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Como me tornei romeira em Canudos
Reportagem Seriada

Como me tornei romeira em Canudos

No terceiro episódio, narro a viagem de Fortaleza-Quixeramobim-Canudos para participar da 35ª romaria de Canudos. Nela, a memória de Antônio Conselheiro e sua bela e trágica história estão no centro das atividades. Em outubro de 2022, "Belo Monte: inspiração para reconstruir a nossa sociedade" foi o tema do encontro.
Episódio 3

Como me tornei romeira em Canudos

No terceiro episódio, narro a viagem de Fortaleza-Quixeramobim-Canudos para participar da 35ª romaria de Canudos. Nela, a memória de Antônio Conselheiro e sua bela e trágica história estão no centro das atividades. Em outubro de 2022, "Belo Monte: inspiração para reconstruir a nossa sociedade" foi o tema do encontro.
Episódio 3
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Quando decidi viajar até o sertão da Bahia entre os dias 6 e 10 de outubro para a 35ª romaria de Canudos de 2022, confesso que não parava de pensar na visão que guardo de Juazeiro do Norte, nos meses que morei por lá em meados da década de 1980.

Para começar, religiosamente, no dia 20 de cada mês era a coisa mais normal do mundo encontrar romeiros pela cidade. Marrom se transformava na cor das ruas vestindo homens, mulheres, crianças. Em 20 de março de 1934 o Padre Cícero morreu, transformou-se no Santo do Povo propriamente dito e a data, motivo de peregrinação à cidade do “Padim”.

Romeiros de Juazeiro, durante festa da Nossa Senhora das Dores(Foto: O POVO/Datadoc)
Foto: O POVO/Datadoc Romeiros de Juazeiro, durante festa da Nossa Senhora das Dores

O dia 20, porém, nem de longe se assemelhava à romaria das Candeias, que conheci dias depois da minha chegada ao Cariri. De repente, vi a cidade dobrar de tamanho. Caminhões paus-de-arara apinhavam Juazeiro. Gente, aos borbotões, chegava e saía sem parar durante três luas.

A cidade abarrotada parecia ter um só rosto, tal qual as miniaturas do padre Cícero enfileiradas nas banquinhas do intenso comércio romeiro. Ou os romeiros foram dissolvendo à medida que o tempo passou a borrar as minhas lembranças.

 

 

 

Nos passos do Conselheiro e o banho no São Francisco 

Fiz o trajeto de mais de 1 mil km – de Fortaleza-Quixeramobim-Canudos – num ônibus com ar condicionado. O grupo de romeiros que partiu de Quixeramobim na noite da quinta-feira, 6 de outubro de 2022, era formado por uma maioria de professores, produtores culturais, historiadores e militantes da terra onde nascera Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), o Antônio Conselheiro, líder do arraial de Canudos, rebatizado por ele de Belo Monte, palco da Guerra de Canudos. Havia crianças no grupo. O romeiro mais novo era o Zito, de 4 anos.

Adormeci no Ceará.

Dia 7 de outubro, tomei café em Cabrobró, no interior de Pernambuco e a primeira parada da viagem foi em Abaré, sertão baiano às margens do rio São Francisco. Na verdade, o Velho Chico, como é conhecido o rio, margeia as duas cidades como um longo mar de calmas ondas que serpenteia vários estados do Nordeste e do Centro Oeste brasileiros.

O banho no São Francisco pelo lado da Bahia é simbólico.

Rio São Francisco na margem da cidade baiana de Abaré (Foto: @Avelino)
Foto: @Avelino Rio São Francisco na margem da cidade baiana de Abaré

Em 1875, corria de boca em boca pelo sertão baiano o boato de que Antônio Conselheiro, na época chamado de “Bom Jesus”, “Divino Antônio”, “Bom Jesus Conselheiro” e “Santo Antônio Conselheiro” havia praticado o crime de matricídio ou de ter assassinado a esposa infiel, ou as duas, pelas bandas do Ceará e, por isso, era um foragido na Bahia, pagando penitência, construindo igrejas e fazendo caridade.

O que seria mera suspeição ganhou ares de verdade noticiada em vários jornais das redondezas, despertando a polícia da Vila de Itapicuru, interior da Bahia, que decidiu prender o “Messias do Sertão” e embarcá-lo no navio nacional “Pernambuco”, no porto baiano, para Fortaleza, onde chegou em 7 julho na província, e seguiu para Quixeramobim, acompanhado de dois guardas policiais.

