“Mercado reage à saúde do presidente Lula”; “O mercado esperava uma inflação maior”; “Mercado ficou silencioso diante dos mais de R$ 200 bi torrados na eleição de Bolsonaro”.
Você deve ter acompanhado essas e outras notícias nas plataformas do O POVO e em outros veículos de comunicação se referindo ao “mercado”.
A palavra, para algumas pessoas, pode remeter à cena de pessoas esbaforidas e gritando ao telefone enquanto lidam com as variações de investimento na Bolsa de Valores.
Mas, afinal, quem é esse ente cujas opiniões e reações são tão importantes ao ponto de pautar as discussões políticas de toda uma nação?
Por definição, o mercado financeiro é um ambiente de negociação de produtos financeiros. Como em toda negociação, existem duas partes, que possuem interesses parecidos e fecham um acordo.
O mercado financeiro é onde ocorre o alinhamento de interesses entre essas partes. Enquanto alguém tem dinheiro sobrando e precisa de rendimentos, outros precisam de dinheiro para fazer seus projetos andarem.
Nesse mercado, pessoas e empresas tomam e emprestam dinheiro, de acordo com o momento e para que esse fluxo de valores ocorra de uma maneira fluida, transparente e organizada, o Brasil conta com o Sistema Financeiro Nacional.
Quem empresta também pode ser visto como comprador, pois está adquirindo o débito de uma empresa, de um governo ou de uma pessoa para receber o pagamento com juros. Dessa forma, o sistema financeiro brasileiro é dividido em quatro grandes mercados.
Angélica Moreira, superintendente da Associação dos Bancos do Rio de Janeiro (Aberj) explica que os aplicadores de dinheiro, que ficaram informalmente conhecidos como “Faria Limers”, são quem dão o tom das chamadas “reações do mercado”.
“Faria Limer se refere às pessoas e empresas que atuam nessa região de São Paulo, a avenida Brigadeiro Faria Lima, que é um importante centro financeiro, comparável à Wall Street americana”, afirma.
A área concentra grandes empresas, bancos, fundos de investimento e startups, contribuindo significativamente para o PIB nacional, geração de empregos e fomento à inovação tecnológica.
“Em resumo, a Faria Lima é apresentada como um motor da economia brasileira”, explica Angélica.
Assim, quando se diz que o mercado gostou ou não, significa dizer que os aplicadores, que são quem colocam e tiram dinheiro do mercado, tiveram uma determinada reação.
Contudo, para entender por que esses aplicadores reagem bem ou mal a determinados fatos, é preciso entender como o mercado financeiro se formou no Brasil.
De acordo com o doutor em Sociologia e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo, Décio Saes, a elite brasileira - que é quem controla movimentos no mercado financeiro - possui características específicas que moldaram o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Saes argumenta que, na transição de uma sociedade escravista moderna para uma sociedade capitalista, “não se formou no Brasil uma burguesia nacional capaz de liderar o processo de industrialização e propor um projeto de desenvolvimento capitalista para o país”.
O professor ressalta que a industrialização brasileira foi tardia em comparação com os países do "Primeiro Mundo".
“Esse atraso, juntamente com a estreiteza do mercado interno, que se formou a partir da desagregação do sistema escravista, limitou a extensão do processo de industrialização e colocou o País em uma posição de dependência”, explica.
Essas características que, segundo o sociólogo, incluem a dependência tecnológica em relação às potências capitalistas, são importantes para entender a dimensão política do processo de constituição do capitalismo e do mercado no Brasil.
“A burguesia industrial brasileira se caracterizou por ser dependente tecnologicamente do exterior, o que levou a um desenvolvimento industrial, social e político limitado e associado aos interesses do capital estrangeiro”, justifica.
Jessé Souza, doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e professor titular da Universidade Federal do ABC atuou em pesquisas de amplitude nacional e internacional sobre desigualdade, preconceito e classes sociais no Brasil e no mundo.
Dos estudos, saíram cerca de uma centena de artigos e ensaios, e mais de 30 livros, dentre os quais estão "A classe média no espelho", "A guerra contra o Brasil", "A tolice da inteligência brasileira" e "A Elite do Atraso".
