Quatro mil fitas entregues depois, ainda tinha gente chegando à Concha Acústica, na Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC), para presenciar a titulação de Maria Bethânia como doutora honoris causa na sexta-feira, 15 de novembro. “As fitas acabaram”, diziam os servidores, mas a Concha dilatava-se para seguir recepcionando todos.
A cantora vestia branco, como o faz todas as sextas-feiras, contrastando celestialmente com o azul-cetim da samarra e do capelo. Coroou-se a si mesma, levando a multidão ao delírio muitos minutos antes de discursar e, mais uma vez, conduzir o público ao êxtase ao cantar Gonzaguinha.
Uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira (MPB), Maria Bethânia não formou-se em nenhuma universidade — o que é totalmente diferente de dizer que o espaço acadêmico deixou de moldá-la. Em discurso, ela mesma atribuiu à íntima relação com diversas universidades brasileiras a formação artística e musical que a tornaram, afinal de contas, digna de um honoris causa.
Como explica o reitor da UFC, Custódio Almeida, o título de doutor honoris causa é atribuído a qualquer pessoa de fora da academia com ampla contribuição e representatividade em diferentes frentes. “A Maria Bethânia não é apenas uma cantora que canta bonito; ela é uma cantora que interpreta o Brasil”, define o reitor.
Os homenageados são indicados pela reitoria e deliberados e aprovados pelo Conselho Universitário. O objetivo, mesmo que informal, é que sempre haja unanimidade na aprovação, e o nome deve refletir aspectos sociais, culturais e de identificação para com o corpo da universidade.
A aceitação ao nome de Maria Bethânia foi muito rápida e natural. Com sua voz, reverberou discussões silenciadas pelo Brasil, como a luta pela natureza e pelos direitos de povos originários e afrodescendentes. Some-se ao fato de a UFC ter reconhecido a urgência de destacar mais mulheres entre os titulados.
Maria Bethânia é apenas a sexta mulher entre 98 doutores honoris causa titulados pela UFC, segundo lista oficial disponível no site da universidade. O primeiro ano de concessão da homenagem foi 1959 — ou seja, em 65 anos, a UFC só conseguiu pensar em seis mulheres dignas de serem doutoras.
“Para as comemorações dos 70 anos da UFC, nós consultamos a lista de homenageados e vimos que tinha pouquíssimas mulheres”, admite o reitor Custódio Almeida. “E a área de Cultura e Arte também precisava de mais gente.”
Essas ausências gritam. Não à toa, no fim de um discurso de 20 minutos, Bethânia agradeceu em adendo:
“Acrescento que estou aqui, em primeiro lugar, como mulher; e digo isso a fim de marcar a necessidade, sempre urgente, de ampliar o lugar das mulheres na sociedade civil brasileira.
E mais, estou aqui como trabalhadora, como uma das muitas trabalhadoras deste imenso, formidável e difícil país. Mas falo a partir de um lugar específico: a música popular.”
Talvez por integrar a música popular, Maria Bethânia tenha reunido milhares na Concha Acústica. Com certeza por ter valorizado o popular como objeto de pesquisa, Gilmar de Carvalho reuniu centenas no auditório da Reitoria no dia 21 de outubro, ao receber o título de professor emérito da UFC.
Homenagens póstumas são agridoces. Há um quê de justiça, outro de lamento. Mas Gilmar de Carvalho, publicitário, jornalista e pesquisador, teve a chance de ser titulado professor emérito — o mais alto título para um acadêmico — ainda em vida. Ocorre que ele se negou a recebê-lo.
O ano era 2019 e o reitor era Cândido Albuquerque, escolhido pelo então presidente Jair Bolsonaro, mesmo sendo o último votado na lista tríplice. Apesar de os presidentes terem autonomia para indicar qualquer um dos candidatos da lista, segue-se uma regra informal de aceitar o nome mais votado pelo corpo universitário.
O mais votado era Custódio Almeida. Bolsonaro reverteu o pacto democrático e empossou Cândido, recebido pelos alunos e servidores da UFC como interventor. E das mãos dele, Gilmar de Carvalho negou-se a receber a maior honraria dada a um professor universitário.
Vítima da Covid-19 em 2021, com 71 anos, e de uma política de descaso e negacionismo bolsonarista, Gilmar não pode ver a emoção das pessoas que fazem a universidade à qual dedicou décadas de carreira ao intitulá-lo emérito entre parênteses.
“Um motivo derradeiro deve nos orgulhar: a sua recusa em pactuar, sob qualquer pretexto, com nenhuma atitude ou contexto antidemocrático, como o estado de intervenção que, até pouco tempo, nossa universidade estava sujeita; não ele que a amava e respeitava seus ritos como manifestações legítimas e necessárias de reconhecimento e valorização do empenho coletivo em busca do bem comum”, discursou o professor Wellington Júnior no dia de entrega póstuma do título, 21 de outubro.
O receptor do título foi o pesquisador e fotógrafo Francisco Sousa, marido de Gilmar. A reitoria escolheu especificamente o primeiro dia de aula do segundo semestre do ano letivo para celebrar a homenagem, logrando lotar um auditório com emocionados estudantes e servidores.
“O Gilmar foi um estudioso do invisível”, reflete Custódio Almeida. “Ele tornou desejável a cultura popular, os símbolos do sertão. Ele era irreverente, de certa forma imprevisível e absolutamente dedicado à universidade”, descreve.
O nível de devoção de Gilmar e de Maria Bethânia à cultura, seja ela artística ou científica, e à tradução do invisibilizado pode ser uma das explicações para ambos mobilizarem o corpo universitário por inteiro.
“Eles são pessoas muito sintonizadas com a própria coerência”, destaca o reitor. “Chamam atenção daquilo que muitas vezes passa despercebido.” Do ponto de vista do professor Custódio, prestigiar essas pessoas confere prestígio à própria universidade. Especialmente ao colocar-se como instituição diversa e inovadora.
A UFC é berço de inovações tecnológicas, científicas e artísticas que vão além dos mares, serras e sertões cearenses. Da Gastronomia à Medicina, da Física à Comunicação, são os estudantes e professores competentes e diversificados que nutrem um histórico de contribuições à sociedade.
“Quando você tem esses ingredientes (gente, diversidade e formação técnica), é muito espontâneo você ter inovação e criatividade acontecendo o tempo todo”, define o reitor. Arrisca-se a dizer que essas estão entre as palavras mais adequadas para definir Gilmar de Carvalho e Maria Bethânia.
Os discursos do professor Wellington Júnior, em homenagem ao título de professor emérito de Gilmar de Carvalho, e de Maria Bethânia ao receber o título de doutora honoris causa comoveram o público.
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