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A cidade que nasceu na Parangaba, mas esqueceu de voltar
Reportagem Especial

A cidade que nasceu na Parangaba, mas esqueceu de voltar

Entre prédios em ruínas, mato alto e estruturas desativadas, um dos bairros mais antigos e simbólicos de Fortaleza se deteriora aos olhos de quem o habita. A reportagem percorre os espaços marcados pela memória — e pelo descaso

A cidade que nasceu na Parangaba, mas esqueceu de voltar

Entre prédios em ruínas, mato alto e estruturas desativadas, um dos bairros mais antigos e simbólicos de Fortaleza se deteriora aos olhos de quem o habita. A reportagem percorre os espaços marcados pela memória — e pelo descaso
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Uma faixa que diz “independente da pandemia, a enfermagem luta pela vida”, assinada pelo Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos do Município de Fortaleza (Sindifort), é um dos poucos vestígios que datam e identificam o que um dia foi um dos principais hospitais infantis de Fortaleza.

Mato crescido, tijolos expostos, paredes sem reboco e portões enferrujados dão sinais de abandono ao Centro de Assistência à Criança Lúcia de Fátima Rodrigues Guimarães Sá, na Rua Guilherme Perdigão, no bairro Parangaba. O antigo Croa foi desativado durante a pandemia da Covid-19 e está fechado desde agosto de 2020.

Do lado de dentro, pelas brechas do portão principal, o espaço aparenta ter se tornado um depósito de materiais velhos. Um vizinho nota a presença da equipe de reportagem e reclama: “Isso é um lixão. Cheio de imundice. Só serve pra juntar rato, barata, mosquito da dengue, tudo o que não presta. De vez em quando vem o caminhão e rebola tudo aí dentro”.

Pelas brechas do portão principal do antigo Croa, conhecido como Hospital Tia Júlia, é possível avistar diversos materiais depositados. Há estantes, aparelhos de ar-condicionado, cadeiras e outros objetos que aparentam não funcionarem mais(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Pelas brechas do portão principal do antigo Croa, conhecido como Hospital Tia Júlia, é possível avistar diversos materiais depositados. Há estantes, aparelhos de ar-condicionado, cadeiras e outros objetos que aparentam não funcionarem mais

Outra vizinha, que identifica-se apenas como Ângela, afirma que ali “trabalhavam os melhores pediatras”: “Minha mãe me levava aí, eu levava meu filho. O único problema era a falta de estrutura, mas os profissionais eram muito bons. Vinha gente de toda a Cidade pra cá, vivia lotado. O muro era só até a metade, mas como vinha muita reportagem, mandaram fechar todinho”.

O local abandonado, segundo ela, incomoda não só a vizinhança, mas a população do bairro Parangaba. “A gente já estava querendo fazer uns vídeos pra denunciar essa situação. Porque tá se deteriorando aí, né? Só não tá totalmente abandonado porque tem um vigia de dia e de noite.”

O POVO+ tentou contato com o vigilante que fazia sentinela no momento da reportagem, mas o colaborador não quis gravar entrevista. Num portão lateral, um comunicado de mudança cadastral deixado pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) é o único sinal de movimentação recente no imóvel. 

Edição do O POVO de 19 de abril de 2013 mostra crescimento dos casos de virose entre crianças e demanda de pacientes do Croa acima da capacidade(Foto: Reprodução/Arquivo OPOVODOC)
Foto: Reprodução/Arquivo OPOVODOC Edição do O POVO de 19 de abril de 2013 mostra crescimento dos casos de virose entre crianças e demanda de pacientes do Croa acima da capacidade

A presença da equipe, porém, continuou a despertar a atenção de moradores do entorno, que aceitaram falar sobre a situação sob a condição de não serem identificados.

Um deles, que é vizinho próximo, conta que já ouviu de tudo sobre a destinação do prédio: “Que ia ser posto de saúde, creche, abrigo para idoso. E tudo isso ia ser útil, porque a gente precisa mesmo. Mas tá aí, vai fazer cinco anos fechado e até agora nada. Vão empurrando com a barriga até onde dá”.

