Você já sentiu necessidade de usar a calculadora para fazer uma conta simples? Ou já percebeu que, com o tempo, aqueles conteúdos aprendidos na escola — como regras gramaticais, fórmulas matemáticas e datas históricas — foram escapando da memória como areia entre os dedos?
Esse sentimento pode não ser apenas uma impressão pessoal: há uma tendência preocupante sendo observada por especialistas ao redor do mundo. Cada vez mais, estudos norte-americanos demonstram um aumento na dificuldade em aprender, memorizar e aplicar conhecimentos de forma autônoma no dia a dia.
Essa condição pode estar atrelada a diversos fatores, que incluem desde o excesso de estímulos digitais, passando pela redução no tempo dedicado à leitura, até a terceirização do raciocínio por meio de ferramentas tecnológicas.
Segundo um estudo publicado na revista Intelligence em 2019, o vocabulário de adultos norte-americanos apresentou um declínio entre 1974 e 2016. As reduções foram observadas em todos os níveis de escolaridade, sendo mais perceptíveis entre universitários.
Apesar da análise sugerir que a principal causa desse declínio é um efeito de período, indicando uma mudança cultural que afeta todas as idades, a redução do tempo de leitura é indicada como uma causa secundária.
O estudo, entitulado Declines in vocabulary among American adults within levels of educational attainment 1974–2016, indica também que a redução da leitura pode estar fortemente relacionado com a mudança dos hábitos de consumo nas mídias digitais.
No Brasil, a pesquisa Retratos da Leitura (2024), do Instituto Pró-Livro em parceria com o Instituto de Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), revelou que o número de leitores no Brasil caiu 6,7 milhões nos últimos quatro anos.
Pela primeira vez, não leitores (53%) superaram leitores. A redução foi observada em todas as faixas etárias.
A queda no tempo de leitura e a redução do prazer por aprender podem estar nos levando para um caminho no qual o conhecimento é terceirizado. Com somente alguns cliques, todas as respostas que precisamos estão ao alcance das mãos. Mas o que pode acontecer com um cérebro que não é exercitado?
O desenvolvimento cognitivo, ou a aprendizagem do cérebro, é um processo contínuo e dinâmico. O cérebro humano é um órgão vivo que está sempre se transformando, sendo alimentado pelas experiências que vivenciamos, interações sociais, contato com a natureza, alimentação e cuidado integral da saúde.
Qualificar as interações sociais, apropriar-se ativamente de experiências e dar sentido e significado ao aprendizado — por meio de afetos, conflitos, diversidade e capacidade de simbolização — ampliam a nossa capacidade de raciocinar e nos permite ter um engajamento mental ativo e profundo.
Ticiana Santiago de Sá Russo, psicóloga, doutora em Educação e especialista em Neuropsicologia, explica que crianças e adolescentes são considerados “sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento” por apresentarem maior potencialidade em aprender.
Suas conexões neurais mais potentes e dinâmicas os colocam em uma "janela de oportunidade de desenvolvimento". Nessa fase é mais fácil regular e realinhar o que é necessário para uma transformação cerebral saudável.
“Portanto, na infância é crucial oferecer matéria-prima para um melhor desenvolvimento, aproveitando a maior capacidade de conexão e ânsia por descobrir o mundo”, comenta.
No entanto, há um risco de desaprendermos a aprender ao reduzirmos o processo de aprendizagem. É o que acontece ao limitarmos o contato com a natureza, o movimento do corpo, as diferenças, a diversidade e a variedade de experiências e linguagens (músicas, cores, sons, formas, culturas).
Segundo Ticiana, quando substituímos e não equilibramos a diversidade de experiências, perdemos o alicerce que nos sustenta, como a nossa inteligência (que vem da base da nossa emoção) e a nossa capacidade de movimento. Ambas fundamentais para noções como tempo, espaço e corporeidade.
Assim, a redução, terceirização e não qualificação das experiências de aprendizagem em toda a sua diversidade de sentidos, processos e contextos acabam prejudicando o desenvolvimento que alimenta a nossa humanidade.
Ticiana explica que as novas tecnologias, embora sejam ferramentas importantes (especialmente como tecnologias assistivas ou para ampliar horizontes), podem prejudicar o desenvolvimento cognitivo quando utilizadas em excesso, fora de contexto ou sem acompanhamento.
"Pesquisas das associações brasileiras de Psiquiatria e de Pediatria indicam que o tempo de tela excessivo pode afetar negativamente a formação da audição, capacidade de memória, atenção, e visão", explica a psicóloga.
Além de potencializarem o surgimento de ansiedade, depressão, questões relacionadas ao corpo — como sobrepeso e dificuldade de orientação no tempo e espaço —, prejudicam a capacidade de regulação emocional para lidar com vulnerabilidades, tristezas e frustrações.
