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Metamorfa e biodiversa, essa é a verdadeira Caatinga
Reportagem Seriada

Metamorfa e biodiversa, essa é a verdadeira Caatinga

Ela é o semiárido mais biodiverso do mundo e o único bioma endêmico do Brasil, mas ainda é marcada pelo preconceito e pelo imaginário de desolação e pobreza. Conheça a Caatinga de verdade e os ensinamentos que essa floresta metamorfa tem a oferecer
Episódio 4

Metamorfa e biodiversa, essa é a verdadeira Caatinga

Ela é o semiárido mais biodiverso do mundo e o único bioma endêmico do Brasil, mas ainda é marcada pelo preconceito e pelo imaginário de desolação e pobreza. Conheça a Caatinga de verdade e os ensinamentos que essa floresta metamorfa tem a oferecer Episódio 4
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Quando falam sobre ela, fazem parecer que morreu. Equivocam-se ao ver galhos despidos e respirar o ar seco, confundem-se por perderem de vista os grandes e os pequenos animais. Convencem-se de que a vida daqui fugiu ou desapareceu, voltando sazonalmente apenas quando cai a primeira gota do céu.

Euclides da Cunha, em Os Sertões, disse que “ao sobrevir das chuvas, a terra transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior”. É meia verdade: o período seco, para a Caatinga, não simboliza necessariamente desolação. É parte da identidade de um bioma unicamente brasileiro e é belo por definição.

Porque a Caatinga é uma floresta metamorfa de 850 mil km², adaptada à abundância e à escassez sem medo. Ela é singular e biodiversa, e talvez você ainda não saiba disso. Pois se achegue para descobrir porque a Caatinga é, antes de tudo, uma beldade.


 

 

 

 

Floresta, sim, senhor

Eu acho a Caatinga tão bonita no período seco”, sorri Cássia Pascoal, 24, agrônoma e coordenadora de Relacionamento Comunitário e Educação Ambiental da Associação Caatinga. Criada em Fortaleza, mas com raízes firmes em Crateús e Itapipoca, Cássia é caatingueira por essência, e é do sertão do seu Interior que mais tem lembranças.

 

A biodiversidade da Caatinga em números

 

No período seco, ela admira os focos verdes e coloridos que árvores como a carnaúba (Copernicia prunifera), o juazeiro (Ziziphus joazeiro) e os ipês lançam na paisagem. No meio de uma mata nua, descansando enquanto arruma-se a chuva, essas plantas aprenderam a florir e a atestar que a Caatinga é uma floresta, sim, senhor.

 

Bioma Caatinga

A Caatinga é o semiárido mais biodiverso do mundo e é um bioma endêmico do Brasil. Ela cobre 11% da extensão territorial do País, presente em todos os estados do Nordeste (70% da região) e o norte de Minas Gerais.  

 

Basta admirar o juazeiro, ponto cardeal sertanejo. Na vastidão branca, a copa expande-se em sombra e frescor, abrigando o gado e quem mais quiser. Os ipês aguardam justamente o mês de setembro para abrir em múltiplas cores e tonalizar a vista do segundo semestre. Depois, quando vem a quadra chuvosa, a catingueira (Cenostigma pyramidale) “fulora” amarela e dá de comer aos animais — foi assim que disse Dominguinhos.

Em geral, florestas são ambientes com concentração de árvores cujas copas criam um “teto verde”. De acordo com Cássia, a floresta também pode ser definida como um ecossistema em que há harmonia entre os seres viventes. “A Caatinga sofreu uma pressão muito forte no processo de ocupação”, explica a agrônoma, o que retirou dela uma boa parte das árvores mais frondosas. No entanto, em áreas preservadas como a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Serra das Almas, é possível atestar o telhado verde que a definição de dicionário refere-se.

Reserva Natural Serra das Almas, em Crateús, preserva parte da Caatinga.(Foto: Barong)
Foto: Barong Reserva Natural Serra das Almas, em Crateús, preserva parte da Caatinga.

Isso não significa que a Caatinga deixa de ser floresta ao desprender-se das folhas como estratégia para economizar água. “É uma mata branca, todas as plantas estão vivas e guardando energia”, reforça Cássia. Ocorre que os livros escolares e as produções midiáticas imbuíram o imaginário popular de florestas obrigatoriamente verdes, escanteando as diversas estratégias de resiliência e adaptação à seca.

A carnaúba é uma dessas árvores grandes e bonitas que desenvolveram a característica de criar cera nas folhas para perder menos água no segundo semestre. Símbolo do Ceará, ela é conhecida como “árvore da vida” e está no cotidiano de todo o mundo: chips de celular, chocolates M&Ms e cosméticos como o batons são alguns dos produtos que só existem graças à cera da carnaúba.

Foi para preservar a carnaúba que a Associação Caatinga criou a RPPN Serra das Almas. Aos poucos, a reserva natural transformou-se em um santuário da real imagem da Caatinga — influenciando também a vida das comunidades do entorno.

Reserva Natural Serra das Almas no segundo semestre, período seco.(Foto: Fábio Arruda)
Foto: Fábio Arruda Reserva Natural Serra das Almas no segundo semestre, período seco.

