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Áreas verdes são também azuis: lagoas ajudam a conter enchentes, mas têm desaparecido
Reportagem Seriada

Áreas verdes são também azuis: lagoas ajudam a conter enchentes, mas têm desaparecido

Das mais de uma centena de lagoas de Fortaleza, 62 não possuem proteção legal. Boa parte ainda foi aterrada completamente ou em partes - como a Parangaba - provocando problemas de escoamento. Pesquisa da UFC propõe a criação de parques de preservação

Áreas verdes são também azuis: lagoas ajudam a conter enchentes, mas têm desaparecido

Das mais de uma centena de lagoas de Fortaleza, 62 não possuem proteção legal. Boa parte ainda foi aterrada completamente ou em partes - como a Parangaba - provocando problemas de escoamento. Pesquisa da UFC propõe a criação de parques de preservação
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A água se vê cercada de gente desde o início da civilização. As primeiras cidades, vilas e povoados formaram-se ao redor de rios e lagos e, movidos por necessidades biológicas, os seres humanos pernoitaram em busca de recursos hídricos e uniram-se em torno deles.

Desenvolveram cultura, ciência e relações sociais. Por prover a continuidade da vida, a água chegou a ser considerada o centro de tudo nas origens da filosofia, conforme o grego Tales de Mileto.

Lagoa da Parangba integra a lista. Está em condições de acumulo de lixo, estruturas quebradas e com concentração de Aguapés(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Lagoa da Parangba integra a lista. Está em condições de acumulo de lixo, estruturas quebradas e com concentração de Aguapés

O Brasil é um país com abundância de recursos hídricos naturais, ainda que distribuídos de maneira desigual. No semiárido, por exemplo, os pontos de água, como minas de ouro, levaram centenas de pessoas a saírem dos locais de origem em direção a pontos com maior disponibilidade deles.

Fortaleza é um destes pontos. Além da posição litorânea e de rios como Cocó, Ceará, Maranguapinho, Pacoti e Coassu, mais de uma centena de lagoas marcam o território da Capital. No entanto, o que ajudou a cidade a se desenvolver, está sumindo justamente pelo desenvolvimento urbano. A água auxiliou o progresso e hoje o progresso absorve a água.

 

 

Lagoas de Fortaleza estão sendo aterradas

As lagoas urbanas de Fortaleza, apesar de sua importância ambiental e climática, têm desaparecido ao longo dos anos. Uma pesquisa conduzida pelo geógrafo Lucas Emerson e orientada pelo professor Flávio Nascimento, da Universidade Federal do Ceará (UFC), revelou pelo menos 10 lagoas aterradas na Capital.

Além disso, das 102 lagoas identificadas pelos pesquisadores, 62 não possuem proteção legal adequada. O estudo destaca a necessidade urgente de preservação desses corpos hídricos diante da escassez de áreas verdes e dos impactos negativos do seu desaparecimento.

 

Lagoas aterradas em Fortaleza 


A identificação das lagoas aterradas surgiu como um desdobramento inesperado da pesquisa de Lucas. O objetivo inicial era levantar as atuais águas urbanas de Fortaleza, ou seja, onde é possível encontrar corpos hídricos visíveis.

“No entanto, ao longo da minha investigação e coleta de dados, percebi que algumas lagoas mencionadas nas bibliografias e fontes documentais não existiam mais. Elas tinham sido aterradas ao longo do tempo. E, pelo que escutei, existiriam mais lagoas aterradas. Porém essas foram as únicas que consegui constatar com maior precisão”, detalha o pesquisador.

Uma lagoa no bairro Barroso é um exemplo de lagoa aterrada em Fortaleza. Localizada entre a avenida Deputado Paulino Rocha e a rua Sebastião Costa de Assis, ela ficava nas proximidades da Arena Castelão e da sede da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), a poucos metros de uma passagem do rio Cocó. Foi reduzida de forma progressiva até restarem apenas pequenos pontos de drenagem, como mostra o antes x depois.

 

Antes x Depois de lagoa aterrada no bairro Barroso (2015-2024)

 

O pesquisador Lucas Emerson observa que o aterramento de lagoas é um processo que tem ocorrido principalmente por conta da expansão urbana: “Fortaleza teve que acomodar um crescimento desenfreado e também existiu a necessidade da construção de conjuntos habitacionais a partir da segunda metade do século passado. Mesmo as lagoas legalmente protegidas enfrentam alguns desafios como as ocupações irregulares. A fiscalização ambiental nem sempre é eficiente”.