Para ela, o uso da tecnologia não deve ser aleatório ou superior à capacidade humana de simbolização, representação e reflexão crítica. A qualidade das interações sociais e a oferta de elementos de autorregulação são o maior elemento que se pode fornecer para ampliar a aprendizagem do cérebro.
Um estudo recente, conduzido por pesquisadores do Media Lab em Cambridge (MIT), analisou as implicações cognitivas do uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) em ambientes educacionais, especificamente na escrita de ensaios acadêmicos.
A pesquisa Your Brain on ChatGPT: Accumulation of Cognitive Debt when Using an AI Assistant for Essay Writing Taske pretendia identificar as influências das IAs no funcionamento do nosso cérebro e nas habilidades de aprendizado.
O trabalho envolveu 54 participantes com idades entre 18 e 39 anos, recrutados de cinco universidades na área da Grande Boston (EUA) entre estudantes de graduação e pós-graduação.
Divididos em três grupos principais, os alunos foram submetidos a quatro sessões (três obrigatórias e uma opcional) em um exercício de escrita no qual eles deveriam desenvolver ensaios acadêmicos.
O primeiro grupo estava autorizado a utilizar somente o ChatGPT como ferramenta de apoio para a escrita. Já o segundo grupo poderia usar motores de busca tradicionais, como o Google, e o terceiro estava proibido de obter ajuda de qualquer ferramenta digital, usando somente a cabeça e o próprio conhecimento para escrever.
O estudo foi realizado ao longo de quatro meses e revelou que o uso de IAs teve um impacto mensurável e negativo no desempenho dos participantes, afetando níveis neurais e linguísticos.
Das mudanças observadas entre os estudantes, identificou-se no grupo que utilizava o ChatGPT uma maior dificuldade em citar os próprios ensaios, além da diminuição de capacidade cognitiva ao tentarem escrever sem apoio da ferramenta, como se seus cérebros estivessem preguiçosos.
Os resultados do experimento levantam preocupações sobre as implicações do uso extensivo de IAs, especialmente em contextos educacionais. A conveniência imediata da ferramenta parece diminuir as capacidades de pensamento crítico, o engajamento em processos analíticos profundos e a formação da memória de longo prazo.
"O estudo ainda não foi revisado por pares e, portanto, seus resultados podem ser alterados e suas conclusões devem ser consideradas com cautela. "
A pesquisa sugere que o uso de IAs pode levar a uma "preguiça metacognitiva", na qual os alunos transferem responsabilidades cognitivas e metacognitivas para a IA, prejudicando o desenvolvimento de suas próprias habilidades de autorregulação e pensamento independente.
Em contraste, o grupo que não utilizou nenhuma ferramenta de apoio apresentou fortalecimento da conectividade cerebral, refletindo um maior envolvimento das redes de memória, linguagem e controle executivo.
Jhennifer Oliveira Paula, 23, é estudante e estagiária de Marketing e compartilhou com O POVO+ o que ferramentas de IA generativa representam em sua rotina. Ela comenta que as ferramentas são indispensáveis e afirma utilizá-las "todo santo dia".
Entre as mais utilizadas, o ChatGPT. Além disso, ela destaca que muitas plataformas em seu ambiente de trabalho incorporaram as IAs em suas funcionalidades.
"Um exemplo, nós (ela e a empresa de marketing) realizamos eventos de workshop online e, no final, usamos uma IA que corta o vídeo em partes específicas, que são meio que os highlights do evento, as partes mais importantes, e a IA faz isso, o que é muito bom, pois acelera muito o meu trabalho", comenta.
Apesar de recorrer à IA para agilizar tarefas rotineiras, a estudante a enxerga como uma ferramenta de apoio, e não como uma substituta. Ela explica que, especialmente em atividades acadêmicas ou profissionais, sua interação com o ChatGPT é marcada por um "processo conjunto", no qual colabora ativamente, em vez de simplesmente delegar a criação de textos ou redações.
"Uso para auxiliar na construção de um outline, fazer um brainstorm de ideias, buscar informações adicionais, decidir o que incluir ou remover, e até mesmo pedir a opinião da IA. A IA não é uma ferramenta para fazer o trabalho por mim, mas sim para me ajudar a fazer o meu trabalho", esclarece.
Apesar disso, Jhennifer acredita que se um dia Inteligências Artificiais deixassem de existir, ela se sentiria prejudicada e, devido ao uso diário, teria que passar por um processo de readaptação a uma vida sem inteligência artificial, o que considera muito ruim.
A psicóloga Ticiana Santiago retoma que a educação infantil pode ser profundamente afetada pelos elementos tecnológicos.
