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Dos treinos às ruas: os bastidores do crescimento da corrida em Fortaleza
Reportagem Especial

Dos treinos às ruas: os bastidores do crescimento da corrida em Fortaleza

Modalidade ganha força na Capital, reunindo atletas de alto rendimento, movimentando a economia e exigindo novos olhares para estrutura e políticas públicas

Dos treinos às ruas: os bastidores do crescimento da corrida em Fortaleza

Modalidade ganha força na Capital, reunindo atletas de alto rendimento, movimentando a economia e exigindo novos olhares para estrutura e políticas públicas
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O nascer e o pôr do sol na orla de Fortaleza revelam um fenômeno curioso: o aumento exponencial dos adeptos da corrida de rua. A capital cearense é a cidade do Brasil com mais praticantes em ação simultaneamente, segundo o Relatório Anual sobre Tendências de Esportes do Strava, divulgado em dezembro.

O dado ganha maior importância em vista de o Brasil ser o segundo país com o maior número de atletas conectados à plataforma de desempenho, somando mais de 19 milhões de corredores. Tal dado representa um aumento de 29% em relação a 2023.

O POVO percorreu os circuitos de corridas para desenhar os bastidores dessa paixão que toma conta do fortalezense(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA O POVO percorreu os circuitos de corridas para desenhar os bastidores dessa paixão que toma conta do fortalezense

A prática, que mobiliza milhares de pessoas diariamente, reúne desde amadores em busca de uma saída do sedentarismo até atletas profissionais que se dedicam integralmente ao esporte.

Por trás dos números, entretanto, existe uma rotina exigente e pouco romantizada. São atletas que conciliam o desgaste do cotidiano com treinos frequentes e metas pessoais. A cada passo cronometrado, desafiam os próprios limites em uma cidade que, mesmo com desafios estruturais, tem se estabelecido como palco importante para a corrida de alto rendimento.

Para entender melhor o fenômeno crescente das corridas de rua em solo alencarino, o Esportes O POVO conversou com atletas, assessorias esportivas e profissionais que atuam nos bastidores desse universo.

 

 

Entre metas e sacrifícios: a vida de quem corre por profissão

Em meio à rotina puxada, os atletas de corrida de rua em Fortaleza equilibram treinos intensos, metas pessoais e obstáculos que vão desde a estrutura urbana até a valorização profissional. Um desses atletas de alto rendimento é Jamal Soufane, de 35 anos, marroquino radicado no Ceará.

Professor por formação, Jamal começou a correr em 2019, movido pelo desejo de sair do sedentarismo. A prática diária virou hábito e, em pouco tempo, ele alcançou o nível profissional. Hoje, vive exclusivamente do esporte e compartilha sua rotina nas redes sociais, também como influenciador digital.

“A corrida me ajudou muito a superar os desafios do lockdown durante a pandemia de Covid-19, principalmente por estar longe da minha família, que vive no Marrocos. A corrida se tornou uma âncora emocional e, a partir daí, virou algo muito maior do que apenas um hobby”, conta Jamal.

Com uma rotina de alta performance, Jamal corre todos os dias — em algumas ocasiões, duas vezes ao dia. Nos momentos em que não está correndo, dedica-se a musculação, fisioterapia ou sessões de recuperação.

Para manter a rotina regrada e o pleno controle sobre seu rendimento, Jamal utiliza tecnologias como relógios com monitor cardíaco, anel de monitoramento de sono, monitor cardíaco externo e outros dispositivos. Ele ressalta que a possibilidade de ser um corredor de ponta só é possível por causa de seus patrocinadores.

Os apoiadores, inclusive, viabilizam, a participação dele em competições internacionais — principal foco da carreira de Jamal.

“Atualmente estou em um projeto chamado Major Marathons, no qual estou correndo todas as grandes maratonas do mundo, tentando ser o melhor brasileiro ou pelo menos estar entre os três melhores do país em cada prova. Já corri em Berlim, Boston, Londres e Chicago. Agora em novembro, vou correr em Nova York e, no primeiro semestre de 2026, está prevista a Maratona de Tóquio, além de repetir Londres para comemorar meu aniversário”, conta o atleta.

