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Tacinga mirim: a extinção de um cacto que grita em silêncio
Reportagem Especial

Tacinga mirim: a extinção de um cacto que grita em silêncio

Exclusiva do Ceará e ameaçada de extinção, nova espécie de cacto identificada por pesquisadores do IFCE revela os impactos ambientais e sociais da degradação no semiárido.

Tacinga mirim: a extinção de um cacto que grita em silêncio

Exclusiva do Ceará e ameaçada de extinção, nova espécie de cacto identificada por pesquisadores do IFCE revela os impactos ambientais e sociais da degradação no semiárido.
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No sertão cearense, onde a Caatinga resiste como um mosaico de vida e resistência, uma nova espécie de cacto emerge como símbolo da fragilidade e da força do bioma. A Tacinga mirim, descoberta recentemente, é um cacto endêmico que se assemelha a uma versão miniatura da Tacinga palmadora, conhecida como palmatória.

Enquanto a palmatória pode atingir até quatro metros de altura, a Tacinga mirim não ultrapassa os 50 centímetros, sendo encontrada exclusivamente em quatro municípios do Ceará: Santa Quitéria, Canindé, Catunda e Sobral.

 

 

Apesar de sua aparência discreta, a Tacinga mirim carrega em seus espinhos e flores um alerta urgente: a ameaça de extinção.

Seu habitat está sendo pressionado por atividades humanas, como o avanço da agropecuária, desmatamento e projetos de mineração de urânio e fosfato. Além disso, mudanças climáticas intensificam os desafios para sua sobrevivência.

 

 

Panorama ecológico: cactos sustentam o invisível da vida

A Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro. Presente principalmente no Nordeste, abriga uma biodiversidade surpreendente, com espécies adaptadas à escassez de água e às altas temperaturas. Embora muitas vezes associada à aridez, é um dos ecossistemas mais resilientes do planeta e, paradoxalmente, um dos mais degradados.

Professor e pesquisador Marcelo Teles do IFCE durante o estudo sobre a Tacinga mirim, em dezembro de 2022(Foto: Antônio Sérgio/Reserva Imburanas da Volta)
Foto: Antônio Sérgio/Reserva Imburanas da Volta Professor e pesquisador Marcelo Teles do IFCE durante o estudo sobre a Tacinga mirim, em dezembro de 2022

Nesse ambiente, os cactos cumprem funções ecológicas cruciais. Retêm água no caule, protegem o solo contra a erosão e oferecem alimento e abrigo para aves, pequenos mamíferos, répteis e insetos.

“Mesmo durante os meses mais secos, os cactos continuam florindo e frutificando. Eles mantêm o funcionamento da cadeia alimentar quando o resto do ecossistema entra em dormência”, explica o professor Marcelo Teles, pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) que identificou a espécie no estudo publicado no dia 28 de maio, na revista científica SciELO Brasil.

Esse equilíbrio, no entanto, é delicado. Quando uma planta como a Tacinga mirim desaparece, os efeitos podem ser devastadores, desde a redução da oferta de alimento para polinizadores até o colapso de microclimas locais.

Como afirma a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Herbário Prisco Bezerra, Iracema Loiola, “essas espécies funcionam como indicadores ambientais. São resistentes por natureza. Se elas estão desaparecendo, é porque o ambiente está profundamente ameaçado”.

Frequentemente confundida com a Tacinga palmadora, foi somente após expedições, análises morfológicas e análises de DNA que os pesquisadores do IFCE identificaram que se tratava de uma espécie distinta, restrita ao território cearense.

 

Outras espécies de cactáceas em estado de vulnerabilidade na Caatinga

Encontrada em apenas quatro municípios, a Tacinga mirim passou a ser vista como um “termômetro ecológico” da Caatinga. Sua presença indica um ambiente ainda equilibrado; sua ausência, o alerta de que algo está fora do lugar. A nível nacional, são mais de 200 espécies, quase todas endêmicas do território brasileiro. Isso torna o País o terceiro maior centro de diversidade das cactáceas, de acordo com o Livro Vermelho da Flora do Brasil.

