto Cláudio (2013-2016).
Assim, cercado por árvores, pontes e jardins, foi construído o Parque
“Todo mundo saiu satisfeito, de boa vontade. Ninguém foi expulso, saiu porque concordou com o valor que estava recebendo para morar legalmente em outro lugar”, garante Otacílio Valente, diretor-presidente da construtora Colmeia.
“A gente também doou toda a área de influência do riacho fazendo o parque Bisão, e a Prefeitura deu, como compensação, podermos construir o prédio residencial naquele trecho com o mesmo índice de hotel, ou seja, até quatro vezes a área do terreno”, completa.
A ideia era construir quatro prédios de 22 andares de apartamentos, com garagem e espaço de lazer, “aí quando veio a Outorga Onerosa, a gente propôs fazer esse pagamento e foi pago o valor adicional, que chega próximo de R$ 20 milhões, com interesses de ‘botar’ um prédio em cima do outro”.
De acordo com Otacílio, o local antes era ocupado por “construções muito ruins, onde despejavam lixo, entulho, esgoto, havia uma calha subdimensionada que fazia a água sair do leito quando chovia muito, alagando as laterais e cobrindo a Avenida, além de ser o lugar onde os ladrões mirins corriam para se esconder depois de praticar assaltos”.
“Hoje dá para levar o cachorro para brincar, tirar fotos de formatura, de noivado, de quinze anos. Nesse caso, a gente deu um presente para a cidade, que é uma área organizada e vigiada, coisa que antes não era”, frisa.
A manutenção do logradouro, conforme marca o presidente da Colmeia, é de responsabilidade da construtora durante os vinte primeiros anos da OUC:
“Hoje é fiscalizado, todo mês é fotografado e produzido um relatório de cada detalhe que esteja fora do lugar, desde grama até pintura. Depois passa a ser obrigação dos dois condomínios, porque a gente acredita muito mais numa manutenção feita pelos condomínios do que pela Prefeitura”.
O termo especulação imobiliária, para Otacílio, é “pejorativo e grosseiro”. “Ele pode ser utilizado quando você está construindo algo que é uma agressão ao meio ambiente, à maneira de viver das pessoas. Se ali fosse uma região em que as pessoas faziam piquenique”, argumenta.
Os dois empreendimentos seguem em andamento: o One, com entrega prevista para o fim do ano; o Sky, que se encontra na fase de conclusão das fundações, com pelo menos mais quatro anos de obras pela frente.
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“A iniciativa privada, na teoria, recebe a área para fazer uma requalificação, ela chega com a ideia de que vai melhorar o ambiente. Mas melhora para quem? É o que a gente deveria se questionar”, indaga Diêgo di Paula.
Além disso, para ele, outra pessoa merecia dar nome ao parque: “Mundinha é referência. Ela fez muito mais que o Poder Público. O nome dela, sim, deveria ser nome de parque, de rua. Quando mal se falava em militância ela já estava lá, dando a cara a tapa e sendo perseguida. É o referencial que eu tenho de vó, e vó militante. Lugares levam o nome desses profissionais porque há um pacto aí”.
Enquanto observa o acervo, reflete: “Parece que a gente vai narrando uma história em que as coisas estão se acabando. Quando restauraram o
Tropicaliente (1994) se passava em Fortaleza e contava com as paisagens do litoral como pano de fundo. Parte da produção da trama, cabe destacar, foi financiada pelo governo cearense, na gestão de Ciro Gomes (1991-1994), que investiu US$ 700 mil no custeio de despesas com
Em um período de construção simbólica da praia como espaço de lazer e status associado ao imaginário da tropicalidade, a exibição da telenovela trazia elementos como sol, mar, ventos e dunas que se fortaleciam junto à ideia de expansão e valorização do turismo global.
O resultado não podia ser outro: na época, o setor hoteleiro registrou lotação e o “boom” turístico foi 30% superior aos anos anteriores. Para a filmagem de cenas no Mucuripe, o Farol recebeu pintura e foi reinaugurado.
