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Endometriose: uma doença invisível
Reportagem Especial

Endometriose: uma doença invisível

Essa condição afeta 7 milhões de mulheres no Brasil, e mais de 40% dos casos levam à infertilidade

Endometriose: uma doença invisível

Essa condição afeta 7 milhões de mulheres no Brasil, e mais de 40% dos casos levam à infertilidade
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Uma jovem caminha tranquilamente por uma rua movimentada, seguindo em direção ao seu destino para realizar os seus compromissos diário. Em questão de instantes, ela começa a se debruçar de dor. Algumas pessoas ao seu redor se aproximam dela e perguntam: “Moça, você está sentindo alguma coisa?”

Ela responde positivamente, sem oferecer muitos detalhes sobre o que estava sentindo. Em seguida, as pessoas sem entender o que estava acontecendo e com interesse genuíno em ajudar, insistem em saber o que a jovem sentia, mas ela não responde. E com semblante envergonhado, simplesmente informa que não está bem e sente muito desconforto.

O relato acima foi uma de algumas situações vividas por Karine Oliveira, 31 anos, estudante de Medicina e diagnosticada com endometriose aos 24 anos.

Karine Oliveira, estudante de medicina, tem 31 anos e foi diagnosticada com endometriose aos 24 anos.(Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Karine Oliveira, estudante de medicina, tem 31 anos e foi diagnosticada com endometriose aos 24 anos.

O desconforto vivido pela jovem é consequência da falta de informação presente em parte da sociedade que ainda não entende a gravidade dessa patologia e como ela pode afetar a saúde e qualidade de vida da população feminina.

A endometriose, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta cerca de 176 milhões de mulheres no mundo, sendo mais de 7 milhões no Brasil. Já o Ministério da Saúde aponta que mais de 40% dos casos levam à infertilidade.

Conforme Leonardo Bezerra, professor de ginecologia pela UFC e orientador de estudantes de Medicina da residência médica pela Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), a endometriose é uma condição ginecológica de caráter inflamatório e associada à dor pélvica crônica.

“Ela recebe esse termo por conta do endométrio, uma camada interna do útero que é eliminada durante a menstruação da mulher. Além disso, a principal causa dessa patologia é o atraso na menstruação, levando ao retorno do fluido e células menstruais para as trompas, derramando o sangue na cavidade pélvica”, afirma.

Ele também explica que após o retorno do fluido menstrual, boa parte das mulheres consegue reabsorver esse processo no organismo. No entanto, a pequena parcela que não consegue passam a ter sintomas adversos a esse processo.

“80% das mulheres conseguem reabsorver esse conteúdo do endométrio. Porém, 20% não consegue digerir e destruir esses focos que surgem por menstruação retrógrada. Dessa forma, o sistema imunológico não consegue fazer com que essas células sejam eliminadas, causando dor crônica”, detalha.

 

Conheça a endometriose

 

Os principais sintomas estão relacionados a fatores inflamatórios numa área chamada endométrio ectópico, também conhecido como focos de endometriose. Esses focos produzem substâncias inflamatórias como no endométrio normal na menstruação. E os mesmos estímulos hormonais que agem no endométrio normal também agem nos focos de endometriose.

“Com isso, surgem sinais na mulher como: descamação, sangramento, liberação de fatores inflamatórios e dor intensa na região pélvica, dor de cólica menstrual de grande proporção. Além disso, também pode gerar grande incômodo durante a relação sexual e infertilidade em alguns casos”, aponta.

Na vivência de Karine Oliveira, os principais desafios de ser uma mulher com endometriose estão relacionados a situação de insegurança no meio social em que ela sentiu muita dor, mas principalmente em seu relacionamento de casal, devido aos sintomas da doença.

Karine Oliveira no dia de sua cirurgia(Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Karine Oliveira no dia de sua cirurgia

A estudante de Medicina se submeteu em outubro a um procedimento cirúrgico para eliminar os focos da endometriose. A cirurgia foi realizada na Meac, hospital vinculado à Universidade Federal do Ceará, referência do SUS no tratamento de pacientes com a doença e que conta com um ambulatório exclusivo para o recebimento de pacientes com endometriose.

Karine conta que desde os primeiros sintomas do problema, em 2018, que vem sendo acompanhada pela instituição, a qual lhe indicou o uso de anticoncepcional de forma contínua como tratamento. O procedimento cirúrgico foi indicado após ter sido observado que os focos da endometriose estavam aumentando na jovem, apesar do acompanhamento recebido para a condição.

Como explica o ginecologista Leonardo Bezerra, esse processo é denominado laparoscopia e consiste na eliminação dos focos que estão afetando a qualidade de vida da doença.