 

 

Orgulho de ser do sertão

Uma dessas comunidades é a Santa Luzia, em Crateús (CE), onde vive Núbia Cardoso, 56, artesã especializada em folhas da carnaúba e agricultora. Como muitos sertanejos da mesma faixa etária, ela começou no roçado ainda criança, quando tinha 7 anos, para ajudar o pai Joaquim Cardoso Guarim a criar os dez irmãos.

“Meu pai criou a gente tudo na agricultura. Não tinha ajuda de governo, só os braços dele”, conta, enquanto relembra de seu Joaquim voltando após uma semana fora com sacos de milho, feijão e farinha. O retorno sempre era por volta da meia noite, quando de mansinho acordava as crianças para merendar rapadura na cuia com farinha — a “fartança” da casa.

Núbia Cardoso é agricultora e artesã da comunidade Santa Luzia, em Crateús.(Foto: Kelly Cristina)
Foto: Kelly Cristina Núbia Cardoso é agricultora e artesã da comunidade Santa Luzia, em Crateús.

Apesar das dificuldades, Núbia pegou um apreço danado pelo roçado. Não fossem os problemas de saúde relacionados a um Acidente Vascular Cerebral (AVC), estaria até agora arando o chão e colhendo o próprio milho e feijão, seguindo o que aprendeu com o pai. “A minha melhor memória é do meu pai, já com boa idade e ainda era um homem forte, indo pra roça quando começava a chover. Ele plantava, limpava, ia colher… Acho que é saudade.” Seu Joaquim faleceu há três anos, aos 90 anos de idade.

Para ela, a Caatinga e o sertão nunca foram sinônimo de pobreza, mesmo que tenha aprendido a enxergar as belezas com uma nova lente já mais adulta. Isso porque, na juventude, via-se água, árvores e animais, mas também via-se “muita desmata”. “Depois que a gente conheceu a reserva, mudou a vida da comunidade, de todas ao redor”, afirma. “Eu digo que tenho, assim, muito amor. Eu amo uma coisa diferente. Quando eu tô no meio do mato, mulher, é muito gostoso… A gente vê que a vida da gente tá ali.”

Jovens machos de guaribas-da-caatinga. (Foto: Robério Freire Filho)
Foto: Robério Freire Filho Jovens machos de guaribas-da-caatinga.

O carinho é tanto que, para Núbia, é praticamente impossível dizer o que mais gosta do bioma. Ela lembra dos preás passeando pelo quintal da casa, dos lourinhos cantando e balançando as folhas. Pensa nas plantas e na natureza como “a coisa mais linda”. “Eu gosto, eu amo a Caatinga. Nasci e me criei nesse sertão de meu Deus… Pense, como eu gosto desse meu Interior. Eu tenho orgulho de ser do sertão.”

A minha cultura vem da agricultura, disse o mestre Dodô, do Crato (CE), à jornalista Pâmela Queiroz, criadora da Caatingueira, um podcast de ciência, saberes tradicionais e mulheres apoiado pelo Instituto Serrapilheira. A afirmação do mestre de reisado reforça o quão interligados estão os sertanejos à terra.

De acordo com Pâmela, natural do Crato, praticamente todas as tradições do sertão surgem da agricultura e da convivência com a Caatinga. As casas de taipa, a dança do coco e as mesinhas — remédios, chás e banhos artesanais feitos com plantas locais — são alguns exemplos da influência do bioma na cultura. “Usam o que existe do bioma mais próximo, que estava na casa das pessoas mesmo”, comenta a jornalista. “No discurso das mesinheiras, sempre esteve muito presente uma defesa da Caatinga mesmo.”



“O povo nordestino é muito experimentador e gaiato por si só”, complementa a agrônoma Cássia Pascoal. “A diversidade, os animais, reflete também na comida, nos tipos de preparo… O uso do sol também é muito retratado nas músicas como o calor, mas também a luz do saber.”

Infelizmente, a exportação da ideia de uma Caatinga morta aos poucos convenceu a própria população sertaneja de que era necessário se distanciar desses elementos. Foi o que ocorreu com a filha de dona Núbia: por meio da agricultura e do artesanato com palha de carnaúba, a agricultora conseguiu colocar a filha na escola e formá-la técnica de enfermagem. “Mas ela não quer saber de roçado, não. Ela nem gosta de vir pra comunidade porque acha muito sofrido”, ri.

Por outro lado, Pâmela identifica alguns movimentos de retorno ao bioma. “Nós, nordestinos, estamos muito acostumados a emigrar… Agora, é como se a Caatinga estivesse convidando as pessoas para perto de si, como um espaço potente, farto.”

 

 

Ocupação histórica da Caatinga a vulnerabiliza para o futuro

Mesmo forte, há batalhas intensas demais para se lutar sozinha. Por mais adaptada que seja, a Caatinga não tem tempo para enfrentar o avanço da agropecuária, da urbanização e das mudanças climáticas.