Se, para Jamal, o apoio de patrocinadores é essencial para manter o foco exclusivo na carreira de atleta, outros corredores de alto rendimento precisam conciliar diferentes atividades para sustentar a rotina esportiva. É o caso de Gilson de Souza, de 37 anos.

Engajado no calendário das principais competições dentro e fora do Ceará, Gilson percorre entre 100 e 200 quilômetros (km) por semana, organizando ciclos de preparação que duram de três a seis meses, conforme a prova que tem pela frente.

Gilson atua como corredor profissional e professor
Foto: Ricardo Barbosa
Gilson atua como corredor profissional e professor

Para viabilizar a rotina de treinos e a logística das viagens, o atleta conta com o patrocínio da agência de negócios Febracis Coaching. Contudo, para complementar a renda, Gilson atua ainda como professor na Stark, assessoria esportiva do Estado.

“Para mim, correr hoje significa muito mais do que apenas uma atividade física. É um momento importante na minha rotina, que me traz bem-estar tanto físico quanto mental, me desafia e me ajuda a me conectar comigo mesmo e com o que está ao meu redor”, comenta ele, que também é estudante de Educação Física.

Para Gilson, além de um estilo de vida ou profissão, a corrida de rua tem um significado ainda mais especial: o de mudança de realidade. Vindo de origem humilde, o corredor vivenciou uma transformação por meio do esporte.

“No início, minha prática esportiva era marcada pela falta de recursos, correndo descalço em meio à lama, já que não possuía tênis para treinar. Para adquirir os calçados, comecei a coletar latinhas com um grupo de atletas; o professor reunia essas latinhas e as vendia para financiar a compra de tênis, que eram concedidos apenas aos atletas que se destacavam nos treinos”, relembra.

 

 

A corrida de rua no tripé do triatlo

Na multidão de corredores que ocupa as ruas de Fortaleza, existem triatletas que utilizam a corrida como parte essencial do treinamento. Para eles, manter a regularidade é mais do que preparação física, é também uma forma de sustentar o desempenho nas três modalidades que compõem o triatlo (natação, atletismo e ciclismo).

Dentre esses triatletas está Socorrinha, fortalezense de 29 anos que vive exclusivamente do esporte. “Hoje meu patrocínio master é a Stark, com o qual consigo me manter sem ter outro trabalho. Antes eu era professora da assessoria (de corridas), mas hoje, graças a Deus, sou atleta profissional, e tenho outros patrocinadores que me ajudam muito nos meus gastos nas provas em Fortaleza e fora do Estado”, explica.

“Hoje a corrida representa diversas conquistas na minha vida. Vai muito além de dinheiro ou troféu, eu amo correr. Me ensina tanto e me faz sentir forte em todos os sentidos”, diz a triatleta.

Socorrinha Leite, 29 anos, consegue viver do esporte. Tem um patrocínio que lhe garante não precisar recorrer a outra atividade(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Socorrinha Leite, 29 anos, consegue viver do esporte. Tem um patrocínio que lhe garante não precisar recorrer a outra atividade

Apesar de reconhecer os avanços na modalidade, Socorrinha destaca a falta de incentivos para atletas de elite como um dos principais desafios. “Tem muitas provas, porém poucas pagam premiação em dinheiro. Muitas pagam mais troféu, e isso desvaloriza os atletas”, declara.

Assim como ela, a triatleta e empresária Bruna Braga, de 34 anos, também utiliza a corrida de rua como um dos pilares de sua formação atlética. Ela faz parte do grupo de pessoas que viu na corrida uma resposta ao sedentarismo. O que começou como corridas despretensiosas ao lado da família tornou-se sua paixão e, mais tarde, uma porta de entrada para o triatlo.

“A constância nos treinos de corrida ajuda a aprimorar o rendimento nas etapas de atletismo do triatlo, além de trabalhar a mente para os desafios de provas longas. Via de regra, por semana, são três treinos de corrida mais transição (ciclismo + corrida). Cada semana exige ajustes”, detalha a triatleta.

Bruna Braga praticando corrida na Beira Mar de Fortaleza(Foto: Jhonata Dias)
Foto: Jhonata Dias Bruna Braga praticando corrida na Beira Mar de Fortaleza

Atualmente, Bruna disputa diversas competições nacionais e internacionais. Em junho deste ano, ela alcançou o terceiro lugar do Ironman Brasil, em Florianópolis (SC) e garantiu vaga para representar o País no mundial de Kona, no Havaí. Na ocasião, a cearense concluiu um circuito formado por 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e uma maratona de 42,2 km.

