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O preço do sangue azul: como absorventes testados com água impactam quem menstrua
Reportagem Especial

O preço do sangue azul: como absorventes testados com água impactam quem menstrua

Pesquisa estadunidense identificou que produtos de higiene menstrual suportam quantidades diferentes de sangue das anunciadas. Variação pode impactar a saúde de pessoas que menstruam e reforçar a pobreza menstrual

O preço do sangue azul: como absorventes testados com água impactam quem menstrua

Pesquisa estadunidense identificou que produtos de higiene menstrual suportam quantidades diferentes de sangue das anunciadas. Variação pode impactar a saúde de pessoas que menstruam e reforçar a pobreza menstrual
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Se falar de menstruação já é um tabu daqueles, imagine só falar dos vazamentos menstruais. Imagine a angústia de falar das inúmeras técnicas que pessoas que menstruam precisam recorrer para evitar vazamentos ou para escondê-los; seja amarrar um casaco na cintura ou usar mais de um absorvente ao mesmo tempo.

O sangue menstrual parece assustar tanto que eles nem aparecem nas propagandas de absorventes. O que demonstra a eficácia deles é um estranho líquido azul, menos consistente que os corrimentos menstruais… Mas poucas pessoas sabem que o tal “sangue azul” representa a substância usada para testar os produtos de higiene menstrual: água.

Uma pesquisa publicada na revista científica BMJ Sexual & Reproductive Health identificou que, por causa disso, alguns produtos de higiene menstrual aguentam menos sangue do que o esperado, enquanto outros absorvem mais sangue do que o previsto com a água ou composto salino. Isso pode impactar a percepção das mulheres sobre a própria menstruação e desencadear problemas de saúde menstrual.

 

 

A real capacidade dos produtos de higiene menstrual

Passe o mouse ou clique nas imagens para ver qual produto absorve mais sangue menstrual (mL)

 

Em geral, a menstruação em adultas dura até oito dias com um fluxo entre 10 a 90 mL diários. Ocorre que a textura e o peso de 90 mililitros de água é totalmente diferente de sangue menstrual: o sangue é mais denso, muitas vezes expelido em coágulos.

Pela diferença de absorção entre os tipos de absorvente, fica difícil medir e definir quem tem fluxos mais intensos. “Nós estamos, muito provavelmente, sub-diagnosticando mulheres com fluxo intenso”, analisa a autora da pesquisa, Bethany Samuelson Bannow, professora de Medicina na Universidade de Saúde e Ciências de Oregon (Estados Unidos).

“Nós descobrimos que alguns produtos, especificamente a calcinha absorvente, absorvem bem menos sangue que água salina. Já os tampões absorvem mais sangue que água salina. Alguns absorventes podem absorver 20 a 50 mL de sangue, e nós consideramos 80 mL em um ciclo inteiro como um fluxo intenso”, explica Bannow. “Então, se uma pessoa satura dois desses absorventes em todo o ciclo, ela automaticamente já preenche o critério de sangramento pesado.”

“Mas, na prática, quando estamos discutindo o histórico da paciente, a gente não necessariamente pergunta qual tipo de produto ela está usando. Nós só assumimos que elas estão usando produtos regulares que absorvem menores quantidades.”

As menstruantes intensas perdidas na tradução entre água e sangue podem sofrer com deficiência de ferro e anemia, assim como estar sujeitas a outras doenças. A médica ginecologista Lilian Serio cita as infecções bacterianas e fúngicas como as maiores complicações.

Para quem usa absorventes internos e coletores/discos menstruais, o risco é o desenvolvimento de bactérias. “Normalmente são aquelas que dão um cheiro mais forte. Ocorre quando o sangue fica muito tempo acumulado no interior da vagina. Por exemplo, algumas mulheres sangram muito e aí compram um coletor grande, mas aí ela passa o dia inteiro sem esvaziar esse coletor. Aí ele vira um meio de cultura para crescer as bactérias”, ela comenta.

Absorventes internos e externos, quando mau utilizados ou usados por muito tempo, podem favorecer infecções.(Foto: Karolina Grabowska / Pexels)
Foto: Karolina Grabowska / Pexels Absorventes internos e externos, quando mau utilizados ou usados por muito tempo, podem favorecer infecções.

Já as fúngicas geralmente ocorrem quando o sangramento implica no uso constante dos absorventes externos, abafando a região vaginal. “Mesmo que ela troque o absorvente várias vezes ao dia, por exemplo, ela vai usar absorventes por uma semana. Então esse abafamento vira um meio de cultura para o fungo; é aquela inflamação que as mulheres ficam reclamando que depois da menstruação fica com coceira, ardendo com corrimento.”

Se o único método para medir o tipo de fluxo sanguíneo das pessoas depende dos produtos de higiene menstrual, então é crucial que a capacidade deles seja testada com substâncias mais próximas ao sangue menstrual.

“Acho que nós (médicos) deveríamos estar mais atentos ao que estamos perguntando. Precisamos atualizar nossas ferramentas e incorporar novos produtos menstruais nas entrevistas, especialmente coletores e discos menstruais (por suportarem mais sangue)”, reforça a dra. Bannow.

