O estupro ocorrido contra uma mulher no meio da rua no bairro Henrique Jorge, em Fortaleza, no início de novembro, ou o sofrido por uma criança de seis anos na rua de casa no Crato, no mesmo mês, estão longe de serem casos isolados no Ceará.
De 2019 a outubro de 2024, 1.357 estupros em via pública foram registrados no Estado. Isso significa que a cada 38 horas, uma pessoa foi vítima deste crime sexual que tem como característica ser praticado sem consentimento, com violência ou grave ameaça.
Apenas em 2024, foram 164 registros. Os dados foram fornecidos ao O POVO pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Em 87,3% dos casos (1.185) as vítimas são mulheres. Entre elas, 319 são crianças de até 11 anos. Essa é a segunda faixa etária mais afetada pelos estupros, com 403 casos no total.
Adolescentes - meninos e meninas de 12 a 17 anos - têm a maior quantidade de registros: 471. Adultos foram vítimas em 397 casos e idosos acima de 60 anos em 11.
Apesar da cidade com maior número de estupros em via pública ser Fortaleza (291), os registros não estão limitados à Capital. Foram denunciados casos em pelo menos 165 municípios do Ceará.
Por ocorrer em local público e de modo aleatório, na maioria das vezes a vítima não conhece o autor do crime. Mesmo assim, a delegada titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Fortaleza, Giselle Martins, orienta que a denúncia rápida é imprescindível.
“Essa vítima vai fornecer todas as informações da forma mais detalhada possível sobre o local do crime, horário e as características do agressor. E é importante que ela venha fazer a denúncia o mais rápido possível, porque os vestígios dos crimes sexuais se perdem”, explica.
A vítima deve passar por um exame de corpo de delito e apresentar as roupas que utilizava no momento do crime, se possível. Além disso, é fundamental fornecer informações sobre o local para que seja verificada a presença de câmeras de segurança que possam ter flagrado o autor.
As denúncias podem ser feitas em qualquer delegacia, mas as especializadas em defesa da mulher são preparadas para lidar com esse tipo de caso. “Não é só para os crimes de violência doméstica”, frisa a delegada.
Outro crime que ocorre muitas vezes em via pública é a importunação sexual: ato praticado contra alguém, sem consentimento, para satisfazer a própria libido ou de terceiros.
Toques indesejados, apalpadas, comentários de cunho sexual, exposição de órgãos genitais ou masturbação em público são algumas das práticas que podem ser consideradas como importunação, conforme a lei.
Nos últimos seis anos, 638 denúncias de importunação em via pública foram registradas no Ceará. A maioria das vítimas desse crime (556) também é de mulheres.
No entanto, a quantidade de casos pode ser muito maior, já que em boa parte as denúncias formais por meio de um Boletim de Ocorrência não chega a ser feita.
“Elas têm muito medo de serem descredibilizadas na delegacia, ou seja, de ficar a palavra dela contra a palavra do autor”, explica a delegada, que garante que o que a vítima disser será considerado uma prova.
Mesmo sem testemunhas ou identificação do autor, a delegada enfatiza que a vítima não deve hesitar em registrar a ocorrência.
“Em muitos dos casos que a gente conseguiu elucidar, a vítima forneceu pouquíssimas informações, e nós conseguimos apurar, identificar o autor e concluir a investigação com o indiciamento”, relata Giselle.
De acordo com a delegada, muitas mulheres atendidas ainda se culpam pela ocorrência do crime, mencionando que andavam na rua “fora de hora” ou julgando a própria roupa.
“É bom deixar claro que nunca vai ser culpa da vítima e que isso não pode ser um impedimento para ela vir fazer a denúncia”, afirma.
O registro também é importante para que a dimensão do problema seja reconhecida pelo poder público. “A subnotificação é um dos maiores obstáculos no enfrentamento da violência sexual, porque é através desses dados que o estado se utiliza para a criação de políticas públicas eficazes, para o planejamento das ações preventivas”, salienta.
Por mais que seja importante registrar o crime em uma delegacia, ter o cuidado físico e emocional logo após um estupro é essencial para a vítima.
Débora Britto, ginecologista e coordenadora da Rede Pontos de Luz, da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), orienta que a vítima de um estupro acesse o serviço de saúde antes mesmo do boletim de ocorrência.
“Não existe diferença independentemente de ter sido um episódio único, perpetrado por uma pessoa desconhecida, ou um episódio de violência crônica, perpetuado por uma pessoa conhecida. O importante é que, assim que ela perceba e compreenda essa situação de violência vivida, procure imediatamente um serviço de saúde”, afirma.
Como parte dos primeiros cuidados após uma violência sexual, há as profilaxias para evitar Infecções Sexualmente Transmitidas (ISTs), que consistem na oferta de medicamentos específicos para evitar a infecção por sífilis, gonorreia, clamídia, tricomoníase e HIV.
Também devem ser ofertados exames ginecológicos, quando necessários, e o contraceptivo de emergência, conhecido popularmente como pílula do dia seguinte. Tanto adultos como crianças devem ter acesso às profilaxias.