 

 

A "relatividade" da Lagoa da Parangaba

Tudo é questão de perspectiva e, ao apontar para a aparente enorme lagoa da Parangaba, o morador aposentado Edmilson da Silva, 70, disse, desapontado: “Está ficando só o pratinho. Até os jacarés estão sentindo falta”.

Ainda que siga no cenário urbano de Fortaleza, a maior lagoa da Cidade está significativamente menor do que o tamanho natural. Não se sabe exatamente a área total do aterramento, mas registros do jornalista ambiental Ademir Costa apontam que a lagoa chegava aos fundos do Hospital Psiquiátrico São Vicente. Boa parte ainda virou a Av. José Bastos, ao lado.

Mesmo o território que persiste está boa parte tomado por aguapés e demais vegetações espessas, conforme denunciou O POVO. Sem quaisquer equipamentos, é possível caminhar sobre “as águas”, ou onde deveria haver. Vacas e bois também andam pela área e, durante a apuração, foram vistas pessoas ateando fogo nas proximidades.



Edmilson mora no bairro há 45 anos, sempre nos arredores da lagoa. Quando o encontramos, ele segurava um pequeno ramo de plantas quebra-pedra, boas para “chás contra pedra na vesícula e pedra nos rins”.

Passou a acompanhar a visita da reportagem e a apontar fatos curiosos sobre o espaço, contando histórias de jacarés, plantas e água “sumida”. “A lagoa tinha espaço. O negócio é que eles vão fechando, vão aterrando. Agora, está se afastando”, disse.

Problemas estruturais dentro e ao redor da Lagoa foram citados tanto por Edmilson quanto por João Albuquerque, membro do “ Eu amo a Parangaba "O movimento ao qual o morador integra tem vinculações com outro, “Patrimônio Parangaba”, formado por cinco pessoas. O foco, a “princípio era provocar pertencimento histórico e memória nos habitantes do bairro”. Devido às muitas demandas, hoje eles somam em “fortalecer” o engajamento dos moradores." ”. Mais que isso, estavam perceptíveis.

 

Problemas que ameaçam a Lagoa de Parangaba


Segundo João, o aterramento - somado ao aumento do volume de chuvas provocado pelas mudanças climáticas - causa alagamentos em regiões nunca vistas por ele, no bairro. “Alagou ali na região do terminal da Lagoa, que eu nunca tinha ouvido falar de acontecer”, exemplificou.

O morador informou que a última grande reforma se deu na gestão do ex-prefeito Roberto Cláudio (2013-2020), com modificações e demarcações na feirinha. De fato, a mudança ocorreu em 2020.

Durante a visita da reportagem, um trator removia a vegetação interna. Conforme João, limpezas ocorrem anualmente - nos períodos chuvosos, como aquele. “Fora no ano passado, que o prefeito Sarto limpou pouco antes da campanha eleitoral”, completou.

Parte da vegetação da Lagoa da Parangaba estava sendo retirada. Dias antes, O POVO denunciou forte presença de aguapés(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Parte da vegetação da Lagoa da Parangaba estava sendo retirada. Dias antes, O POVO denunciou forte presença de aguapés

Ainda que seja um bairro central, com grande fluxo de carros e pessoas, a palavra “abandono” cercou as falas de João e Edmilson. A presença esparsa de órgãos de preservação foi colocada como um dos motivos para o estado atual da Lagoa, cujo espelho d’água já é tombado.

“Se fosse feita uma 'limpezinha' legal até eu ajudava com o resto”, pediu, simplesmente, Edmilson. “Enquanto Deus me der saúde e eu possa aguentar o rojão de trabalhar, eu estarei aqui ajudando. Eu gosto da limpeza, só não nos bolsos”, brincou.

 

 

A água reinvidica o espaço tomado

Entre os impactos ambientais e urbanos que podem ser gerados a partir do aterramento das lagoas está a alteração do escoamento natural da água da chuva.

“Porque uma das funções das lagoas é funcionar como área de retenção líquida. Se a lagoa é aterrada, a água que antes seria absorvida vai ter de escoar para outros locais. Isso pode aumentar o risco de alagamentos e sobrecarregar o sistema de drenagem urbana, o que pode ser muito intenso em períodos de chuva”, explica Lucas, que é mestre em Geografia pela UFC.

O professor Flávio Nascimento, orientador do estudo, complementa que as lagoas desempenham um papel fundamental no equilíbrio ambiental da Cidade — elas auxiliam na regulação do microclima e ajudam a reduzir a temperatura em áreas urbanizadas, além de funcionarem como reservatórios naturais para absorver a água da chuva.