 


Fluxo que dói no bolso

Mas há outro empecilho quando o assunto é absorventes: a pobreza menstrual. O termo refere-se à falta de condições de fazer a higiene menstrual adequadamente, principalmente pela ausência de recursos para comprar absorventes, ou a falta de acesso à infraestrutura e serviços de saneamento básico. Não ter acesso a informações sobre menstruação também configura pobreza menstrual.

Imagine ter um fluxo intenso e não ter dinheiro suficiente para comprar absorventes que suportem o sangramento, ou então comprar produtos que prometem uma absorção maior do que a real. Pior, imagine simplesmente não saber que existem outras opções mais adequadas para o seu tipo de fluxo.

De acordo com a Unicef, pessoas em estado de vulnerabilidade e que menstruam estão muito suscetíveis a doenças no seu sistema reprodutor. Como elas não têm acesso aos itens de higiene, acabam improvisando outros meios para conter o sangramento.

Um levantamento do Instituto Locomotiva sobre pobreza menstrual identificou que 77% das mulheres já usaram outros itens no lugar de produtos de higiene menstrual. O papel higiênico é o material mais utilizado para a substituição. Enquanto para as mulheres ricas essa troca ocorre por esquecimento, as pobres não têm dinheiro para arcar com os custos.

 

 

Itens usados para substituir absorventes

Passe o mouse ou clique nas linhas para acessar mais informações

 

Até 2022, a tributação de absorventes no Brasil era de, aproximadamente, 25% do preço do produto; assim, estima-se que a mulher brasileira pagava, em média, R$ 4.849 de impostos sobre absorventes. Foi somente com a Lei nº 14.214/2021 que os absorventes entraram passaram a ser considerados como itens essenciais da cesta básica. No Ceará, desde setembro de 2021 os absorventes íntimos, coletores e discos menstruais foram isentos de ICMS, incluídos na cesta básica pelo Decreto nº 34.178.

Segundo o Instituto Locomotiva, “35% de mulheres afirmam que os gastos com produtos de higiene pesam na renda mensal e precisam economizar com estes itens, o que equivale a aproximadamente 20 milhões de mulheres”.

Aproximadamente 20 milhões de brasileiras precisam economizar com a compra de absorventes.(Foto: Karolina Grabowska / Pexels)
Foto: Karolina Grabowska / Pexels Aproximadamente 20 milhões de brasileiras precisam economizar com a compra de absorventes.

“A definição atual é que o sangramento intenso impacta a qualidade de vida social, emocional, material e/ou física das mulheres. Nós incluímos a pobreza menstrual aqui: se alguém precisa escolher entre comprar absorventes ou comida, então é uma preocupação de saúde pública”, afirma a dra. Bannow.

A menstruação intensa também é especialmente inconveniente quando ocorrem vazamentos. Ainda no levantamento do Instituto Locomotiva sobre pobreza menstrual no Brasil, um quarto das mulheres já sofreram algum constrangimento ou humilhação por estarem menstruadas. “Essa proporção é maior entre mulheres com menor renda, menos escolarizadas e com fluxo menstrual intenso”, descreve o estudo.

 

 

Ambientes onde as mulheres foram constrangidas ou humilhadas por estarem menstruadas

 

A vergonha em torno da menstruação somada à falta de dinheiro para comprar os absorventes impacta diretamente na vida de quem menstrua. Quase 3 milhões das estudantes atuais (33%), em qualquer nível de ensino, já faltaram à escola ou à faculdade por estarem menstruadas. Delas, mais de 2,4 milhões faltaram mais de uma vez (27%).

O mesmo é verdade para as que trabalham. Segundo o instituto, as faltas anuais das 5,5 milhões de trabalhadoras por causa da menstruação equivaleriam a uma renda de R$ 2,4 bilhões.

O coletor menstrual é um dos produtos menstruais com maior capacidade.(Foto: Karolina Grabowska / Pexels)
Foto: Karolina Grabowska / Pexels O coletor menstrual é um dos produtos menstruais com maior capacidade.

Para a médica ginecologista Lilian Serio, além de disponibilizar informações sobre a variedade de produtos de higiene menstruais e reduzir os custos deles, “não pensar em manter a menstruação” também deveria ser uma opção.

“Muitas vezes, tem mulher que só vai ser feliz e saudável sem a menstruação. Afinal, tem mulher que realmente fica doente durante a menstruação, com cólicas muito fortes, que impactam ela no trabalho, por exemplo”, comenta. Para isso, é preciso investir em mais estudos voltados para os efeitos da não menstruação no corpo humano.

“A gente tem diversos estudos mostrando que não menstruar não é ruim, o problema é como não menstruar”, diz. O uso contínuo de anticoncepcionais é uma maneira de parar definitivamente a menstruação, mas já existem pesquisas indicando que o uso do medicamento a longo prazo pode estar relacionado ao desenvolvimento de câncer de mama.

“Então, como não menstruar de um jeito saudável? Obviamente não existe por completo, porque tudo vai envolver hormônio, mas é uma coisa interessante de se investigar”, defende.

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