“Pelo fato de ser uma cirurgia que requer muita atenção do especialista, não é possível sua realização a olho nu, por isso é feita por meio de uma câmera onde pode se observar macroscopicamente a região dos focos da endometriose e removê-los”, justifica.

Para ele, apesar de existirem algumas formas de tratar a patologia, não existe uma cura para a condição. Mesmo com a remoção dos focos de endometriose por meio da laparoscopia, é possível que eles retornem com o decorrer do tempo enquanto a mulher estiver durante o período fértil, visto que a causa do problema se encontra no atraso da menstruação.

“Mesmo que tire as lesões macroscopicamente visíveis por meio da cirurgia, existe sempre o potencial daquelas células retornarem, voltarem a produzir e a secretar substâncias”, finaliza.

Leonardo Bezerra é professor de ginecologia pela UFC e orientador de estudantes de medicina da residência médica pela Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), (Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Leonardo Bezerra é professor de ginecologia pela UFC e orientador de estudantes de medicina da residência médica pela Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac),

Apesar disso, hoje em dia Karine Oliveira foca no atual momento em que ela vive e direciona a sua atenção em ajudar a outras mulheres a terem o conhecimento sobre a doença, bem como os cuidados com a saúde ginecológica. Para isso, ela diariamente grava vídeos em suas redes sociais mostrando a sua rotina e falando sem medo da doença.

“Eu percebi que muitas mulheres não têm informação sobre a saúde da mulher. Quando vou no posto de saúde para fazer o exame de prevenção de colo de útero, sempre pergunto no Instagram se as minhas seguidoras já fizeram o exame. E muitas mulheres não sabem da sua importância e que também não sabiam que no posto de saúde existe esse exame”, relata.

A estudante afirma ainda que não se sente constrangida de ter e falar sobre a doença. “E eu gosto de deixar bem claro isso porque muitas mulheres não sabem o que é a doença, muitas têm e não sabem e não têm o acompanhamento. E eu lido no sentido de transmitir informação para outras pessoas”, conclui.

 

 

Procure se cuidar

A ginecologista e cirurgiã ginecológica, Renata Menezes, explica que os principais fatores envolvidos no desenvolvimento da endometriose são genéticos, hormonais e imunológicos, sem esquecer da influência da alimentação e atividade física na severidade dos sintomas.

Renata Menezes é ginecologista e cirurgiã ginecológica(Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Renata Menezes é ginecologista e cirurgiã ginecológica

⁠Ela destaca que a importância do diagnóstico e tratamento precoce é diretamente relacionada à melhora da qualidade de vida das pacientes a longo prazo, e na prevenção da progressão da doença, que pode atingir órgãos importantes como intestino, bexiga, ureteres e nervos.

“As mulheres demoram a procurar atendimento medico porque são educadas que “sentir dor é normal”, ou não tem clareza sobre os sintomas e não sabem associar à doença, e muitas vezes tem até vergonha de dizer ao médico que tem dor na relação sexual”, exemplifica.

Para a ginecologista, a doença por muito tempo foi banalizada e a dor das mulheres foi sendo normalizada, no entanto, a evolução dos métodos diagnósticos e também de tratamento estão fazendo com que o conhecimento sobre a doença seja cada vez mais difundido nos últimos anos.

“Hoje em dia, as mulheres suspeitam que tenha a doença e buscam tratamento. Vale lembrar que a faixa etária mais comum da endometriose é dos 20 aos 40 anos, mas pode acontecer desde a primeira menstruação (menarca) até a menopausa”, destaca.

O tratamento da endometriose pode ser hormonal e/ou cirurgia, vai depender de cada caso. A especialista afirma que todos os tratamentos são individualizadas para cada mulher, priorizando os menores efeitos colaterais para uma melhor qualidade de vida

“Doenças mais graves afetam comumente o diafragma, o músculo da respiração. O que sabemos também é que quem tem endometriose tem 20% mais risco de ter infarto ou AVC, então as pacientes devem se cuidar mais ainda para evitar essas complicações”, alerta.

 

 

Os tratamentos alternativos

A médica Renata Menezes lembra que os processos alternativos, como drogas antiestrogênicas, ainda são pouco estudados para endometriose, por se tratar de uma doença benigna, podendo ter mais efeitos colaterais do que benefícios durante o tratamento.

“As drogas mais utilizadas são os inibidores de GnRH, que induzem uma “menopausa temporária” e adormecem os focos de endometriose, diminuindo a inflamação antes de uma cirurgia”, diz. Para ela, o principal foco é no tratamento hormonal, visando o controle dos focos de endometriose.