Afinal, embora haja um grande potencial de desenvolvimento, essa fase é também de maior sensibilidade e vulnerabilidade.
Tempo de tela, alimentação, conflitos socioemocionais e situações de violência têm um peso muito maior e mais significativo na infância, por ser o primeiro contato e referência, e na adolescência, pela construção da identidade e forte reverberação emocional.
Adriana Eufrásio Braga, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a capacidade de aprender das crianças é influenciada por sua motivação inata e pelo ambiente em que estão inseridas.
“A criança possui uma ânsia natural de conhecer o mundo e está em uma fase constante de descoberta. Isso torna a aprendizagem muito latente e muito forte para ela” diz.
Algumas crianças nascem com altas habilidades, o que lhes confere uma forte tendência para a aprendizagem em comparação com adultos, que podem ter menos abertura e motivação.
No entanto, a capacidade de aprender é inerente a cada indivíduo, e no caso das crianças, esse desejo é um motor poderoso. O ambiente em ela está inserida é um fator crucial para o desenvolvimento da sua aprendizagem.
Um ambiente que estimula a criança, especialmente aquela que já possui altas habilidades, atua como um gatilho que vai alavancar possibilidades de aprendizagem. Ou seja, um ambiente favorável potencializa o aprendizado.
Segundo Adriana, o excesso de novas tecnologias, como a inteligência artificial e as telas, não afeta a capacidade intrínseca de aprender das pessoas, pois essa capacidade é inerente a cada um de nós. Por outro lado, o excesso cerceia a aprendizagem. Isso acontece porque as tecnologias atuais promovem o imediatismo e fornecem as informações "muito mastigadas, muito simplificadas".
“O hábito de receber tudo muito pronto e resolvido limita o pensamento crítico e pode tornar o cérebro preguiçoso em relação ao raciocínio”, comenta.
Para a educadora, embora a tecnologia possa facilitar no sentido de permitir o acesso ao conteúdo, ao conhecimento, ela não deve substituir a capacidade de pensar ou o potencial do nosso cérebro.
“É essencial que haja uma mediação e um equilíbrio no uso das tecnologias. A criatividade, em particular, não pode ser substituída por algoritmos, mesmo com a inteligência artificial sendo encantadora”
Ponto de vista
Por Sara Rebeca Aguiar
Aprender não é fácil. Adquirir conhecimento dá trabalho. Exige concentração, foco, tempo, paciência, determinação — e os mais novos vêm demonstrando dificuldades em lidar com os processos de aprendizagem.
Os momentos em que é necessário parar o ritmo novidadeiro, colorido, dinâmico e de rápida compreensão das telas para ler, escrever, calcular e refletir parecem, para inúmeras crianças e adolescentes, “demorados demais”, “muito tediosos”, “sem graça”, desinteressantes. Sem interesse, há bem pouca memória, afeto, vínculo, análise e reflexão.
Já há alguns anos, pesquisas nas áreas da aprendizagem e do desenvolvimento humano vêm advertindo cuidadores de crianças para os riscos de expô-las cedo demais e por muito tempo às telas, já que há danos físicos, cognitivos, socioemocionais e comportamentais.
Na dimensão cognitiva, ter tudo ao alcance de um comando de voz ao celular pode mudar o padrão cerebral de construção de aprendizagem, já que vai acostumando o cérebro ao estado “confortável” de pensar menos, memorizar menos, ter menos capacidade de apreciação crítica.
Pensar nos coloca em uma dimensão de questionar o que está posto e de refletir acerca dos novos aprendizados e experiências, o que também nos move para a busca de solução de problemas.
Sem a prática de pensar sobre informações, fatos e situações, reduzimos o fluxo imaginativo de elaborar novos cenários, de criar. Isso é muito sério porque permite que se estabeleça uma humanidade apática ao que lhe deve ser sensível por essência.
Além da redução da frequência e do tempo de tela, é preciso insistirmos em práticas que mantêm viva nossa capacidade de pensar, criar, memorizar, questionar. Oriente para que as atividades escolares sejam realizadas por pesquisas a livros, dicionários e sites de confiança.
Converse com eles sobre a importância de escreverem sozinhos seus próprios textos, sem ajuda de Inteligência Artificial. Leiam livros, jornais, revistas juntos e compartilhem percepções e opiniões sobre as histórias e os fatos lidos.
Façam atividades manuais. Preparem receitas. Visitem museus. Brinquem nas praças e parques, ao ar livre. Viver experiências diversas também estimula a memória e o pensar.
Sara Rebeca Aguiar é professora da educação básica, jornalista especializada em Educação e Infância, mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e colunista d'O POVO+.