“Hoje nos colocam contra nós, porque para restaurar o Farol precisa o povo sair, essa é a desculpa. Então, se for reformar o Museu da Imagem e do Som, precisa a Aldeota inteira sair também? Ou é só o pobre que tem que sair?”, questiona.
Um pouco adiante, em outra ponta, mais história: “Decretaram um fim às casas do
As remoções, ressalta o guia, levam antigos moradores para lugares cada vez mais distantes do Mucuripe, o que passa a representar custos a mais para famílias que, em sua maioria, viviam da pesca.
“Custos que vão além do tempo e dinheiro gastos com deslocamento, também envolvem a perda das relações de vizinhança e de vínculo com o território”, sobreleva.
Quem permanece, sublinha Diêgo, se vê obrigado a encarar uma realidade contrastante: com a valorização expressiva de imóveis nessa área, a moradia se torna cada vez mais inacessível para a população de baixa renda.
Para se ter uma ideia, em junho, o Mucuripe foi o bairro de aluguel mais caro em Fortaleza. O valor do metro quadrado para locação de imóvel residencial nessa região custa R$ 41: ou seja, para residir em um apartamento de 70m² é necessário desembolsar, mensalmente, cerca de R$ 2.870. Anteriormente, a posição era ocupada pelo Meireles, o metro quadrado mais valorizado da Capital.
“Há todo um direcionamento do uso e da função do lugar para atender ao turismo e ao mercado imobiliário, então se concentra uma infraestrutura inteira. Estar próximo de praias, serviços, shoppings e áreas de lazer atrai pessoas de alto poder aquisitivo dispostas a pagar caro por essa localização privilegiada”, ressalta.
Dez bairros mais caros para locação residencial em Fortaleza
Enquanto isso, regiões periféricas e de menor valorização ficam desprovidas de investimentos e recursos. Na opinião do especialista em Gestão Pública, esse avanço também se reflete em um uso da habitação com caráter cada vez mais segregador, que se revela em novas formas de assentamentos humanos.
“Como loteamentos, condomínios fechados ou grandes edifícios residenciais monitorados por sistemas de segurança particulares, que separam as classes ricas do convívio social com as pobres”, cita.
“As pessoas, quando entram nesses lugares, ficam reclusas, se isolam do resto da cidade, do bairro. É um lugar que não tem vida, ninguém dialoga, não tem relação com aquele território. Acessar esse material é perceber que nosso povo tentou, mas não conseguiu, porque é desigual a luta”, destaca.
O resultado dos investimentos de grandes grupos financeiros do mercado de imóveis na Capital atraem maiores demandas de compra, venda e locação, mas, a rigor, quando comparada a outras capitais, Fortaleza ainda possui um dos metros quadrados mais acessíveis para investimentos, inclusive estrangeiros.
É o que afirma Robson Bizarria, diretor do Sindicato dos Corretores de Imóveis do Ceará (Sindimóveis-CE).
“Fortaleza é a ponta do grande iceberg para a entrada desses investidores, objetivando, nos últimos anos, a construção de inúmeras salas comerciais, com aumento significativo nas locações imobiliárias nesse setor, principalmente no Meireles”, diz.
O fato de abrigar grandes resorts e hotéis de luxo ao longo da faixa litorânea também favorece as atividades turísticas que, salienta Bizarria, atraem visitantes de diferentes regiões do Brasil e do mundo.
“Grandes investimentos imobiliários atraem outros setores que impulsionam empresários de outros ramos a investirem, a exemplo de mercados atacadistas e construção de novos shoppings centers que investiram na Capital e Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)”, sinaliza.
A expansão que se intensifica de forma significativa para a zona leste da cidade, inclusive, já ultrapassa os limites fortalezenses e segue em direção a municípios como Aquiraz e Eusébio, onde a estrutura urbana já se mostra diferenciada.
“Quando você entende a cidade só como um espaço para negócios, limita o acesso e a transforma em blocos homogêneos rodeados por heterogeneidade”. A afirmação é do geógrafo Alexandre Queiroz, professor do departamento de Geografia da UFC e membro do núcleo Fortaleza da Rede Observatório das Metrópoles.