Isso porque as lagoas naturalmente recebem água de escoamento superficial; numa cidade tão impermeável como Fortaleza, consequentemente elas funcionariam como bacias de decantação para absorver essas águas, evitando cheias e alagamentos.

Na avaliação do professor Flávio Nascimento, docente no departamento de Geografia da UFC, o aterramento de lagoas tem a ver com dois aspectos básicos: “Um é a ocupação indevida, sem planejamento e sem licenciamento ambiental; outro é a especulação imobiliária, que mesmo com licenciamento, muitas vezes pode estar infringindo o Código Florestal e as legislações relacionadas às águas situadas em áreas urbanas”.

 

Lagoas de Fortaleza

 

Além disso, o aterramento provoca uma modificação estética na paisagem, “o que é muito ruim”, na opinião de Nascimento. “Com aterramento de lagoas você pode ter a morte de rios, porque normalmente essas lagoas alimentam os rios. Quase que a totalidade delas são ligadas a um pequeno canal ou já são alimentadas por um rio”.

“Você pode estar, portanto, contribuindo para que essas planícies flúvio-lacustres, que são lagoas com rios, sendo aterradas elas impactem os rios também, fazendo com que alguns canais e braços de rios desapareçam”.

E continua: “Fortaleza é uma cidade muito perversa ambientalmente. Seu litoral se fez historicamente ocupando as dunas e com desmatamento extensivo, principalmente nas áreas de tabuleiros e matas ciliares. Antes da chegada da Cagece, nos anos 1970, as lagoas eram muitas vezes o único esteio de água, a única fonte de água das pessoas. Com a chegada da companhia, parece que as pessoas viraram as costas para as lagoas, de modo que elas sofreram problemas de toda ordem”.

 

Distribuição das lagoas urbanas de Fortaleza a partir das áreas legalmente protegidas

 

O professor acredita que “a marcha da urbanização para os quatro cantos da Cidade só tende a aumentar o problema. O que se deve fazer é organizar o uso do solo, controlá-lo, proibir a ocupação de determinadas áreas, trabalhar numa política de reflorestamento e na educação ambiental”.

Diante do que é exposto na pesquisa, Lucas Emerson propõe a criação de 16 novos parques urbanos das lagoas em Fortaleza. O objetivo, segundo ele, é contribuir para discussões sobre a política de áreas protegidas da Capital — já que algumas lagoas urbanas já possuem avançado processo de urbanização em andamento.

“O zoneamento de Fortaleza possui macrozonas como a macrozona de proteção ambiental e a macrozona de proteção urbana. Dentro delas a gente tem zona de preservação ambiental, zona de recuperação ambiental, enfim, um zoneamento que abrange todo o município. Quando proponho os parques urbanos, estou tentando individualizar uma área legalmente protegida especificamente para aquelas lagoas”, expõe.

 

Os 16 parques urbanos propostos pela pesquisa da UFC

 

Para o geógrafo, “as lagoas urbanas são elementos prioritários no estabelecimento de categorias de proteção e preservação dentro do planejamento ambiental urbano. Dos 25 parques urbanos criados pela prefeitura de Fortaleza, 14 envolvem lagoas. Então já existe um arcabouço normativo para ampliação dessa política de proteção”.

Um planejamento urbano eficiente é uma das principais soluções apontadas por Lucas para minimizar esses impactos: “O Plano Diretor é o principal instrumento legal de políticas públicas voltadas para a proteção desses ambientes. É necessário que essas lagoas sejam devidamente protegidas e integradas ao espaço urbano. Por isso sugerimos a criação de mais parques urbanos”.

 

 

Prefeito e secretário: quais serão as providências da gestão municipal de Fortaleza?

Evandro Leitão costuma elencar o meio ambiente como prioridade da gestão. O POVO+ questiona a Prefeitura sobre a preservação das áreas verdes desde o primeiro dia do mandato.

Após o anúncio da reavaliação das zonas excluídas em 2024, o prefeito chegou a revogar uma das aprovações. Também disse que espera finalizar a revisão do Plano Diretor para este ano de 2025.

O veto do prefeito foi aprovado na Câmara e a proteção retornou à área, localizada no bairro Manoel Dias Branco. O POVO+ mostrou como votou cada vereador, além de trazer um histórico da posição dos parlamentares do mandato anterior em pautas ambientais.

Prefeito Evandro Leitão (PT) concedeu entrevista exclusiva ao O POVO(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Prefeito Evandro Leitão (PT) concedeu entrevista exclusiva ao O POVO

Houve uma oportunidade de conversa com o prefeito no dia 4 de fevereiro. Na ocasião, ele voltou a criticar as exclusões, afirmando que “estão sendo repassadas para a questão imobiliária, essa é a grande realidade”.