Procurada, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) confirmou que as antigas instalações do hospital que acolhia o atendimento pediátrico da Capital encontram-se, de fato, desativadas. Não detalhou, no entanto, que o local tem acumulado itens sem uso.

Casos de virose lotam Centro de Assistência à Criança Dra. Lúcia de Fátima, hospital infantil que funcionava no bairro Parangaba, As imagens são do dia 18 de janeiro de 2011(Foto: Rafael Cavalcante/Arquivo OPOVODOC)
Foto: Rafael Cavalcante/Arquivo OPOVODOC Casos de virose lotam Centro de Assistência à Criança Dra. Lúcia de Fátima, hospital infantil que funcionava no bairro Parangaba, As imagens são do dia 18 de janeiro de 2011

Em nota, a pasta afirma que o prédio conta com vigilância 24 horas, além de “visitas regulares das equipes da Vigilância em Saúde, que realizam inspeções para busca focal do Aedes aegypti e animais peçonhentos”.

O comunicado diz, ainda, que “a Prefeitura de Fortaleza estuda a viabilidade de reutilização do espaço para fins institucionais”.

Os pacientes dos cerca de 45 leitos que funcionavam no chamado CAC ou Croa (também conhecido como Hospital Tia Júlia, já que está localizado ao lado do Abrigo Tia Júlia) foram transferidos para o novo Hospital Infantil de Fortaleza Dra. Lúcia de Fátima.

Rebatizado de Hospital da Criança de Fortaleza (HCF), o equipamento passou a integrar o complexo hospitalar do bairro Jóquei Clube no mesmo período de 2020.

Corroído pela ferrugem: assim está o portão lateral utilizado para descarte de lixo hospitalar no antigo Centro de Assistência à Criança Dra. Lúcia de Fátima(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Corroído pela ferrugem: assim está o portão lateral utilizado para descarte de lixo hospitalar no antigo Centro de Assistência à Criança Dra. Lúcia de Fátima

A estrutura, avaliada em R$ 9 milhões, oferece 104 leitos para atendimento de urgências e emergências pediátricas e funciona desde então ao lado do Hospital da Mulher e da Policlínica Dr. Lusmar Veras Rodrigues — unidades com diferentes especialidades e que atendem a toda a população fortalezense.

A médica Joana Maciel, secretária municipal da Saúde à época, explicou que a mudança visava a ampliar o número de leitos e “adequar o perfil assistencial para a real necessidade da população pediátrica, que vem mudando radicalmente nas últimas três décadas”.

“Nós internávamos muitas crianças por diarreia, desidratação, pneumonia ou meningite, mas felizmente nós não temos mais essas doenças do jeito que tínhamos”, disse a então titular da SMS.

A mudança, que fez parte da reestruturação de todos os pontos de atenção à saúde do município durante a segunda gestão do médico Roberto Cláudio (2013-2020), deixou inativa a estrutura do bairro Parangaba — que, há cinco anos, encontra-se desocupada e sofre com a ação do tempo sem destino certo.

Enquanto as letras que identificavam o hospital caem uma a uma da fachada, a poeira de duas grandes construções próximas ajuda a encobrir ainda mais o passado dessa importante unidade hospitalar.

Dois grandes edifícios de apartamentos que estão sendo erguidos nas proximidades — o S Compact, na rua Vênus, e o Paço das Águas, na rua Araripe Prata — contrastam com a entrada do bairro, com prédios e espaços esquecidos que não fazem jus à importância histórica da Parangaba.

Hospital infantil Tia Júlia, desativado durante a pandemia, hoje está servindo de depósito para equipamentos usados da prefeitura. Na imagem é possível avistar, em terreno próximo, a construção de um edifício(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Hospital infantil Tia Júlia, desativado durante a pandemia, hoje está servindo de depósito para equipamentos usados da prefeitura. Na imagem é possível avistar, em terreno próximo, a construção de um edifício

Próximo dali fica a praça matriz, perto de onde funcionava o Restaurante Popular Mesa do Povo, fechado permanentemente desde março de 2020. Antes da pandemia da Covid-19, o único restaurante popular da Capital, que fornecia refeições pelo valor simbólico de R$ 1, era ponto de concentração diário de centenas de fortalezenses em condições de vulnerabilidade.