“Você acaba dotando certos espaços com qualidade urbanística e imobiliária, que cada vez mais estão se associando também à qualidade ambiental, que não são produzidas artificialmente, são um bem público, mas estão sendo apropriadas privadamente, porque você tem um modelo de cidade capitalista. Ou seja, é uma cidade em que, para ter acesso a esses bens, você terá de pagar por eles”, comenta.
Na avaliação de Queiroz, “é uma ideia de cidade que quer se adequar à modernidade a qualquer custo e se vangloria de ser a mais rica do Nordeste, a que tem o maior PIB da região, como se isso representasse que os fortalezenses vivem melhor que em outros lugares, como se esses recursos fossem igualmente distribuídos”.
“A distribuição desigual na cidade e acesso desigual à cidade seus serviços e equipamentos está relacionada com um processo de produção desigual das cidades, onde a terra, a moradia e a própria cidade são, na nossa sociedade, mercadorias”, pondera a arquiteta Sara Vieira Rosa.
De acordo com a integrante do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC), essas são mercadorias diferenciadas.
“Pois são extremamente caras e das quais todos precisam para sobreviver. Todo mundo precisa de moradia, de um abrigo, e consequentemente precisa de terra, pois a moradia não pode ser descolada da terra”, afirma.
“Como são mercadorias, eu só consigo acessá-las comprando, e se eu não tenho como comprar, pois as condições de trabalho e os salários são muito baixos nas nossas cidades, fico fora desse mercado. Não tenho acesso à terra, não tenho acesso à casa, não tenho acesso à cidade”, acentua.
Na análise da pesquisadora, isso coloca em xeque o direito à cidade, uma vez que certos grupos têm mais facilidade de obtenção de recursos e serviços urbanos, enquanto outros são marginalizados e excluídos.
Tamanha discrepância no acesso a condições básicas como transporte público, saneamento, saúde e educação, afeta diretamente a qualidade de vida das camadas mais vulneráveis da população.
Além disso, a falta de políticas de habitação social contribui para o surgimento de favelas e ocupações informais, onde as condições de moradia são precárias e os moradores enfrentam diversos desafios.
Conforme atesta Rosa, “na colonização do País não foram roubados apenas metais preciosos, foram roubadas terras e vidas. Povos originários foram expulsos de suas terras e povos trazidos do continente africano para serem escravizados também não tinham terra aqui”.
“Processos especulativos e de aumento do preço da terra vão intensificar a dinâmica de acesso desigual à cidade, uma vez que o aumento dos salários nunca é proporcional ao aumento do preço da terra”, pontua.
A opinião da arquiteta Sara Rosa coincide com a do advogado Péricles Moreira, do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA): “Considerar apenas fatias da cidade acaba por acentuar ainda mais uma Fortaleza desigual, fazendo com que o cidadão fortalezense que reside nas periferias transite em duas cidades”.
O advogado dá o exemplo de quem sai do Grande Bom Jardim para trabalhar em bairros como Aldeota, Varjota, e tem a confirmação de que mora numa cidade dividida em duas: a dos ricos e a dos pobres.
Segundo Moreira, é nessa divisão que se constroem as áreas mais visadas, “porque quanto mais distante das comunidades empobrecidas, maior será o valor dessa área especulada”.
Conforme sublinha o presidente do Sinduscon-CE, Patriolino Dias, existem algumas razões pelas quais certas áreas nas cidades são mais visadas do que outras no cenário imobiliário.
“Uma delas é a localização estratégica e a infraestrutura já existente nestas regiões. Bairros como Aldeota e Meireles, por exemplo, são os mais valorizados, estão próximos à orla marítima e possuem uma variedade de infraestrutura, serviços, comércio, restaurantes e opções de lazer, o que os torna atrativos tanto para moradores quanto para investidores”, explana.
Outro fator que influencia a visibilidade de determinadas áreas é o potencial de crescimento e valorização, segundo Dias: “Bairros como Guararapes, Cocó, Messejana e Presidente Kennedy estão passando por transformações urbanas e apresentam perspectivas de desenvolvimento significativas”.