“A corrida me ensina sobre paciência, esforço, persistência e resiliência. Me ajuda a me entender e a me expressar. Não é só esporte: é uma forma de estar no mundo, com intenção, ritmo e propósito”, ressalta.

 

 

O papel das assessorias esportivas na formação do atleta

Ao lado de quem corre, há quem ensine a correr e ajude na preparação para enfrentar desafios da corrida. Assim, as assessorias esportivas têm papel fundamental na formação e acompanhamento de corredores de Fortaleza, desde iniciantes a atletas de alta performance.

Com rotinas planejadas, orientações técnicas e suporte motivacional, essas iniciativas ajudam a estruturar os treinos e a tornar a prática mais constante. Assim, projetos como a TF Assessoria têm crescido na Capital. Coordenada pelo educador físico Flávio Freire Costa, de 46 anos, a TFA atua há 14 anos no mercado das corridas de rua e atualmente atende cerca de 150 alunos — desde iniciantes até atletas que se preparam para maratonas.

A TFA organiza os treinos por meio de planilhas semanais, ajustadas conforme os objetivos e os ciclos de preparação de cada corredor. Além disso, o empreendimento conta com uma equipe multidisciplinar de profissionais da saúde, como fisioterapeutas, cardiologistas, ortopedistas, nutricionistas e outros educadores físicos.

Educador físico Flávio Freire Costa, 46 anos, o Tio Flavinho, é dono de assessoria de corrida(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Educador físico Flávio Freire Costa, 46 anos, o Tio Flavinho, é dono de assessoria de corrida

Apesar do investimento, Flávio ressalta que o retorno financeiro ainda está longe do ideal, uma vez que o mercado é desafiador para aqueles que sonham em viver exclusivamente da corrida de rua.

Segundo Flávio, são poucos os atletas que conseguem fazer da corrida sua principal fonte de renda. A maioria precisa conciliar os treinos com o trabalho e outras responsabilidades. Ainda assim, ele pontua que, mesmo sem um retorno financeiro considerável, os atletas de alta performance contribuem para o fortalecimento das assessorias.

“Na prática, o maior retorno que esses atletas proporcionam é em termos de visibilidade e reconhecimento. Quando um deles se destaca, fortalece a imagem da assessoria no mercado e atrai novos alunos que buscam evolução e resultados mais expressivos”, explica.

Flávio Freire Costa diz que ainda é raro os atletas conseguirem sobreviver tendo a corrida como principal fonte de renda(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Flávio Freire Costa diz que ainda é raro os atletas conseguirem sobreviver tendo a corrida como principal fonte de renda

Assim como a TFA, outras assessorias têm conquistado espaço entre corredores iniciantes e intermediários. É o caso da DL Performance, comandada por Diego Lopes, educador físico de 35 anos. Com um trabalho semelhante, a DL atua diretamente com praticantes de diferentes níveis, sempre priorizando a adaptação da planilha de treinos à realidade de cada aluno.

“Nosso suporte é desde a montagem de uma rotina semanal de treinos que se encaixe na disponibilidade dos alunos, seja uma, duas ou cinco vezes na semana. A partir disso organizamos os treinos e vamos dando suporte diariamente de forma virtual”, comenta Diego.

FORTALEZA, CEARÁ,  BRASIL-07-07-2025: Aumento de atividade física em Fotaleza. Corridas na Beira Mar e Box de Crossfit são atividades crescentes na cidade. (Foto: JÚLIO CAESAR / O POVO)(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL-07-07-2025: Aumento de atividade física em Fotaleza. Corridas na Beira Mar e Box de Crossfit são atividades crescentes na cidade. (Foto: JÚLIO CAESAR / O POVO)

Ele destaca que, além do acompanhamento técnico, o trabalho busca orientar individualmente os alunos sobre os desafios de cada prova. “Nosso suporte é focado em montar o cronograma de treinos e estratégia de prova. Antes da prova, alinhamos de forma individual o que cada um precisa estar atento para não errar na prova”, completa.