No ponto, a situação de abandono do espaço público é bem semelhante: grama alta, bancos quebrados, pisos esburacados.

Ao longo dos anos, cresceu junto à vegetação o número de pessoas em situação de extrema pobreza que fez da praça um abrigo. Uma pequena comunidade ocupou o local, que fica no coração do bairro histórico.

O prédio do antigo Restaurante Popular Mesa do Povo, fechado permanentemente em 2020, encontra-se em completo estado de abandono. Localizado na rua Carlos Amora, em uma esquina em frente à praça matriz do bairro, o prédio já abrigou a Padaria Natalense — comércio que pertencia ao comerciante Zé Pedra, um dos primeiros moradores da Parangaba(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE O prédio do antigo Restaurante Popular Mesa do Povo, fechado permanentemente em 2020, encontra-se em completo estado de abandono. Localizado na rua Carlos Amora, em uma esquina em frente à praça matriz do bairro, o prédio já abrigou a Padaria Natalense — comércio que pertencia ao comerciante Zé Pedra, um dos primeiros moradores da Parangaba

A Parangaba, que já foi cidade antes de se tornar bairro de Fortaleza, hoje amarga o abandono visível em muitas de suas esquinas. Quem vive ali todos os dias sente no corpo e na memória a negligência do poder público.

“Eu não sei por que esqueceram de nós. Só pra você ter uma ideia, aqui nós estamos a 15 minutos do Centro da Cidade”, aponta o barista Adail Silva, dono do tradicional Bar do Adail, que há 40 anos funciona na praça matriz do bairro.

Entre relatos sobre a Feira do Pássaros que mudou de lugar, reformas espaçadas de dez em dez anos e mato que cresce sem controle, Adail expõe uma verdade sentida por muitos dali: “Aqui é um bairro tão histórico, tão importante. Praticamente Fortaleza cresceu a partir da Parangaba, e o pessoal nem sabe disso.”

 

Cotidianamente ele assiste ao movimento de pessoas e ônibus que trafegam pelas avenidas João Pessoa e Osório de Paiva vindo dos terminais da Lagoa e da Parangaba — que juntos recebem, em média, 132 mil passageiros por dia, segundo dados da Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) repassados ao O POVO+.

Adail alerta para os riscos concretos da deterioração de prédios como o do antigo restaurante popular: “Eu tô vendo a hora cair por cima de alguém, porque tem o pessoal de rua que dorme aí debaixo. Ou em cima de um carro. Se for o carro é bem material, mas se for uma pessoa é uma vida, né?”

Ele também menciona as mudanças no cotidiano da praça após o encerramento das atividades no estabelecimento: “Enquanto estava funcionando, o pessoal vinha comer aqui, depois que parou... onde é que o pessoal tá comendo?”

A fachada do antigo Restaurante Popular Mesa do Povo, único restaurante popular de Fortaleza, apresenta danos estruturais que representam risco para transeuntes e pessoas em situação de rua que costumam usar a coberta, mesmo deteriorada, como abrigo(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A fachada do antigo Restaurante Popular Mesa do Povo, único restaurante popular de Fortaleza, apresenta danos estruturais que representam risco para transeuntes e pessoas em situação de rua que costumam usar a coberta, mesmo deteriorada, como abrigo

Em resposta à reportagem e à indagação de Adail, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) disse que a reabertura do Restaurante Popular é uma das ações previstas no Plano Fortaleza sem Fome e será implementado ainda em 2025, no Centro de Fortaleza.

“O equipamento tem a previsão de atender 1.200 pessoas em situação de rua e em vulnerabilidade social, todos os dias. Atualmente, o município fornece cerca de 180 mil refeições mensais para pessoas em vulnerabilidade acompanhadas nos equipamentos de assistência social”, garantiu a pasta.