“Seja por meio de investimentos em infraestrutura, equipamentos, expansão de áreas comerciais ou valorização imobiliária, a cidade também tem experimentado um crescimento notável nessas áreas, refletido no aumento do número de lançamentos de empreendimentos imobiliários”, acrescenta.
Sem condições de bancar os custos da moradia (aluguel, IPTU, energia, água, dentre outros), a população mais pobre tende a se deslocar para áreas mais distantes, desprovidas de infraestrutura, serviços e equipamentos de cultura, esporte e lazer.
Um dos problemas decorrentes dessa segregação socioespacial pelo território é o processo de
No caso do Mucuripe, quando se fala em perda de cultura, existe uma comunidade tradicional que enfrenta esse movimento com a bravura de quem já encarou sete mares: a dos pescadores.
Ao longe, por onde a vista do mirante Santa Terezinha permite enxergar, a enseada que recebeu diversas fortificações ao longo da história é apontada como o lugar em que os colonizadores aportaram em terras brasileiras pela primeira vez, e foi o local escolhido para o Porto da cidade durante a consolidação de Fortaleza.
Séculos depois, a região abriga também moinhos, indústrias, petroquímicas, distribuidoras de combustíveis, comércios, empresas de pesca, hotéis de luxo, pousadas e restaurantes.
Moradores dos edifícios que dividem as esquinas das ruas Tereza Hinko e Arquiteto Emílio Hinko, os vizinhos milionários de Diêgo e Mundinha terão, além do ambiente arborizado do Parque Bisão, uma vista privilegiada da cidade e do mar do Mucuripe, bem como o acesso fácil a vias importantes como as avenidas Abolição e Beira Mar, bem próximas ao famoso Mercado dos Peixes.
A recorrência do sobrenome Hinko nessa área, por sinal, não é coincidência: Emílio, filho de Tereza, foi um arquiteto húngaro que ancorou na Fortaleza dos anos 30 após saber do Brasil e, encantado pelas praias, dunas e coqueirais que predominavam na época, resolveu permanecer.
Inspirado, ele desenhava croquis de casas enquanto estava em mesas de bares, hábito que despertou a atenção e atraiu os primeiros clientes, na maioria médicos, comerciantes, políticos e pessoas de alto poder aquisitivo que residiam na Jacarecanga, o “bairro nobre” daquele tempo — quando a cidade ainda não havia se voltado para o mar.
Ao correr do tempo, o que era arrabalde transformou-se em bairro elegante, com mansões e palacetes. Do Centro, onde surgiram os primeiros indícios do que seria a verticalização em Fortaleza, a cidade expandiu-se para a Praia de Iracema (anos 30 e 40) e Aldeota (anos 40 e 50 em diante), movimento que delineou novos espaços burgueses e reforçou, por fim, a segregação socioespacial entre ricos e pobres.
Na área central estava uma gama de prédios ligada a serviços como o hoteleiro, que migrou para a orla, a exemplo de edificações como o hotel Excelsior e os edifícios J. Lopes, Lord, Cine Diogo, Cine São Luiz, Iracema Plaza Hotel (São Pedro) e Savannah. Fortaleza, até então, não estava inserida na rota do turismo: era a rota comercial que justificava a rede hoteleira.
Hinko teve participação concreta nas transformações urbanas da pequena cidade de cerca de 100 mil habitantes que se tornou uma metrópole, com obras que resistem ao tempo e carregam importância na configuração do espaço urbano.
A cada bangalô, o arquiteto tornava-se mais conhecido e procurado, e seus traços se espalharam na forma de imponentes prédios como Náutico Atlético Cearense, Hospital de Messejana, Base Aérea de Fortaleza e Santuário do Sagrado Coração de Jesus.
Evolução da população de Fortaleza (1872-2023)
Foi ele o responsável pelo famoso Palácio do Plácido, castelo do comerciante Plácido de Carvalho para a esposa, Pierina Rossi, que veio a casar com o arquiteto após a morte do empresário.
Do monumento, restaram apenas os castelinhos construídos ao redor. O resto foi demolido para dar lugar a um supermercado do grupo Romcy, que perdeu o terreno devido a dívidas. No local, hoje funciona a praça Luíza Távora.
