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Gilmar e Bethânia, tradutores do invisível
Reportagem Especial

Gilmar e Bethânia, tradutores do invisível

Ao homenagear Gilmar de Carvalho e Maria Bethânia com as mais altas honrarias acadêmicas, a Universidade Federal do Ceará (UFC), que comemora 70 anos neste 2024, reuniu multidões e marcou o corpo docente e discente e a comunidade com a emoção de honrar a indissociável relação cultura-ciência

Gilmar e Bethânia, tradutores do invisível

Ao homenagear Gilmar de Carvalho e Maria Bethânia com as mais altas honrarias acadêmicas, a Universidade Federal do Ceará (UFC), que comemora 70 anos neste 2024, reuniu multidões e marcou o corpo docente e discente e a comunidade com a emoção de honrar a indissociável relação cultura-ciência
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Quatro mil fitas entregues depois, ainda tinha gente chegando à Concha Acústica, na Reitoria da Universidade Federal do Ceará (UFC), para presenciar a titulação de Maria Bethânia como doutora honoris causa na sexta-feira, 15 de novembro. “As fitas acabaram”, diziam os servidores, mas a Concha dilatava-se para seguir recepcionando todos.

A cantora vestia branco, como o faz todas as sextas-feiras, contrastando celestialmente com o azul-cetim da samarra e do capelo. Coroou-se a si mesma, levando a multidão ao delírio muitos minutos antes de discursar e, mais uma vez, conduzir o público ao êxtase ao cantar Gonzaguinha.


 

Uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira (MPB), Maria Bethânia não formou-se em nenhuma universidade — o que é totalmente diferente de dizer que o espaço acadêmico deixou de moldá-la. Em discurso, ela mesma atribuiu à íntima relação com diversas universidades brasileiras a formação artística e musical que a tornaram, afinal de contas, digna de um honoris causa.

Como explica o reitor da UFC, Custódio Almeida, o título de doutor honoris causa é atribuído a qualquer pessoa de fora da academia com ampla contribuição e representatividade em diferentes frentes. “A Maria Bethânia não é apenas uma cantora que canta bonito; ela é uma cantora que interpreta o Brasil”, define o reitor.

Os homenageados são indicados pela reitoria e deliberados e aprovados pelo Conselho Universitário. O objetivo, mesmo que informal, é que sempre haja unanimidade na aprovação, e o nome deve refletir aspectos sociais, culturais e de identificação para com o corpo da universidade.

Estavam presentes na entrega o ministro da Educação Camilo Santana e o governador Elmano de Freitas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Estavam presentes na entrega o ministro da Educação Camilo Santana e o governador Elmano de Freitas

A aceitação ao nome de Maria Bethânia foi muito rápida e natural. Com sua voz, reverberou discussões silenciadas pelo Brasil, como a luta pela natureza e pelos direitos de povos originários e afrodescendentes. Some-se ao fato de a UFC ter reconhecido a urgência de destacar mais mulheres entre os titulados.

Maria Bethânia é apenas a sexta mulher entre 98 doutores honoris causa titulados pela UFC, segundo lista oficial disponível no site da universidade. O primeiro ano de concessão da homenagem foi 1959 — ou seja, em 65 anos, a UFC só conseguiu pensar em seis mulheres dignas de serem doutoras.

 

 

“Para as comemorações dos 70 anos da UFC, nós consultamos a lista de homenageados e vimos que tinha pouquíssimas mulheres”, admite o reitor Custódio Almeida. “E a área de Cultura e Arte também precisava de mais gente.”

Essas ausências gritam. Não à toa, no fim de um discurso de 20 minutos, Bethânia agradeceu em adendo:

  

“Acrescento que estou aqui, em primeiro lugar, como mulher; e digo isso a fim de marcar a necessidade, sempre urgente, de ampliar o lugar das mulheres na sociedade civil brasileira.

E mais, estou aqui como trabalhadora, como uma das muitas trabalhadoras deste imenso, formidável e difícil país. Mas falo a partir de um lugar específico: a música popular.”