E adicionou: “Deste total, 95 mil refeições são destinadas mensalmente à população em situação de rua, com fornecimento diário em Refeitório Social, dois Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centros Pop), duas Pousadas Sociais e um Centro de Convivência, além da busca ativa para distribuição de marmitas nos bairros Parangaba e Centro.”

Moradias precárias em área do centro histórico da Parangaba(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Moradias precárias em área do centro histórico da Parangaba

“Existem, ainda, seis Hortas Sociais com capacidade de produzir e distribuir, aproximadamente, 6 toneladas de hortaliças orgânicas por mês para 3.200 pessoas em insegurança alimentar e idosos cadastrados no projeto”, acrescentou a SDHDS.

Já a Secretaria Regional (SER) 4, onde está situado o bairro Parangaba, informou, em nota, que está ciente da situação registrada na Praça dos Caboclos.

“Uma equipe técnica visitou o equipamento, realizou o levantamento dos serviços necessários e, a partir disso, a demanda segue em andamento para que as melhorias de infraestrutura necessárias sejam executadas o mais breve possível”, disse o comunicado.

A praça matriz da Parangaba, em frente à Igreja Bom Jesus dos Aflitos, cortada pela avenida João Pessoa, é outro ponto do bairro que aparenta abandono. Sua continuação leva à Praça dos Caboclos, onde pessoas em situação de rua vêm se instalando ao longo dos anos(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A praça matriz da Parangaba, em frente à Igreja Bom Jesus dos Aflitos, cortada pela avenida João Pessoa, é outro ponto do bairro que aparenta abandono. Sua continuação leva à Praça dos Caboclos, onde pessoas em situação de rua vêm se instalando ao longo dos anos

Segundo a pasta, a SDHDS envia uma equipe da abordagem social ao local para realizar a busca ativa de pessoas em situação de rua para encaminhamento de necessidades.

Para registrar solicitações de serviços públicos, os fortalezenses podem ligar para o telefone 156 ou por meio das Centrais de Acolhimento das Secretarias Regionais.

Às margens da lagoa de Parangaba, a antiga Casa de Forró é outro local do bairro que tem se deteriorado. Situada na avenida Américo Barreira, continuação da José Bastos, era também conhecida como Mansão do Forró e foi palco de grandes bandas em Fortaleza, como Limão com Mel, Mastruz com Leite, Mel com Terra e Forró Rabo de Saia.

Prédio da antiga Casa de Forró, na Parangaba, está esquecido e deteriorado

Nomes como Amado Batista, Reginaldo Rossi e grupos como Aviões do Forró e Desejo de Menina fizeram apresentações no ambiente fresco e divertido na beira da lagoa.

Quando ativa, uma casa duplex enorme atrás do palco abrigava jogadores do time de futebol Calouros do Ar. Conhecida como a casa de show que tinha o ingresso popular, estava sempre lotada e com bandas consagradas que marcaram época até o início dos anos 2000.

Hoje, o contraste é gritante: onde antes se reuniam nomes clássicos do brega e forró, agora impera o silêncio, os escombros e a negligência. A antiga Casa de Forró é apenas sombra do que foi.

Mapa do bairro Parangaba

 

Com a fachada tomada pelo mato e estruturas deterioradas, o espaço que antes vibrava ao som das sanfonas e multidões dançantes tornou-se um retrato do abandono.

A reportagem procurou o empresário Emanuel Gurgel e o grupo SomZoom, responsáveis por administrar o espaço no auge de sua atividade, mas não obteve resposta até o fechamento.


 

Abandono histórico: a espera arruinada da Casa de Câmara de Arronches

Na esquina da Parangaba onde o tempo parece ter parado, resistem pedras e paredes feridas por décadas de descaso. Ali está a antiga Casa de Câmara da Vila de Arronches — prédio colonial que carrega em suas ruínas a memória da formação de Fortaleza e que, embora tombado provisoriamente desde 2006, segue em “estado de arruinamento” à espera de um tombamento definitivo que nunca chega.

O cenário, segundo a promotora Ann Celly Sampaio, do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), é “um terror”.

A promotora, que acompanha de perto a situação do imóvel por meio da 135ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, lamenta a ausência de providências por parte do poder público, apesar da cobrança constante feita pelo órgão.