Hinko teve a visão do que viria a ser a ocupação da Avenida Beira Mar, ainda um grande vazio, e tratou de comprar grandes faixas de areia nessa área. Um desses
“Num belo dia eles vieram, fizeram um muro. O Emílio Hinko mandou fechar por conta das moradias das pessoas. Os moradores vinham para a praça aqui do lado, porque por causa do muro fazia muito calor e era escuro. E aquilo tava errado, ele não era dono porque tinha o riacho, e o riacho era protegido. E era bem na foz, que hoje não tem mais. Menina, que coisa horrível. Um rio daqueles, que as pessoas atravessavam de jangada, secou”, rememora.
Ela guarda vividamente na lembrança as tentativas de lhe tirarem dali: “Já quiseram passar por cima da minha escritura, queriam porque queriam me comprar, queriam dar qualquer dinheiro como se isso aqui não fosse meu. Mas toda semana eu estava lá fazendo barulho”.
A disputa por espaço é uma questão recorrente para os nativos. Dono do maior mercado de peixes da cidade, é também do Mucuripe a tradicional atividade pesqueira que se materializa em identidade na forma das velas das jangadas.
Ameaçados por todo o litoral, os pescadores da orla centro-leste lutam para permanecer e se mantêm, mas a pesca está descaracterizada e a profissão já não é mais repassada de pai para filho como antes. É o que testemunha o pescador Antônio Banqueiro, presidente do Sindicato dos Pescadores do Estado do Ceará.
“Ao longo dos anos, o pescador perdeu seu espaço de trabalho. Antigamente tinha lei que nos dava direito, não tem mais isso. Existia um artigo que dava direito ao pescador construir sua moradia, morar, habitar a 33 metros de distância de onde a maré maior do ano bota. Hoje o pescador não tem mais isso, e o pouco que nós tem é invadido. Mas está sendo invadido por quem? Tenho certeza que não é por pescador”, assegura.
“Nós estamos ameaçados a sair a qualquer momento da praia do Mucuripe. Mas é a tecnologia, é o avanço das coisas, é o desenvolvimento. Eu concordo, não sou contra o desenvolvimento, não sou contra o avanço. Mas desenvolvimento que protege uns e são agravante para outros, isso para mim não é desenvolvimento”, expõe.
Com os olhos marejados, o pescador lastima a perda de uma tradição que tanto lhe acrescentou em cultura e garantiu o sustento da família durante toda a vida.
“Assim vai se acabando, filho de pescador não tem gosto de continuar essa profissão por conta do desamparo, e a atividade tradicional que começou aqui muito antes de olharem pro mar não é vista como deveria ser. Pelo contrário, vai perdendo seu espaço. Tudo em nome do avanço, que é feito por pessoas que não têm respeito pela categoria”, assinala.
Devido à perda de áreas de pesca e a transformação da paisagem e dinâmica do bairro afetadas pela expansão imobiliária, os heróis do mar, pioneiros da história do litoral leste, veem sua importância ser negligenciada.
Banqueiro se mostra pensativo: “Quem vai defender essa causa? Eu espero contemplar alguém que levante essa bandeira. ► O que seria de um prefeito sem uma prefeitura? O que seria de um advogado sem um escritório? O que seria de um deputado sem um gabinete? O que seria de um indígena sem uma mata? O que seria de um agricultor sem o campo? E o que será do pescador sem a praia?”.
O posto de mais alto da Capital que pertence ao One Residencial não deve demorar a ser tomado por outro empreendimento. A perspectiva é de que o One passe para a posição dois no ranking de mais elevado da cidade e fique atrás, pelo menos por enquanto, do Wave Beira Mar, que pretende subir alguns metros a mais.
Com entrega prevista para 2026, o residencial de luxo da construtora Dasart Engenharia tem apartamentos a partir de R$ 8,7 milhões e será erguido no Meireles, no mesmo perímetro do gigante Edge Condominium, que terá apartamentos projetados com elevador para que o proprietário possa estacionar o carro na sala.