 

Talvez por integrar a música popular, Maria Bethânia tenha reunido milhares na Concha Acústica. Com certeza por ter valorizado o popular como objeto de pesquisa, Gilmar de Carvalho reuniu centenas no auditório da Reitoria no dia 21 de outubro, ao receber o título de professor emérito da UFC.

 

 

Gilmar de Carvalho, professor emérito (in memoriam)

Homenagens póstumas são agridoces. Há um quê de justiça, outro de lamento. Mas Gilmar de Carvalho, publicitário, jornalista e pesquisador, teve a chance de ser titulado professor emérito — o mais alto título para um acadêmico — ainda em vida. Ocorre que ele se negou a recebê-lo.

O ano era 2019 e o reitor era Cândido Albuquerque, escolhido pelo então presidente Jair Bolsonaro, mesmo sendo o último votado na lista tríplice. Apesar de os presidentes terem autonomia para indicar qualquer um dos candidatos da lista, segue-se uma regra informal de aceitar o nome mais votado pelo corpo universitário.

O mais votado era Custódio Almeida. Bolsonaro reverteu o pacto democrático e empossou Cândido, recebido pelos alunos e servidores da UFC como interventor. E das mãos dele, Gilmar de Carvalho negou-se a receber a maior honraria dada a um professor universitário.


 

Vítima da Covid-19 em 2021, com 71 anos, e de uma política de descaso e negacionismo bolsonarista, Gilmar não pode ver a emoção das pessoas que fazem a universidade à qual dedicou décadas de carreira ao intitulá-lo emérito entre parênteses.

“Um motivo derradeiro deve nos orgulhar: a sua recusa em pactuar, sob qualquer pretexto, com nenhuma atitude ou contexto antidemocrático, como o estado de intervenção que, até pouco tempo, nossa universidade estava sujeita; não ele que a amava e respeitava seus ritos como manifestações legítimas e necessárias de reconhecimento e valorização do empenho coletivo em busca do bem comum”, discursou o professor Wellington Júnior no dia de entrega póstuma do título, 21 de outubro.

 

 

O receptor do título foi o pesquisador e fotógrafo Francisco Sousa, marido de Gilmar. A reitoria escolheu especificamente o primeiro dia de aula do segundo semestre do ano letivo para celebrar a homenagem, logrando lotar um auditório com emocionados estudantes e servidores.

“O Gilmar foi um estudioso do invisível”, reflete Custódio Almeida. “Ele tornou desejável a cultura popular, os símbolos do sertão. Ele era irreverente, de certa forma imprevisível e absolutamente dedicado à universidade”, descreve.

 

 

Cultura-ciência, diversidade-inovação

O nível de devoção de Gilmar e de Maria Bethânia à cultura, seja ela artística ou científica, e à tradução do invisibilizado pode ser uma das explicações para ambos mobilizarem o corpo universitário por inteiro.

“Eles são pessoas muito sintonizadas com a própria coerência”, destaca o reitor. “Chamam atenção daquilo que muitas vezes passa despercebido.” Do ponto de vista do professor Custódio, prestigiar essas pessoas confere prestígio à própria universidade. Especialmente ao colocar-se como instituição diversa e inovadora.

A UFC é berço de inovações tecnológicas, científicas e artísticas que vão além dos mares, serras e sertões cearenses. Da Gastronomia à Medicina, da Física à Comunicação, são os estudantes e professores competentes e diversificados que nutrem um histórico de contribuições à sociedade.

“Quando você tem esses ingredientes (gente, diversidade e formação técnica), é muito espontâneo você ter inovação e criatividade acontecendo o tempo todo”, define o reitor. Arrisca-se a dizer que essas estão entre as palavras mais adequadas para definir Gilmar de Carvalho e Maria Bethânia.

 

 

Discursos da emoção

Os discursos do professor Wellington Júnior, em homenagem ao título de professor emérito de Gilmar de Carvalho, e de Maria Bethânia ao receber o título de doutora honoris causa comoveram o público.

Leia os textos na íntegra clicando nas imagens abaixo:

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