Com foco no público amador, ele observa que o retorno do trabalho também se reflete na motivação de quem pratica o esporte. “Nossos atletas se tornam inspiração para muitos outros praticantes, e o retorno financeiro vem por meio de novos alunos que entram na assessoria”, afirma.

 

 

Por trás da largada: o desafio de fazer a corrida acontecer

Se o número de corredores cresce, os bastidores também se movimentam. No outro extremo dessa engrenagem estão os organizadores, que lidam com a complexidade de tirar as provas do papel; trabalho que exige um planejamento minucioso e articulação com diferentes setores.

“Corrida de rua é um serviço. Envolve mais de 100 profissionais: advogados, social media, produtores, segurança, limpeza e estrutura de apoio. É como produzir um festival ou um jogo de futebol”, explica Fernando Elpídio, diretor da Nova Letra Eventos Criativos, empresa que atua há mais de 18 anos realizando corridas em Fortaleza.

De acordo com Fernando, as inscrições não cobrem nem metade do custo de uma prova: “As receitas não passam de 35%. O principal gasto é com os insumos: medalhas, hidratação, segurança, estrutura urbana. Cada atleta custa em média R$ 170, sem contar a parte promocional nem o lucro da empresa”.

Fortaleza é a cidade brasileira com mais praticantes em ação simultaneamente, segundo o levantamento divulgado em dezembro de 2024(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Fortaleza é a cidade brasileira com mais praticantes em ação simultaneamente, segundo o levantamento divulgado em dezembro de 2024

Segundo ele, uma prova de grande porte, como a 21K Terra da Luz, demanda, no mínimo, dez meses de planejamento. “Vai desde a elaboração do projeto à revisão dos percursos, captação de recursos, liberações públicas e montagem do kit do atleta”, ressalta.

Além de garantir o suporte dos corredores com o material de apoio e premiação, os organizadores devem lidar com a parte burocrática da realização das corridas. Para organizar uma corrida de rua no Ceará é necessária autorização da Federação Cearense de Atletismo (FCAt) — por meio da chamada Permit —, que pode chegar até R$ 10 mil de taxas, dependendo do tamanho do evento.

Além disso, existe o investimento feito com a equipe de operadores de trânsito, que conduzem o percurso da corrida e manejam o fluxo do tráfego. Há ainda as taxas de publicidade cobradas pela Prefeitura. “É um setor que movimenta muita gente e muito dinheiro”, enfatiza Fernando Elpídio.

21k Terra da Luz fortalece relação esporte, cultura e promoção turística em Fortaleza(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação 21k Terra da Luz fortalece relação esporte, cultura e promoção turística em Fortaleza

Ricardo Ramalho, diretor da BRB Marketing Esportivo, aponta: “Geramos, no mínimo, 200 empregos diretos e envolvemos cerca de 20 empresas. E o principal: vendemos saúde. Esse é o maior legado das corridas”.

“É necessário planejamento conjunto. Precisamos de locais adequados para as provas, menos burocracia para liberação e um calendário mais organizado. Temos potencial para atrair atletas de todo o país”, afirma Ricardo.

Atenta às necessidades da modalidade, a FCAt se reuniu com as empresas organizadoras de corridas a fim de traçar estratégias para melhorar a modalidade. A Federação analisa a criação de um ranking estadual de atletas e corridas de rua. Com o objetivo de valorizar e incentivar os atletas, a medida prevê a premiação dos dez melhores corredores em diferentes distâncias nas categorias feminino e masculino.



Antes da criação do ranking, entretanto, é preciso oficializar os percursos das corridas. Assim, cada prova deverá passar por aferição técnica feita por árbitros da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), garantindo a padronização e a validade dos resultados.

Entre metas de performance, competições fora do Estado e disputas por pódio, a corrida de rua em Fortaleza ganha contornos de um setor em plena transformação. A adesão crescente de atletas e o fortalecimento das assessorias e organizadoras expõe uma prática que movimenta economia, estrutura e políticas públicas na Capital.

Mais do que uma tendência esportiva, a corrida mobiliza profissionais de diferentes áreas, exige articulação entre instituições e impõe novos desafios à cidade, desde a ocupação dos espaços públicos à valorização dos atletas.

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