O desmatamento citado por Núbia é componente histórico da ocupação do semiárido brasileiro. Desde 1987, a Caatinga já perdeu por desmatamento 2,13 milhões de hectares de vegetação primária, ou seja, a mata “original” com maior biodiversidade, e 49,89 mil hectares de vegetação secundária (a que surge naturalmente após a supressão da primária). Os dados são do MapBiomas.

 

Desmatamento na Caatinga (1987-2023)

 

Desde a colonização, a Caatinga foi devastada para abrigar monoculturas de algodão e de cana de açúcar, extração de madeira e a pecuária. Atualmente, é justamente a expansão de grandes empreendimentos como usinas solares e eólicas, ao lado da especulação imobiliária e loteamentos, que têm pressionado o bioma e as comunidades tradicionais.

Ao todo, 80% dos ecossistemas originais da Caatinga foram alterados por processos humanos. Segundo o Relatório Anual de Desmatamento (RAD) do MapBiomas, o desmatamento na Caatinga só cresce. Em 2022, 11% da área desmatada no Brasil era do bioma, valor que subiu para 22% em 2023 — um aumento de 43,3% em comparação a 2022.

“Houve registro de pelo menos um evento de desmatamento em 1.047 (87%) dos 1.209 municípios que compõem o bioma Caatinga em 2023. Mais de 4.302 hectares foram desmatados por empreendimentos de energia renováveis (eólica e solar)”, descreve a organização. O Ceará é o segundo estado mais desmatado, atrás apenas da Bahia.

Desse histórico impulsionado por grandes indústrias, não o pequeno agricultor, culminou uma das principais ameaças à Caatinga: a desertificação.

Erroneamente relacionada às fotos de chão rachado que na realidade são de açudes secos, a desertificação é o processo de perda de capacidade agrícola e produtiva de um solo. É quando o solo perde as propriedades orgânicas e, quase literalmente, vira pedra.

A desertificação ocorre quando o solo está vulnerável após superexploração humana e perde todos os nutrientes.(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves A desertificação ocorre quando o solo está vulnerável após superexploração humana e perde todos os nutrientes.

“Todo clima árido e semiárido é vulnerável às pressões antropogênicas (causadas por humanos), porque são recursos limitantes”, explica Francisca Soares de Araújo, doutora em Biologia Vegetal e professora visitante sênior na Universidade de Montpellier, na França.

No semiárido brasileiro, as áreas de maior pressão são justamente onde surgiram os primeiros vilarejos e por onde passavam as rotas de expansão pecuária. “O Ceará é o estado mais seco do Nordeste, e quase todo ele está no clima semiárido”, aponta Francisca. “É por isso que dizem que no sertão as pedras crescem.

Mesmo que o semiárido esteja mais vulnerável à desertificação, ela só ocorre por causa da superexploração do solo e do desmatamento. Ainda, o aquecimento global contribui para impulsionar a perda de vapor de água para a atmosfera mais quente, impulsionando os efeitos da desertificação. No entanto, se a Caatinga fosse preservada e o modelo agropecuário fosse repensado, ela seria mais resiliente à crise climática.

O caburé (Glaucidium brasilianum) se alimenta de outras aves, de insetos, rãs, lagartixas e pequenas cobras. (Foto: Fábio Nunes / Acervo pessoal)
Foto: Fábio Nunes / Acervo pessoal O caburé (Glaucidium brasilianum) se alimenta de outras aves, de insetos, rãs, lagartixas e pequenas cobras.

“Não é que o clima vai mudar, ele já está mudando. A agropecuária não é economia sustentável para o semiárido brasileiro, (especialmente porque) culturalmente, a gente replica práticas agropecuárias de biomas mais úmidos”, frisa.

A boa notícia é que nem tudo está perdido. A Caatinga, resiliente como só ela, consegue regenerar-se em áreas desertificadas com o devido apoio humano, como a estratégia de transposição de serrapilheira, desenvolvida pela professora Eunice Maia de Andrade. A serrapilheira ajuda a “devolver” material orgânico para o solo desertificado, e em um ano permite a germinação de camadas herbáceas de um metro.

Aliada a isso, está a criação de novas unidades de conservação (UCs) em áreas em processo de desertificação para evitar a piora da degradação. No Ceará, a caatinga do cristalino é a floresta menos preservada, enquanto as serras (com características de mata atlântica) têm boa proteção.

Mais do que nunca, é hora de ver e entender a Caatinga pelo que ela realmente é, não pelos preconceitos construídos por séculos. “Acho que o que eu mais gosto da Caatinga é a diversidade de adaptações das plantas do sertão. Elas rebrotam muito rápido, junto com os insetos e pequenos animais… Esse revivescer muito rápido, essa capacidade… O metabolismo da vida (no sertão) é muito mais rápido”, admira-se a professora Francisca.

 

Metamorfose caatingueira

 

“Uma vez ouvi isso da poeta Raquel Cariri e me impactou muito: o período seco da Caatinga é um momento de reclusão que a gente como humano precisa às vezes”, reflete a jornalista Pâmela Queiroz. “É um convite ao acolhimento, à observação, ao silêncio. Você só consegue novas estratégias quando você silencia e observa. É quase uma consciência que essa floresta tem do que ela tá passando. É de uma inteligência encantadora.”

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