Segundo Evandro, o fato de que alguns vereadores autores dos textos agora integrarem a base aliada não será impedimento para eventuais vetos. “Aquilo que eu não acho justo ou razoável, irei vetar. Não depende de mim [mas sim da avaliação da Seuma]”, comentou Evandro.

O prefeito ainda disse que a revisão do PDPFor partirá “do zero”, mesmo que tenha sido discutida em partes na gestão anterior, de José Sarto (PDT). Equipes chegaram a realizar algumas ações mirando a revisão, prevista para 2019 - 10 anos após a versão inicial. O projeto nunca saiu, mas ocorreram reuniões em territórios, a formação de um Núcleo de estudo e o levantamento de dados.

Estou partindo do zero. Quero primeiro conhecer esse escopo que foi feito, essa compilação de dados que foram feitas”, completou. Segundo ele, este mês de fevereiro trará reuniões na qual serão discutidas questões de “mobilidade e meio ambiente”. A partir dela, será feita a análise inicial.

A reportagem conversou com João Vicente Leitão, titular da Seuma no dia 31 de janeiro. Ele esteve na ZPA Olho D’água e fez uma breve vistoria. A situação da ZPA foi narrada no episódio 03 deste especial sobre áreas verdes de Fortaleza.

Passeou pelo local, junto dos membros da associação, da deputada Larissa Gaspar (PT) e da vereadora Professora Adriana (PT). Conversou com a população, alegando uma motivação pessoal na revitalização daquele espaço: morava próximo e o via todo dia, a caminho da Seuma.

Foi a primeira vez que tivemos contato com ele desde o início da gestão. Nos dois primeiros episódios deste especial, fomos comunicados pela Seuma de que a reavaliação das áreas verdes estava sob cuidado do Paço Municipal.

Secretário João Vicente Leitão chegou por volta de 9h e visitou a ZPA Olho D'água(Foto: Associação)
Foto: Associação Secretário João Vicente Leitão chegou por volta de 9h e visitou a ZPA Olho D'água

Antes da conversa daquela sexta, João Vicente explicou ser “um quadro técnico”, ainda que a chefia da Seuma implique manobras políticas - admitiu. Ele confessou estar uma pasta com interesses diversos: urbanismo e meio ambiente e, portanto, busca uma gestão com dosagens, de modo que os dois lados cedam igualmente. “Para que nunca um prevaleça sobre o outro”.

O POVO+ questionou-o sobre a Zona Olho D’água, a qual prometeu “fazer um projeto de revitalização, trazer para cá, para a ponta, um micro parque para as crianças. Trazer uma possibilidade da associação fazer uma horta comunitária e a gente revitalizar isso nomeando as árvores”.

Segundo ele, a ideia é montar o projeto ainda em 2025. “Com a autorização do prefeito, podemos procurar uma parceria com algum banco mundial que possa fazer esse investimento e nos ajudar a atender a comunidade através dessa revitalização” comentou.

 

Promessas da Seuma


Em resumo, o secretário prometeu visitar outros Parques e demais zonas de preservação da Capital, além de priorizar a educação ambiental ao longo da gestão. Quanto ao PDPFor, João Vicente Leitão disse que “a ideia é a partir de abril pegarmos o Plano como está e trazer vereadores, Câmara Municipal, Estado, órgãos de arquitetura, engenharia, Crea, para finalizá-lo. Ainda este ano queremos publicar atualizado”.

 

 

Metodologia

Para a pesquisa de Lucas Emerson, foram realizados levantamentos bibliográficos, documentais e cartográficos que levaram à elaboração de um bando de dados com sistematização dos resultados.

O pesquisador forneceu os dados obtidos por meio da pesquisa para fossem transformados em visualizações através da plataforma Flourish.

De acordo com o professor Flávio Nascimento, “a dificuldade de se achar dados, mapeamentos, identificação e monitoramento de lagoas em Fortaleza se deve ao fato da descontinuidade de ações e estudos”.

Nascimento reforça que a falta de dados oficiais foi o que instigou a buscar e identificar o quantitativo das lagoas da Cidade, desde as aterradas e modificadas até as mais preservadas.

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Áreas verdes em Fortaleza

Série de reportagens especiais utiliza levantamento de dados exclusivo e trabalho investigativo para mostrar qual o futuro das áreas verdes de Fortaleza após a exclusão de zonas ambientais em 13 bairros da Capital. Diante dos efeitos da crise climática, o especial analisa o impacto dessa retirada para a Cidade e busca responder a seguinte questão: é possível o crescimento urbano coexistir com a sustentabilidade?