Desenhado em formato que imita o movimento das ondas, o Wave será construído em um quarteirão privilegiado da Avenida Beira Mar, ao lado de onde também começou a ser edificado outro luxuoso espigão residencial: o Dona Cotinha 360°, ou simplesmente DC 360, da Normatel Incorporações.
Com vista em 360 graus para o mar, o nome de batismo faz referência à avó paterna do senador e ex-governador do Ceará Tasso Jereissati, já que o terreno abrigou um casarão da família antes de dar lugar ao conhecido bar Boteco Praia, demolido em 2021.
Além da magnitude que é marca da verticalização na nova geração do mercado imobiliário em Fortaleza, todos também têm em comum o fato de serem projetos aprovados via outorga onerosa.
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Esse exemplo segue um movimento que ocorre por toda a orla: a demolição de prédios mais antigos, seja de hotéis construídos no início da verticalização de Fortaleza, ou de residências como a última casa que restava na Avenida Beira Mar, representa uma mudança que reflete novas estratégias do mercado imobiliário.
Os edifícios destinados à hospedagem migram para outras regiões de melhor balneabilidade, como Praia do Futuro, para atender ao público turista; enquanto que os residenciais se instalam na alameda, que concentra toda a infraestrutura necessária para habitação — com o “plus” de uma bela paisagem.
É o que sinaliza o corretor de imóveis Sérgio Porto, presidente do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis do Ceará (Secovi-CE): “À medida em que os terrenos vão acabando e os prédios construídos em outro ordenamento urbano perdem a frente linear, que nesse caso é o espaço de frente que dá vista para o mar, passam a valer para demolição. Isso é uma estratégia, mas não acontece de um dia para o outro. Leva décadas”.
“Em função da falta de balneabilidade da Beira-Mar por conta, principalmente, de ligações de esgoto clandestinas, as pessoas de alto poder aquisitivo iam tomar banho longe, da
No entendimento de Otacílio Valente, presidente da Colmeia, a pandemia de Covid-19 foi um fator determinante para a mudança comportamental do turismo em Fortaleza: “Os turistas que antes se hospedavam na Beira-Mar, muitos deles, do aeroporto já vão direto para Jericoacoara, Canoa Quebrada, Flecheiras, Icaraizinho de Amontada”.
Dessa forma, o valor de uma diária de hotel nesses lugares torna-se mais cara do que a de grandes hotéis de quatro ou cinco estrelas da Avenida. “Isso é mercado. Os executivos que vinham para Fortaleza tratar de negócios, hoje viajam muito menos, porque a maioria das negociações e reuniões se faz online. Então diminuiu o turismo de negócios, que era a principal ocupação dos hotéis naquela parte”, demonstra.
“O turismo mesmo, aquele que vem para relaxar, se divertir, pouco fica em Fortaleza. Prefere as praias mais distantes, e daí você vê os hotéis de luxo migrando. O Carmel, que é uma referência de luxo, foi construir na Taíba, Icaraizinho de Amontada, Barro Preto”, cita.
Atentos a esse movimento, os donos de terreno na faixa de orla mais valorizada da Capital resolveram mudar, segundo Valente — principalmente porque o terreno na Beira-Mar está cada dia mais escasso e valioso.
“As pessoas que estão dispostas a pagar diárias caras não querem ficar aqui, querem ficar em praias paradisíacas. Aí os donos de hotéis viram que eles tinham um terreno valiosíssimo e que não estava rendendo o equivalente na exploração hoteleira, que era muito mais negócio trocar por apartamentos construídos no local”, sobreleva.
Em relação ao deslocamento de muitas famílias para a Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), Otacílio acrescenta que os loteamentos fechados dispararam nessa área, e que o envelhecimento da população favorece a opção por residências horizontais.
“Em Fortaleza os terrenos já estão muito caros para isso. Aqui você aproveita até quatro vezes a área do terreno, enquanto uma casa ocupa metade desse espaço. Hoje os condomínios estão chegando no Aquiraz, muito bem sucedidos, por conta que há uma tendência das pessoas, ao envelhecerem ou se aposentarem, resolverem morar numa casa”, alude.