Mesmo recentemente descrita pela ciência, a Tacinga mirim já era conhecida pelas comunidades tradicionais da região. “Os povos originários da área, como os Potiguara, sempre souberam da existência dela. A ciência apenas oficializou o que eles já sabiam”, diz Marcelo Teles.

Foi no mapeamento sistemático da flora cearense, iniciado em 2009, que os primeiros registros da nova espécie chamaram atenção. As amostras antigas, conservadas em herbários, foram revisitadas, e uma constatação preocupante emergiu: as coletas atribuídas à Tacinga palmadora eram, na verdade, da espécie nova e estavam concentradas em uma área cada vez mais pressionada.

De aparência modesta, a Tacinga mirim não ultrapassa 50 centímetros de altura.(Foto: Marcelo Teles)
Foto: Marcelo Teles De aparência modesta, a Tacinga mirim não ultrapassa 50 centímetros de altura.

“A maioria dos registros antigos, inclusive os citados no complexo mineroindustrial Projeto Santa Quitéria, não correspondem à palmadora, e sim à Tacinga mirim. Isso significa que a planta está diretamente ameaçada por esse empreendimento de mineração de urânio e fosfato”, afirma Marcelo.

Além do risco direto, o estudo identificou outros fatores que elevam a vulnerabilidade da espécie: o desmatamento, a coleta predatória e a expansão da agropecuária. “A área de ocorrência dela é pequena, fragmentada, e está sendo reduzida ano após ano”, completa.

As dificuldades enfrentadas pela equipe também refletem o pouco investimento em ciência no Brasil. “Fizemos tudo com recursos próprios. Desde o combustível até as análises de DNA. Se não tivéssemos esse esforço pessoal, talvez a espécie nunca tivesse sido descrita”, conta o pesquisador.

 

Áreas desmatadas da Caatinga por hectares (2019-2024)

 

 

Impactos ambientais: ecossistema desorganizado

A perda de uma espécie vegetal não acontece de forma isolada. No ecossistema da Caatinga, o desaparecimento de uma planta pode causar desequilíbrios em cadeia: no solo, no microclima, na presença de polinizadores, na oferta de alimento para aves e répteis. Um elo se rompe, e os demais sentem os impactos.

Segundo Iracema Loiola, os cactos têm papel crucial na regulação da vida nos períodos mais críticos. Ela explica que essas plantas cumprem funções ecológicas específicas como abrigar animais, fixar o solo e sustentar a cadeia alimentar quando as chuvas cessam. “Sem esses organismos de base, o bioma perde sua capacidade de regeneração.”

O avanço da mineração intensifica ainda mais o problema. “Essa atividade remove o solo, destrói a vegetação, afugenta a fauna. É uma área que pode levar séculos para se recuperar, se é que vai”, alerta Marcelo.

Esse colapso, para quem vive na região, já começou a se manifestar. “O desmatamento acontece com frequência, principalmente na zona rural. Às vezes para madeira, outras para plantar milho e feijão”, relata Patrícia Gomes, moradora de Santa Quitéria (CE) há mais de 30 anos.

Ela também percebe mudanças no clima: “O calor aumentou muito, os ventos mudaram. Já não temos mais regularidade nas chuvas. Em algumas áreas chove bem, noutras não chove nada. As perdas na lavoura são grandes.”

 

 

Uma voz do sertão

 Patrícia Gomes, moradora de Santa Quitéria (CE) há mais de 30 anos, relata as mudanças climáticas(Foto: Patrícia Gomes/Arquivo pessoal)
Foto: Patrícia Gomes/Arquivo pessoal Patrícia Gomes, moradora de Santa Quitéria (CE) há mais de 30 anos, relata as mudanças climáticas

Quando se fala em preservação ambiental, nem sempre as vozes do sertão são ouvidas. Mas para quem vive da terra e com a terra, como a moradora de Santa Quitéria Patrícia Gomes, a ameaça à natureza é também uma ameaça à própria existência.

Os efeitos do desmatamento, das secas prolongadas e da possível chegada da mineração são acompanhados detalhadamente por ela.