Nesta última, Jessé Souza reitera a explicação de Décio Saes, mostrando que a classe mais rica brasileira tem suas origens no período colonial, com a formação de uma classe de proprietários de terras e escravos, que detinham o poder político e econômico.
De acordo com o pesquisador, essa elite estabeleceu um padrão de
“O sistema escravista, como uma instituição total, moldou a sociedade brasileira e suas classes, deixando marcas profundas nas relações sociais e de poder. A escravidão criou uma hierarquia social que se estendeu para além do período escravocrata”, afirma.
Com a transição para o capitalismo, essa elite agrária se adaptou, diversificando seus investimentos e expandindo sua atuação para outros setores da economia, como o comércio, a indústria e o mercado financeiro.
“No entanto, a lógica do privilégio e da apropriação de recursos públicos permaneceu como uma característica central da elite brasileira”, afirma o pesquisador. Para ele, a relação entre a dita lógica da apropriação e a importância que se dá às “reações do mercado” é direta.
“É exatamente a fração financeira do capital e da propriedade que, por meio da dívida pública e pelo mecanismo de transferência de renda via juros, consegue controlar o orçamento público”, afirma.
Jessé Souza pontua ainda que, como as outras frações dos proprietários, como a indústria, o comércio e o agronegócio, retiram o lucro grande também da especulação financeira, isso explicaria por que o comando de todo o processo econômico e político seja exercido pela fração dos rentistas.
Em se tratando de discussões sobre a dívida pública e os impactos que as relações entre mercado, governos e o Banco Central têm sobre a população, a maior referência do País é Maria Lúcia Fatorelli, auditora-fiscal aposentada da Receita Federal e fundadora da organização Auditoria Cidadã da Dívida.
“Alguém é a favor de continuar vivendo em um país em que os bancos batem recordes de lucro a cada trimestre enquanto mais da metade da população está passando por algum tipo de insegurança alimentar, com muitos passando fome, jogados na rua?”, questionou Fattorelli.
Para ela, se destacam as reações negativas dos maiores investidores do mercado financeiro quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou, em 2022, que era preciso incluir os pobres no orçamento e parar de privilegiar o corte de gastos sociais, e o dólar comercial subiu para R$ 5,93 com investidores atentos ao possível anúncio de aumento de isenção do Imposto de Renda
O “mercado” reage dessa forma pois é composto por poucos grandes operadores que provocam esses movimentos no dólar e na Bolsa, explica a Auditoria Cidadã. “Essas operações são sigilosas justamente para manter esse privilégio para aqueles que podem mandar dinheiro para o exterior à vontade.”
“O mercado fica tentando fazer o governo se ajoelhar exatamente para cortar gastos, fazer superávit, teto de gastos… Tudo para pagar o juro abusivo da ‘bolsa banqueiro’ – a remuneração da sobra de caixa dos bancos – para a farra dos escandalosos
Uma parcela dos economistas, no entanto, rejeitam a tese de que há interesses políticos envolvidos. Para Leonardo Lemos, especialista em mercado de derivativos e sócio da BIDSgroup, empresa especializada em consultoria corporativa, a opinião do mercado deve ser sempre levada em consideração.
"O mercado tem reações distintas porque porque diferentes políticas governamentais - monetária, fiscal, cambial e comercial - impactam diretamente os preços, juros e indicadores econômicos", afirma.
"Então esses atores tentam antecipar ciclos econômicos e reagem a determinadas atitudes ou pronunciamentos. Portanto, qualquer comentário indevido, proveniente de qualquer governo, seja esfera federal, estadual ou municipal, você vai ver um reflexo imediato"
Estudos científicos como o “Finance and Development: A Tale of Two Sectors" (Finanças e Desenvolvimento: um conto de dois setores, em tradução livre), publicado na revista American Economic Review, falam sobre a relação de causalidade entre um mercado de capitais bem desenvolvido e o desenvolvimento econômico de um país.
Isso porque o enriquecimento de um país seria influenciado pelo nível do estoque de capital (poupança), assim como pela alocação eficiente desses recursos de forma que resulte em aumento de produtividade.