Na casa construída por indígenas da Aldeia Porangaba, sob trabalho forçado, provavelmente entre o fim do século XVII e primeira metade do século XVIII, funcionou a Câmara e Cadeia (situada atrás da Câmara) da Villa de Arronches (Parangaba), em 1759-1835(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Na casa construída por indígenas da Aldeia Porangaba, sob trabalho forçado, provavelmente entre o fim do século XVII e primeira metade do século XVIII, funcionou a Câmara e Cadeia (situada atrás da Câmara) da Villa de Arronches (Parangaba), em 1759-1835

“Desde sempre a gente vem cobrando da Prefeitura que ela faça o escoramento do prédio, que ela tire as árvores que estão adentrando o prédio”, conta.

Mesmo com o tombamento provisório, que confere ao bem as mesmas obrigações de preservação que um tombamento definitivo, nenhuma intervenção concreta foi feita — exceto pela produção da instrução de tombamento, que a promotora descreve como “um relato histórico respeitoso e emocionante”.

Essa instrução, aprovada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural de Fortaleza (Comphic) em julho de 2023, confirma a importância histórica da edificação como marco do processo de colonização, resistência indígena, administração local e expansão territorial do Ceará.

Parangaba, situada nas margens da lagoa do mesmo nome, foi um dos mais antigos povoados do Ceará, o chamado aldeamento indígena de Porangaba (em tupi-guarani, significa "lugar de bela vista" ou "bela vista") que os jesuítas fundaram no século XVI. Durante o império, foi município anexado a Fortaleza com direito a Intendente e Câmara (prédio que hoje encontra-se em ruínas)(Foto: Instituto Amanaiara)
Foto: Instituto Amanaiara Parangaba, situada nas margens da lagoa do mesmo nome, foi um dos mais antigos povoados do Ceará, o chamado aldeamento indígena de Porangaba (em tupi-guarani, significa "lugar de bela vista" ou "bela vista") que os jesuítas fundaram no século XVI. Durante o império, foi município anexado a Fortaleza com direito a Intendente e Câmara (prédio que hoje encontra-se em ruínas)

Apesar do reconhecimento oficial, o tombamento definitivo segue travado. “Foi feito o estudo, votado, e definido que ela deveria ser tombada definitivamente. Esse processo foi para a prefeitura, porque o prefeito precisa fazer o decreto de tombamento. E até hoje a gente não soube mais nada”, afirma Ann Celly.

Em setembro de 2024, o Ministério Público cobrou celeridade da Prefeitura de Fortaleza no processo de tombamento definitivo da construção e medidas de preservação do espaço.

Mas a ausência de manutenção agravou a degradação do imóvel, cujas fachadas estão comprometidas pela ação de raízes de gameleiras que brotaram ao longo dos anos.

Raízes tomam conta de edificação histórica no bairro Parangaba, a Casa de Câmara e Intendência da Vila de Arronches é um dos prédios mais antigos de Fortaleza(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Raízes tomam conta de edificação histórica no bairro Parangaba, a Casa de Câmara e Intendência da Vila de Arronches é um dos prédios mais antigos de Fortaleza

Um relatório técnico do Núcleo de Apoio Técnico do MPCE alertou para o risco de desabamento e apontou as lacunas que travam o processo de restauro: falta de levantamento arquitetônico preciso e ausência de comprovação documental de propriedade.

Enquanto isso, o MPCE segue tentando evitar que a história se perca de vez. Em reunião com representantes da Secretaria Municipal de Cultura da Fortaleza (Secultfor) — dois arquitetos e um assessor jurídico — a promotora fez um apelo: pediu atenção especial à Casa da Câmara e concedeu um mês de prazo para resposta.

“Se em um mês não me derem resposta e não começarem, eu dou entrada na ação”, diz. A ação civil pública já está pronta e poderá responsabilizar a gestora atual, secretária Helena Barbosa, com pedido de multa e obrigações legais de preservação.

Conforme a promotora, a demora em judicializar decorre da tentativa de sensibilizar a gestão municipal e evitar o tempo arrastado de um processo judicial, que dependeria de perícias e trâmites que poderiam tornar a recuperação ainda mais distante.