Já no que tange ao perfil, dois grupos protagonizam e são decisivos na hora da escolha por moradia, conforme analisa o empresário: o dos solteiros convictos e o dos que possuem animais de estimação como gato ou cachorro.
“É impressionante a força do pet, e é muito mais fácil viver com eles numa residência, onde tem mais natureza, do que num apartamento. Já os solteiros ou separados querem residências menores, mas continuar morando próximo a locais nobres da cidade”, expõe.
Segundo observa Otacílio, esse é um mercado que se apresenta como uma tendência bastante forte: “São pequenos apartamentos, praticamente do tamanho de um quarto de hotel, mas que têm todos os serviços, ou espaços coletivos como lavanderia e coworkings em que se paga pelo uso só quando necessita”.
Para especialistas, a incidência de conglomerados ou incorporadoras sobre a distribuição de políticas urbanas evidencia as pressões do capital imobiliário — seja na manutenção de espaços ociosos que recebem melhorias até que haja interesse daqueles que especulam em construir, ou na relação desses com o poder político local para flexibilizar ferramentas legais, que seriam os instrumentos com potencialidades de regular processos especulativos e findam por impulsioná-lo.
“Esse movimento de flexibilização da legalidade em favor da especulação, capitaneado às vezes pelo próprio Poder Público, é verificado nas cidades do Brasil inteiro. É algo complexo, relacionado com a própria lógica das nossas cidades e do nosso sistema político”, afirma o advogado popular Guilherme Bezerra Barbosa.
Barbosa exemplifica com uma alusão à “porta giratória” no sistema financeiro do Brasil: “Gente que sai de um grande banco para ser ministro da fazenda ou presidente do Banco Central e depois quando sai do Poder Público, volta a ser CEO de alguma instituição financeira privada. A mesma coisa acontece no âmbito imobiliário no País inteiro: na União, nos Estados e nos municípios”.
“No âmbito dos municípios, por exemplo, gente ligada ao mercado imobiliário é convocada a ser secretário de urbanismo, de planejamento, de meio ambiente, e, naturalmente, nessa posição, trabalha em favor dos interesses dos grupos dos quais é proveniente, até porque, quando sair da máquina pública vai voltar para lá”, constata.
Para o advogado, que é mestre em direito constitucional pela UFC, esse tipo de prática, tão comum nas cidades brasileiras, acontece em direta violação à promessa de cidade presente na Constituição, no Estatuto da Cidade e, no caso específico de Fortaleza, na Lei Orgânica do Município e no Plano Diretor.
Isso porque, remete Barbosa, “a cidade constitucional deveria ser planejada, executada e vivida em favor do interesse público, da função social da propriedade, da proteção ao patrimônio histórico e ambiental, e deveria desestimular a especulação imobiliária”.
Autor do livro “Direito à moradia no ordenamento jurídico e na cidade: um estudo sobre o Plano Diretor Participativo do município de Fortaleza”, ele defende que instrumentos de política urbana presentes na legislação, como as outorgas onerosas e as OUCs, tenham diretrizes que permitam a flexibilização desde que garantam, de fato, o interesse público.
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No caso das outorgas, tanto a do Direito de Construir quanto de Alteração de Uso, o advogado explica que esse processo chama-se mais-valia urbana: “Determina-se o mínimo e máximo, em que para chegar no máximo você precisa pagar. Se você quer explorar ao máximo o seu imóvel em relação ao potencial construtivo, então eu arrecado com isso e vou pegar esse dinheiro para democratizar para as outras pessoas”.
Na prática, porém, Barbosa argumenta que o limite do máximo não tem se mostrado nítido, já que os empreendimentos conseguem chegar cada vez mais alto.
“Se o zoneamento do Plano Diretor, que foi construído com intensa participação popular, determina que você só pode construir até ‘aqui’, aí você chega para o Poder Público, paga um pouco a mais e é liberado para ir além, então não fica muito explícito até onde, não é?”, questiona.
Na opinião de Guilherme, “o mercado transformou um instrumento que deveria ser de democratização do espaço urbano em mais uma ferramenta de especulação imobiliária”.