Nesse sentido, Alexandre Schwartsman, que foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander, defende a importância de se observar o comportamento dos agentes financeiros.
"O que há, em termos concretos, é uma expansão fiscal sem precedentes e a falta de um plano crível de contenção de gastos, resultando em pressões inflacionárias"
O economista rejeita o que chama de "explicações superficiais" para a valorização cambial, atribuindo a alta do dólar a "fatores concretos".
"Não sou especialista e acho que nenhum outro economista é psiquiatra, mas a reação não tem nada de esquizofrenia. O que há, em termos concretos, é uma expansão fiscal sem precedentes e a falta de um plano crível de contenção de gastos, resultando em pressões inflacionárias", afirma.
"Hoje, a dívida pública está caminhando pra 80%, talvez no final do governo Lula chegue aos 90%. Então esse crescimento acelerado da dívida e a inconsistência entre as ações governamentais e as previsões otimistas de agências de classificação de risco tem suas consequências", finaliza.
Mesmo entre economistas, há divergência quanto ao real papel do mercado. Pedro Rossi, professor livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp e economista chefe do Global Fund for a New Econonomy diz que há um superdimensionamento na importância da opinião dos grandes investidores.
"O mercado faz espuma no vento. A curto prazo, ele tem convenções, sim, que fazem movimentos especulativos que geram volatilidade desvalorização cambial, mas isso não resiste ao longo prazo", explica.
Ele defende que o governo não deve ceder às pressões do mercado, especialmente no que diz respeito a cortes de gastos que prejudicam políticas sociais como o salário mínimo.
"O mercado financeiro tem uma demanda insaciável por cortes de gastos. Mesmo que o governo implemente cortes significativos, o mercado sempre exigirá mais. Foram 70 bilhões, mas se fossem 100 bilhões, eles continuariam reclamando", argumenta.
Rossi destaca, ainda, a contradição entre uma agenda de redução do tamanho do estado, esperada pelos controladores dos investimentos, e uma agenda de crescimento e distribuição de renda, que é o mote dos governos petistas.
"Eu tenho uma visão de que no fundo o arcabouço fiscal é extremamente rígido e incompatível com um projeto de país que é um projeto distributivo de crescimento econômico e emprego", pontua.
Em contrapartida, já que é preciso conter os gastos, ele avalia como positiva a iniciativa de resistir às demandas por flexibilizar o piso de saúde e educação e a desvinculação do BPC ao salário mínimo.
Perguntado sobre se há um horizonte para balancear a questão, o economista sugere que o Banco Central possui ferramentas para conter a especulação, defendendo uma postura mais independente em relação às pressões do mercado.
Ele aponta que não será Gabriel Galípolo que poderá impor uma mudança que favoreça o governo e a população, pois o futuro presidente do Bacen assumirá "uma instituição que está já toda organizada para um diálogo com o mercado".
Pedro Rossi aponta, porém, que é possível o Banco Central adotar uma postura mais firme diante do mercado em diversas situações, como já ocorreu anteriormente.
Ele destacou que a especulação excessiva com a taxa de câmbio poderia ser contida por meio de instrumentos disponíveis tanto ao Banco Central quanto ao Ministério da Fazenda.
Segundo ele, o Brasil, com suas reservas cambiais de 350 bilhões de dólares, também tem influência sobre o preço do dólar.
Além disso, o Ministério da Fazenda pode utilizar medidas como a taxação de entradas e saídas de capital com o IOF, o que já foi feito no passado.
"Então, é possível encarar o mercado e peitá-lo, porque senão vira isso, ou seja, uma convenção que se diz que o juro vai subir, acontece uma corrida no mercado de títulos públicos, e que acaba gerando uma profecia autorrealizável", finaliza.
O debate é extenso e precisa ser aprofundado, visto que as relações entre mercado e políticas públicas refletem uma constante tensão entre interesses privados e objetivos coletivos. Em uma democracia jovem, instável e inserida na dinâmica contemporânea da economia internacional, qual deve prevalecer?
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