“É mais fácil conseguir um acordo e sensibilizar a Prefeitura do que entrar com uma ação. Mas se for preciso, a gente entra”, assegura.

Um dos principais obstáculos para a recuperação do imóvel, de acordo com Ann Celly Sampaio, é a falta de recursos financeiros.

Promotora Ann Celly Sampaio(Foto: Divulgação MPCE)
Foto: Divulgação MPCE Promotora Ann Celly Sampaio

Embora tenha identificado interesse por parte de técnicos da Prefeitura, especialmente arquitetos que demonstraram sensibilidade em relação ao valor histórico da edificação, a promotora ressalta que “aquela vontade deles não significa que vai ser feito”, já que a decisão depende de alocação orçamentária e vontade política da gestão municipal.

“Vai precisar que a secretária se imponha perante a Prefeitura Municipal de Fortaleza, perante o prefeito, para que venha verba e aquela obra seja feita”, afirmou.

Enquanto o tempo corrói vigas e memórias na Parangaba, o que se espera é que a ação do Ministério Público consiga, antes do colapso, mover as engrenagens da responsabilidade pública.

Afinal, como resume Ann Celly: “O descaso da prefeitura não é de um prefeito. É um descaso da Prefeitura de Fortaleza com o patrimônio histórico e cultural da Cidade. Isso eu tenho visto em inúmeros processos.”

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) foi questionada sobre as providências adotadas desde a cobrança feita pelo Ministério Público em setembro de 2024, tanto em relação à formalização do tombamento definitivo da Casa de Câmara da Vila de Arronches quanto às ações emergenciais de preservação do imóvel.

Em resposta, a pasta confirmou que “o tombamento ainda não foi concluído em razão de trâmites administrativos relacionados à comprovação da propriedade do imóvel.”

Na nota conjunta, a Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza (PGM) ratificou, também, que o processo de tombamento da antiga Casa da Câmara da Villa de Arronches encontra-se em tramitação, na fase de examinação da comprovação da titularidade da propriedade do imóvel. Nenhuma das duas, entretanto, detalhou previsão ou prazo para que esse processo seja concluído.


 

>> Ensaio

A importância histórica da Parangaba para o desenvolvimento de Fortaleza

Por Thiago Roque*

A antiga Vila Nova de Arronches, hoje conhecida como Parangaba, surgiu em 1759 em uma área privilegiada pela amenidade do clima e simplicidade de seus habitantes, sendo um refúgio para quem não queria morar na Capital.

A estrada de Arronches, embora de difícil acesso, foi a primeira via de integração entre a vila e Fortaleza, impulsionando seu desenvolvimento socioeconômico.

O bairro da Parangaba, antes de ser incorporado a Fortaleza, era um aldeamento indígena ocupado e catequizado pelos jesuítas da Companhia de Jesus no século XVI.

Em 1759, foi elevada à condição de vila com o nome de “Arronches” — o que demonstra sua importância como uma área de povoamento bastante significativo, antes da expansão da capital cearense.

Fragmento do mapa Siará (1629), de Albernaz, representa uma área geográfica do litoral cearense com destaque para elementos como rios ("Rio da Cruz"), acidentes geográficos ("Buracodas Tartarus ou Lura coaquara", "boa bahia"), e a indicação de uma "Aldea dos Indios" onde hoje seria o bairro Parangaba. Trata-se de imagem parcial do "Pequeno atlas do Maranhão e Grão-Pará"(Foto: Albernaz/Reprodução)
Foto: Albernaz/Reprodução Fragmento do mapa Siará (1629), de Albernaz, representa uma área geográfica do litoral cearense com destaque para elementos como rios ("Rio da Cruz"), acidentes geográficos ("Buracodas Tartarus ou Lura coaquara", "boa bahia"), e a indicação de uma "Aldea dos Indios" onde hoje seria o bairro Parangaba. Trata-se de imagem parcial do "Pequeno atlas do Maranhão e Grão-Pará"

Em 1607, os Padres Francisco Pinto e Luiz Figueira chegaram de Pernambuco e fundaram a aldeia de Parangaba. Em 1609, Felipe Camarão construiu a capela dessa aldeia.