A rede Pontos de Luz é formada por hospitais com profissionais capacitados para lidar com vítimas de violência sexual. Em Fortaleza, três unidades de referência estão incluídas na rede: Hospital Geral de Fortaleza (HGF), Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) e Hospital Geral César Cals (HGCC).
No entanto, conforme Débora, a rede busca capacitar unidades em diferentes níveis de cuidado, desde a Unidade Básica de Saúde até hospitais, em todo o Estado. Independente de fazer parte ou não da rede, a médica afirma que todas as unidades de saúde têm o dever de atender pacientes vítimas de violência sexual.
“Se ela [a unidade] não consegue ofertar tudo que essa paciente necessita, ela precisa encaminhar essa paciente para completar essa integralidade do cuidado por meio da rede de regulação”, explica.
Isso também inclui a interrupção da gravidez proveniente do estupro, procedimento garantido por lei. “Mesmo que ela esteja no menor município do nosso Estado, ela consegue alcançar a integralidade do cuidado, senão naquele pequeno município, sendo encaminhada através da nossa central de regulação para um equipamento mais qualificado”, garante.
O medo é uma constante nos deslocamentos diários de mulheres em Fortaleza. Seja de sofrer um assalto ou uma violência sexual. É o que diz uma pesquisa realizada pelos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, com apoio da Uber.
Segundo a pesquisa, 73% das mulheres de Fortaleza têm medo de serem estupradas durante os deslocamentos e 66% têm medo de serem vítimas de importunação sexual ou assédio.
Das 350 entrevistadas, 65% afirmaram já ter sofrido alguma violência na rua, como olhares insistentes ou cantadas (31%), assaltos ou furtos (35%), importunação ou assédio sexual (19%), preconceito ou descriminação devido a alguma característica (14%), agressão física (6%), estupro (5%) ou racismo (10% - entre entrevistadas negras).
“Eu já fui seguida duas vezes. E você fica muito mal, fica com muito medo de voltar naquela rua. Mesmo assim, para não ficar com um problema psicológico, a gente tem que arregaçar as mangas e voltar, porque não tem como parar de trabalhar, estudar”, relata Rayssa Batista, 30, assistente administrativa.
A ausência de policiamento, falta de iluminação pública, ruas desertas e vazias e espaços públicos abandonados são os principais fatores mencionados pelas mulheres que influenciam na sensação de insegurança.
A corretora de seguros Elizabete Lima, 21, conta que um atraso de 30 minutos para sair do trabalho no Centro, às 18 horas em vez de 17h30, já significa mais um gasto.
“Eu já peço um Uber. Não tem perigo de eu andar 18h nas ruas do Centro, quando você sai é aquele breu. Pra gente que é mulher, já dá aquele calafrio”, afirma.
Elizabete toma medidas individuais para se sentir mais segura. “Eu sempre mando a localização pro meu marido. ‘Desci na estação, tô na parada’. Pelo menos ele sabe onde eu vou estar. É horrível, né? A gente não tem segurança nenhuma”, conta.
Rayssa também adotou uma postura mais fechada para tentar se sentir mais protegida. “Já foi dito pra mim por colegas homens que quando você mostra muito os dentes, você está dando abertura, e não é. Às vezes você só tá querendo ser educada, gentil. Eu aprendi que então agora eu tenho que me fechar”, diz.
Desde que sofreu um assalto próximo de casa no qual o autor do crime a apalpou e queria que ela “subisse na bicicleta com ele e fosse embora”, Aline Viana, 40, diz se deslocar em pânico.
O trabalho como vendedora de comida na rua também é um fator que gera ansiedade. “Pra gente que é mulher, fica mais perigoso ainda. Porque se aproveitam muito. Você fica naquela tensão”, afirma.
O trauma de ser ameaçada por um assaltante também faz com que Marília de Sousa, 33, ande com medo e peça ao esposo que a deixe na parada de ônibus e a busque no terminal quando volta do trabalho.
Presenciar uma importunação sexual dentro do ônibus contra uma adolescente também a deixou mais receosa. “A gente já fica assustada. Se não tivesse nenhuma pessoa ali perto? Ninguém sabe o que ele [autor do crime] poderia fazer com ela”.
Para Elizabete, a insegurança dentro do transporte público é cotidiana. Ela relata já ter passado por assédios e ter reagido. “Faço um escândalo. Já basta a gente passar por tudo que a gente passa, ter que aguentar calada é horrível”, diz.
Apesar dos crimes sexuais ocorridos em espaços públicos serem, por vezes, mais chocantes, a maioria dos estupros e estupros de vulneráveis registrados no Ceará ainda ocorrem dentro de residências particulares.
Dados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), obtidos por meio de Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que, em 2023, 73% dos 1.768 casos de estupro de vulnerável ocorreram dentro de casa.
A via pública foi o segundo lugar no qual esse crime mais ocorreu, com registro de 182 casos. Escola ou colégio aparece em terceiro, com 78 ocorrências.
A situação se repete nos dados de estupro, com as residências tendo o maior número de crimes (215), a via pública tendo a segunda maior quantidade (76), seguida de hotel ou pensão (10) e casa comercial (9).