Em relação às OUCs, que foram pensadas, originalmente, para promover grandes obras de infraestrutura em locais degradados, também há um afastamento da lógica de interesse coletivo, segundo o advogado.
“Aqui foi usada, por exemplo, para a construção de um shopping no Papicu, sendo bem flexibilizada a ideia de interesse público e a própria questão urbanista. Além disso, as contrapartidas que o município geralmente tem exigido aos empreendedores ou são relacionadas à mitigação dos impactos da própria operação ou são básicas como manter uma praça”, alega.
“O que a gente tem visto aqui é que a Prefeitura tem utilizado o
“Ou seja, é um valor que deveria ser utilizado para garantir melhores condições de vida para a população mais pobre, mas que tem sido utilizado como benefício para garantir capital político para gestão”, endossa.
Além disso, Adriana defende que haja um estudo mais concreto dos impactos a longo prazo que esse instrumento pode trazer no futuro, “pois já há países em que as áreas de orla começaram a afundar um pouco a cada ano como efeito dos superprédios, há problemas de saneamento, porque um prédio de 50 andares produz mais esgoto, mais demanda, há impacto no trânsito, ambiental, diversos pontos que precisam ser observados para resguardar nossa cidade às futuras gerações”.
De acordo com a secretária Luciana Lobo, titular da Seuma, o Fundurb conta com um Conselho Gestor que é responsável pela supervisão dos seus recursos.
“Entre solicitados e repassados, já foram aprovados investimentos da ordem de cerca de R$ 135 milhões, conforme atas disponibilizadas no Canal Urbanismo e Meio Ambiente. Os projetos são de melhorias do espaço público urbano, melhorias habitacionais, regularização fundiária, melhorias em infraestrutura urbana, construção de equipamentos (areninhas, entre outros). Cerca de 96 bairros já foram beneficiados”, afirma.
O Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDPFor), documento que versa sobre o planejamento urbano da Capital por uma década, passa, em 2023, pela revisão da sua versão mais recente, a de 2009 (Lei Complementar Nº 062, de 2009).
O processo revisional acontece a cada dez anos, de modo que deveria ter ocorrido em 2019, mas sofreu atrasos que se estenderam mais do que o previsto em virtude da pandemia de Covid-19.
Isso representa prejuízos, já que o plano defasado atinge diretamente decisões políticas sobre questões urbanas que afetam toda a população. Por esse motivo, o processo é necessariamente participativo e demanda a contribuição de comunidades, grupos organizados e entidades da sociedade civil.
As propostas e os meios que respondam aos desafios da cidade ainda não foram desenhados, explica Lobo. Contudo, durante as etapas que se passaram, diversos desafios e potenciais já foram apontados pelos fortalezenses — que ainda podem, e devem, levar as demandas comunitárias durante as discussões sobre o PDPFor.
Regularização fundiária, preservar as áreas verdes e incentivar um mercado imobiliário habitacional inclusivo são alguns deles, conforme a secretária.
“Viabilizar uma governança mais ativa e democrática, fomentar a economia criativa e a valorização das potencialidades dos bairros e das economias locais, melhorar o aproveitamento das infraestruturas e dos equipamentos instalados (transportes, saneamento ambiental, escolas)”, cita.
Além desses, destaca Lobo, também são pontos “ampliar a política de transporte ativo, fomentar o uso misto, implantar políticas de descarbonização, incentivar o uso de áreas verdes públicas, entre muitos outros. Esse conjunto de demandas aponta para uma perspectiva por um desenvolvimento urbano mais inclusivo e sustentável”.
Metodologia
Para esta reportagem foram utilizadas as bases de dados de Outorga Onerosa de Alteração de Uso do Solo e do Direito de Construir (OOAU e OODC) e o descritivo dos gastos do Fundurb, disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), o Uso e Tipologias predominantes por lote fiscal e a geometria dos bairros da cidade, disponibilizados pela Secretaria Municipal das Finanças de Fortaleza (Sefin), através da plataforma Fortaleza em Mapas.
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Série de reportagens aborda as novas paisagens de Fortaleza, a partir da análise da ocupação dos bairros Mucuripe, Meireles, Cocó e Sabiaguaba