Em 1795 foi criada a vila e a Paróquia, mudando-lhe o nome indígena de Parangaba para o nome português de Vila Nova de Arronches.

A Paróquia foi extinta no ano de 1835, logo após a extinção do município (13 de maio de 1835). Mas, em 1876, a paróquia foi criada novamente, recebendo o nome de Paróquia do Bom Jesus dos Aflitos, na povoação de Arronches.

No século XVIII, Parangaba passou a se destacar por ser um ponto de conexão para o transporte do gado na região.

A Estrada do Barro Vermelho-Parangaba (que ligava o atual Antônio Bezerra a Parangaba) e a Estrada da Paranjana (que ligava Messejana a Parangaba) eram vias importantes para o escoamento do gado e outros produtos, o que evidencia a posição estratégica do bairro no fluxo comercial da época.

Essa rede de estradas e sua localização facilitavam o escoamento de produtos e a circulação de pessoas, contribuindo para o crescimento do seu entorno.

A chegada da Estrada de Ferro de Baturité em 1873 e inauguração da Estação de Arronches no dia 29 de novembro do referido ano, sua expansão em 1941 para atender as novas dinâmicas econômicas e comerciais com a construção do Porto do Mucuripe, reforçaram ainda mais a importância de Parangaba como um polo de desenvolvimento no Ceará.

Fotografia feita a partir de cartão postal que mostra a Estação ferroviária da Parangaba. Construída a 50m do local da estação original, o telhado tem estilo enxaimel, característica da arquitetura das duas primeiras décadas do século XX. O imóvel ainda está de pé devido a mobilização de moradores do bairro no início dos anos 2000(Foto: Fernanda Barros)
Foto: Fernanda Barros Fotografia feita a partir de cartão postal que mostra a Estação ferroviária da Parangaba. Construída a 50m do local da estação original, o telhado tem estilo enxaimel, característica da arquitetura das duas primeiras décadas do século XX. O imóvel ainda está de pé devido a mobilização de moradores do bairro no início dos anos 2000

A Estação de Arronches (atual Estação Parangaba) foi um marco, conectando a região à Fortaleza e as Serras de Baturité e Aratanha, facilitando o transporte de mercadorias e passageiros.

Entre 1894 e 1918, o bairro da Parangaba chegou a ter sua própria linha de bonde, demonstrando sua relevância na infraestrutura de transporte da época.

O Major José Feijó de Mello, importante figura local e proprietário de uma olaria que fornecia tijolos para a região, foi fundamental para o desenvolvimento urbano de Arronches, contribuindo significativamente para a construção do teatro.

Sua influência e seu papel como comerciante entre a Capital e Arronches demonstram sua relevância para a economia local.

Casa do comerciante José Pedra Natalense, pioneiro vindo de Baturité para a Porangaba no fim do século XIX e que se tornou a pessoa mais abastada do bairro no início do século XX, tendo a Padaria Natalense como seu empreendimento mais conhecido. Tornou-se proprietário de inúmeros terrenos e imóveis na região. A residência, considerada a mais antiga da Parangaba, ainda é habitada por familiares de Zé Pedra(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Casa do comerciante José Pedra Natalense, pioneiro vindo de Baturité para a Porangaba no fim do século XIX e que se tornou a pessoa mais abastada do bairro no início do século XX, tendo a Padaria Natalense como seu empreendimento mais conhecido. Tornou-se proprietário de inúmeros terrenos e imóveis na região. A residência, considerada a mais antiga da Parangaba, ainda é habitada por familiares de Zé Pedra

A inauguração do Teatro Guarany, em 28 de junho de 1874, pela Associação Dramática de Eduardo Álvares da Silva, vinda de Recife, foi um evento notável.

A relevância desse "teatro campestre" é ainda maior considerando que Fortaleza estava sem um teatro desde o fechamento do Teatro Thaliense em 1872.