“A gente sabe que a terra tem valor, mas parece que quem toma as decisões não enxerga isso. O que estão chamando de progresso aqui pode ser o fim do nosso jeito de viver”, diz.

O vínculo com a Caatinga não é apenas físico, é também afetivo, ancestral e cultural. “A gente cresce aprendendo a viver com a Caatinga. Sabe o que pode tirar e o que tem que deixar. Essas plantas são parte da nossa vida. Não é só mato.”

“O futuro será reflexo da nossa luta. Se a gente não defende agora, o que vai sobrar para os nossos filhos? Só terra seca e lembrança do que já foi verde”, conclui.

 

 

Quando até o sertão estranha o calor

As mudanças climáticas deixaram de ser uma ameaça distante e passaram a fazer parte da paisagem cotidiana no semiárido nordestino. O aumento das temperaturas, a irregularidade das chuvas e o prolongamento das secas já impactam diretamente a agricultura, o abastecimento de água e o equilíbrio do ecossistema.

Cactos como a Tacinga mirim, mesmo adaptados à escassez, enfrentam desafios inéditos. “Essas espécies evoluíram para sobreviver a secas sazonais, mas não estão preparadas para o que estamos vivendo agora, uma combinação de calor extremo, degradação ambiental e eventos imprevisíveis”, explica Marcelo Teles.

As causas do aquecimento global estão ligadas à emissão de gases de efeito estufa como dióxido de carbono (CO2) e metano, que vêm da queima de combustíveis fósseis, desmatamento e agropecuária intensiva. Esses gases se acumulam na atmosfera, elevando a temperatura média do planeta e alterando os padrões naturais de clima.

 

Exemplos de eventos agravados pelas mudanças climáticas

Quando isso acontece, uma série de mudanças afetam diretamente os ecossistemas e a vida das pessoas: as chuvas se tornam mais irregulares, secas ficam mais prolongadas, ondas de calor se intensificam e eventos extremos, como tempestades ou incêndios, se tornam mais frequentes.

Até mesmo os ciclos das plantas e dos animais se desorganizam: espécies migram, desaparecem ou deixam de florescer no tempo certo. Em regiões como a Caatinga, esse cenário pressiona ainda mais uma biodiversidade já vulnerável.

Em 2025, o Brasil será o palco da COP30 "As COPs (Conferências das Partes) são encontros anuais organizados pela ONU que reúnem quase todos os países do mundo para discutir soluções para a crise climática.
Será a primeira vez que a conferência acontece na Amazônia, uma das regiões mais estratégicas para o equilíbrio climático global. "
, conferência climática da ONU que deve reunir chefes de Estado, cientistas e representantes da sociedade civil em Belém, no Pará. Lá, discutirão metas, acordos e promessas para conter o aquecimento global.

Professor e pesquisador Marcelo Teles do IFCE em campo durante pesquisa sobre a Tacinga mirim.(Foto: Leonardo Jales)
Foto: Leonardo Jales Professor e pesquisador Marcelo Teles do IFCE em campo durante pesquisa sobre a Tacinga mirim.

Enquanto isso, no sertão cearense, espécies como a Tacinga mirim desaparecem sem testemunhas. E vozes como a de Patrícia Gomes, que sente no corpo a mudança do tempo e da terra, seguem à margem dos grandes fóruns.

O futuro climático não se decide só em plenárias internacionais. Ele começa, ou se rompe, nas pequenas decisões sobre o que se desmata, o que se protege e quem é ouvido. Porque, para o ecossistema, a crise já chegou.

 

 

Caminhos para a preservação: a luta da ciência, comunidade e política ambiental

Frente a esse cenário, a proteção da Tacinga mirim exige articulação entre ciência, comunidade e poder público. A criação de áreas de conservação é uma das ações mais urgentes. “Precisamos de espaços com proteção integral, onde a espécie esteja a salvo de qualquer exploração econômica”, defende Marcelo Teles.