O procedimento para inserir o dispositivo intrauterino (DIU) é rápido, mas envolve um grau de desconforto que varia muito de mulher para mulher(Foto: Divulgação/Reproductive Health Supplies Coalition)
Foto: Divulgação/Reproductive Health Supplies Coalition O procedimento para inserir o dispositivo intrauterino (DIU) é rápido, mas envolve um grau de desconforto que varia muito de mulher para mulher

“Pode ser com várias vias, como DIU hormonal, implante subdermico, comprimidos e adesivo, além da mudança no estilo de vida com dieta, exercícios físicos, tratamento multidisciplinar com acupuntura, fisioterapia pélvica e terapia”, esclarece.

Conforme enxerga a ginecologista, os principais desafios no combate a doença são a falta de disponibilidade de profissionais especializados nos exames para detecção da doença, tanto no SUS como nos planos de saúde. “Além disso, a demora para procurar especialistas faz com que esse diagnóstico seja mais tardio”, pontua.

 

 

Vivendo na sombra do medo

Camily Emily sempre sentia dores que não a deixava nem levantar da cama, e isso durava uns três a quatro dias do início de sua menstruação. Em maio desse ano, o que parecia algo normal “de mulher”, se tornou um dos maiores desafios na vida da jovem de 20 anos.

 Camily Emily é estudante de enfermagem e foi diagnosticada com endometriose aos 20 anos (Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Camily Emily é estudante de enfermagem e foi diagnosticada com endometriose aos 20 anos

Suas dores aumentaram e começou a se agravar durante seu período fértil, sentida até em sua lombar. Camily é estudante de enfermagem, então ela já desconfiava que poderia ter endometriose, o que se confirmou em julho desse ano.

“Fiquei muito triste, porque um dos meus maiores sonhos era ser mãe, então eu queria procurar fazer o tratamento logo para não correr o risco da infertilidade. O médico falou que tive muita sorte de procurar o diagnóstico ainda muito cedo”, relata.

A condição é genética, sua mãe estava passando pelo mesmo processo, o qual fez a retirada do útero recentemente. “Já desconfiava que ela tinha, ela sentia as mesmas dores que eu. Mandei ela fazer os exames também. É algo de família, meus filhos podem ter”, conta.

A ginecologista Renata Menezes costuma dizer que a endometriose não mata, mas pode afetar diretamente a vida da mulher, sendo fundamental o acompanhamento psicológico.

“Devido às crises dolorosas, muitas delas perdem o emprego por falta, não conseguem se manter ativas em nenhuma atividade, algumas não conseguem manter o casamento e muitas enfrentam a infertilidade. Além das consequências físicas, pois quando avançada às vezes fazem elas perderem órgãos como rim ou uma parte do intestino”, lamenta.

A especialista afirma também que 40% das pacientes com endometriose vão ter infertilidade devido a vários fatores, como redução da qualidade dos óvulos, dificuldade da captação dos óvulos pelas trompas, ou dificuldade de implantação embrionária.

 

Recomendações para lidar com a endometriose

 

“O mais importante é que as mulheres entendam que se ela não usar nenhum método contraceptivo por mais de 1 ano, e não engravidar, tem que ser investigado endometriose mesmo na ausência de outros sintomas, pois a infertilidade é um grande sintoma da doença. E acima dos 35 anos, esse tempo é reduzido para 6 meses de indicação para a investigação”, esclarece.

Camily Emily também foi diagnosticada com a Síndrome de Ovários Policísticos (SOP), e quando realizar o seu sonho de ser mãe pretende retirar o seu útero. Ela segue atualmente se tratando e com um estilo de vida saudável, indo para academia e se alimentando bem.

“Essa parte foi a mais difícil, pois me sinto uma formiguinha, tento não comer com excesso. Sigo me tratando porque quero ter meus filhos e não quero sentir dor, porque é insuportável, isso afeta até suas relações. Além disso, a doença se espalha se não for tratada, e até hoje lembro que meu médico disse que ninguém merece viver sentindo dor”, desabafa.

Ela também destaca a importância do acompanhamento psicológico. “Não importa qual seja a dor que você sente, não é normal. Quanto mais cedo o diagnóstico mas fácil vai ser seu tratamento. Eu fico tão feliz quando eu não estou sentindo dor. O importante é você ter informação de qualidade, é o primordial. E calma viu? Eu sei que é difícil, mas a união faz a força”, conclui.

A ginecologista Renata Menezes destaca a importância das mulheres não desistirem de buscar o diagnóstico da doença, principalmente quando tem sintomas muito típicos, além da procura por especialistas que tratem da doença com compromisso.

“Gostaria de frisar a importância do tratamento multidisciplinar. Importância da dieta, exercícios e mudanças no estilo de vida para minimizar os sintomas. Não desistam do processo. Sei que é difícil conviver com uma doença crônica, progressiva, mas procurem especialistas para estar do seu lado e não se sintam sozinhas. Meu lema é: Por uma vida sem dor”, finaliza.

 

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