Assim, a ferrovia não só facilitou o acesso, mas também consolidou o Teatro Guarany como um importante espaço cultural para a Vila Nova de Arronches.

Praça dos Caboclos, na Parangaba, está tomada pela vegetação — que cresceu junto ao número de pessoas em situação de extrema pobreza que fizeram do logradouro um abrigo(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Praça dos Caboclos, na Parangaba, está tomada pela vegetação — que cresceu junto ao número de pessoas em situação de extrema pobreza que fizeram do logradouro um abrigo

Apesar de ter sido um município independente em alguns momentos, Parangaba foi definitivamente incorporada a Fortaleza em 1921. Essa anexação foi um passo natural no processo de expansão da capital, que absorvia povoados vizinhos importantes para o seu crescimento.

A infraestrutura já existente na Parangaba, foi fundamental para o desenvolvimento da capital cearense após sua anexação, com sua vias de transporte rodoviário e ferroviário, que facilitou essa integração e impulsionou o desenvolvimento urbano de Fortaleza.

A Parangaba abriga também importantes patrimônios históricos. Dentre eles, destacam-se a Igreja do Bom Jesus dos Aflitos, que, apesar de ter suas origens no século XVII, possui sua estrutura arquitetônica atual datada do século XIX.

A Igreja do Senhor Bom Jesus dos Aflitos foi sendo estabelecida a partir de 1664, durante o processo de colonização e de instalação das missões e aldeamentos jesuítas e da ocupação indígena no Ceará. O prédio é patrimônio tombado pelo municipio(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE A Igreja do Senhor Bom Jesus dos Aflitos foi sendo estabelecida a partir de 1664, durante o processo de colonização e de instalação das missões e aldeamentos jesuítas e da ocupação indígena no Ceará. O prédio é patrimônio tombado pelo municipio

Temos também a antiga Estação Ferroviária da Parangaba, construída no final da década de 1930 e início de 1940. A antiga Estação de Arroches foi demolida no início dos anos de 1930 para a construção da presente até os dias de hoje.

Porém, por pouco, essa estação não foi demolida para a construção da linha sul do Metrô de Fortaleza. Infelizmente, esse marcante equipamento da cultura ferroviária no bairro encontra-se subutilizado, mesmo após sua preservação.

O antigo Teatro Guarany, que hoje funciona como salão paroquial da Igreja Bom Jesus dos Aflitos, é, inclusive, mais antigo que o próprio Theatro José de Alencar (1910), localizado no Centro de Fortaleza.

Antiga estação ferroviária da Parangaba, segunda estação de trem mais antiga do Ceará, foi rebaixada para a construção da linha sul do metrô de Fortaleza. Projetos de transformar o local em museu e outras finalidades culturais foram cogitados, mas a estação segue desativada e seu acesso está limitado pelas grades instaladas ao redor(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Antiga estação ferroviária da Parangaba, segunda estação de trem mais antiga do Ceará, foi rebaixada para a construção da linha sul do metrô de Fortaleza. Projetos de transformar o local em museu e outras finalidades culturais foram cogitados, mas a estação segue desativada e seu acesso está limitado pelas grades instaladas ao redor

E, em total estado de abandono, encontramos a antiga Casa da Câmara da Vila de Arronches e Intendência Municipal da Vila de Porangaba. Com vista privilegiada para a Lagoa da Parangaba, essa edificação encontra-se em ruínas.

A mesma situação se aplica às estruturas dos túmulos dos séculos XIX e XX, nos estilos neoclássico e art déco, que estão abandonados em um dos cemitérios mais importantes do Estado, o Cemitério São José, localizado a poucos metros da Igreja Matriz do bairro.

*Thiago Roque é historiador, professor e um dos criadores do projeto Fortaleza sobre Trilhos ao lado do também professor Sandoval Matoso. A iniciativa de imersão histórica e cultural leva grupos a partir dos trilhos do metrô e do VLT de Fortaleza em percursos que contam e descobrem mais sobre a história da Capital

"Oie, como vai? :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Se preferir, me escreva um e-mail (karyne.lane@opovo.com.br), ficarei feliz de te ler. Até a próxima!"

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