Ele também destaca o papel da educação ambiental. “As escolas da região precisam mostrar às crianças que essa planta só existe ali. Se elas crescerem sabendo disso, talvez tenhamos uma nova geração mais consciente.” Na prática, as ações enfrentam obstáculos estruturais. Na Reserva Imburanas da Volta, em Canindé (CE), o engenheiro agrônomo e botânico Antônio Sérgio mantém sozinho uma área de 750 hectares preservada.

A Reserva Imburanas da Volta, em Canindé (CE), abriga diversas espécies de animais característicos da Caatinga.(Foto: Antônio F. Carlos)
Foto: Antônio F. Carlos A Reserva Imburanas da Volta, em Canindé (CE), abriga diversas espécies de animais característicos da Caatinga.

Além da preservação florestal, a Reserva abriga diversas espécies de animais característicos da Caatinga. “Na Serra do Parafuso, com uma parte pertencente à propriedade, ocorre o raro e ameaçado periquito-da-cara-suja (Pyrrhura griseipectus), além de espécies de felinos do Ceará”.

A Associação Caatinga, organização não governamental (ONG) que atua na preservação de mais de 150 mil hectares do bioma no Ceará, trabalha para transformar esse cenário com iniciativas de base comunitária.

“Estamos desenvolvendo viveiros de espécies nativas e capacitando comunidades com técnicas de plantio adaptadas ao semiárido. São soluções possíveis, desde que haja vontade política”, aponta Samuel Portela, coordenador de conservação da biodiversidade da ONG.

Ele reforça que a conservação da flora não deve ser vista como um luxo, mas como um eixo de sobrevivência: “Sem floresta, não tem água, não tem fauna, não tem futuro. Cada planta salva é uma chance de reverter esse ciclo de destruição”.

Onça-parda em armadilha fotográfica da Associação Caatinga(Foto: Armadilha Fotográfica / Associação Caatinga)
Foto: Armadilha Fotográfica / Associação Caatinga Onça-parda em armadilha fotográfica da Associação Caatinga

Para Patrícia Gomes, moradora de Santa Quitéria, a responsabilidade também é das lideranças públicas. “Que tenham compromisso ético-político com esse povo que ama sua terra e sustenta a cidade com a agricultura familiar. Que pensem nas gerações futuras antes de abrir caminho para projetos que destroem o meio ambiente”, afirma.

Preservar a Tacinga mirim, portanto, é mais do que conservar uma espécie. É proteger um bioma inteiro, seus saberes, sua gente e sua história.

 

 

Tacinga mirim resiste…mas até quando?

A Tacinga mirim pode parecer pequena demais para carregar o peso de um bioma inteiro. Mas é justamente no invisível que muitas vezes se esconde o que é essencial. O risco de extinção desse cacto é um alerta que ultrapassa a botânica.

Ele denuncia a negligência com o semiárido, a ausência de políticas públicas voltadas para a Caatinga e a urgência de enxergar valor naquilo que por séculos foi tratado como mato ou obstáculo ao progresso.

Preservar uma planta como a Tacinga mirim é, no fundo, um gesto de cuidado com o todo: com a terra que alimenta, com o clima que regula as estações, com os saberes que sobrevivem nas mãos de agricultores, raizeiras, coletores e guardiões da natureza. “Sem floresta, não tem vida. E sem a Caatinga, o sertão deixa de existir”, resume Samuel Portela da Associação Caatinga.

A Tacinga mirim é uma espécie de cacto recentemente descrita pela ciência, mas já conhecida pelas comunidades tradicionais da região.(Foto: Marcelo Teles)
Foto: Marcelo Teles A Tacinga mirim é uma espécie de cacto recentemente descrita pela ciência, mas já conhecida pelas comunidades tradicionais da região.

Patrícia Gomes completa com um apelo direto: “Não se pode pensar só no bônus, no dinheiro. Que os governantes olhem com respeito para a nossa casa comum. O que sobra depois que tudo é explorado?”.

Ainda há tempo para apoiar a ciência, ouvir as comunidades e buscar um desenvolvimento que considere os limites do semiárido. Conservar a Caatinga não é preservar apenas o verde que resiste no meio do sertão, é garantir que o sertão continue vivo.

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