No documento encaminhado à justiça do Ceará, o responsável pela prisão de Antônio, o chefe de Polícia João Bernardo de Magalhães faz um pedido peculiar à Justiça cearense, segundo notou o historiador José Calasans.

Bernardo de Magalhães argumenta que mesmo no caso de Antônio Vicente não haver cometido nenhum crime, que fique sob as vistas das autoridades locais e o impeçam de retornar à Bahia: “para onde sua volta trará certamente resultados desagradáveis pela exaltação em que ficaram os espíritos dos fanáticos com a prisão do seu ídolo”, atestou.

O plano não deu certo. Antônio Vicente Mendes Maciel foi julgado, teve confirmada sua inocência e foi posto em liberdade pelo juiz de Quixeramobim, depois de analisar a evidência dos fatos. A mãe de Antônio morrera quando ele tinha 4 anos de idade e a ex-esposa continuava viva.

O peregrino partiu de Quixeramobim de volta para o sertão baiano. E em algum momento da travessia entre Pernambuco e Bahia tomou um banho no rio São Francisco. Já é outro quando retorna a Itapicuru. Apenas Antônio Conselheiro, o futuro líder de Belo Monte.

Fachada da igreja do Senhor do Bonfim, como cruzeiro, em Chorrochó, na Bahia, primeira igreja construída por Antônio Conselheiro (Foto: @Avelino)
Foto: @Avelino Fachada da igreja do Senhor do Bonfim, como cruzeiro, em Chorrochó, na Bahia, primeira igreja construída por Antônio Conselheiro

A segunda parada na manhã da sexta-feira acontece em Chorrochó. Além do almoço, famoso na região por servir carne de bode assada na brasa, o lugarejo de sol inclemente, tem marco mais histórico. Em 1877, Antônio Conselheiro começou a erguer no povoado uma das primeiras igrejas que construiu ou reformou durante suas andanças de 20 anos pelo interior de Sergipe e da Bahia.

Na época, Chorrochó era um lugarejo com algumas centenas de habitantes, de acordo com os historiadores. Quem recebe o grupo de romeiros de Quixeramobim é a moradora da cidade Janicleide Ribeiro, anfitriã e, ao mesmo tempo, guardiã da memória.

A igrejinha do Senhor do Bonfim foi inaugurada em 1885, construída com pedra e cal num estilo barroco novecentista do sertão. Janicleide mostra as pedras da calçada aos visitantes para se ter a ideia exata do que escondem as paredes pintadas da igreja. A estrutura da capela está intacta. O teto, porém, passou por reforma porque ameaçava desabar. O móvel de madeira no altar resiste à época do Conselheiro.

Interior da Igreja do Senhor do Bonfim construída por Antônio Conselheiro em 1877 mantém estrutura interna original, incluindo a madeira do altar e a imagem do Senhor do Bonfim(Foto: Regina Ribeiro)
Foto: Regina Ribeiro Interior da Igreja do Senhor do Bonfim construída por Antônio Conselheiro em 1877 mantém estrutura interna original, incluindo a madeira do altar e a imagem do Senhor do Bonfim

A imagem do Senhor do Bonfim, Antônio mandou buscar em Portugal, transformada hoje em relíquia. Além da igreja, o peregrino construiu também o cruzeiro da entrada, e o cemitério que está nos fundos da capela.

De acordo com o pesquisador baiano Jadilson Pimentel dos Santos, no artigo “A arquitetura cemiterial do beato Antônio Conselheiro em Chorrochó”, a cidade guarda a única obra completa do peregrino: “Em Chorrochó temos um conjunto arquitetônico que se completa: a igreja, o cruzeiro e o cemitério. É o único exemplar que ainda se mantém íntegro, pois os conjuntos de outras cidades encontram-se reduzidos; apenas igreja, ou apenas cemitério”, escreve.

As outras cidades das quais fala Jadilson Pimentel, que pesquisou a arte sacra concebida por Conselheiro, escorrem pelo sertão baiano em lugares como Alagoinhas, Mucambo, Monte Santo, Jeremoabo, Cumbe (hoje, Euclides da Cunha), e a lista segue. Em Crisápolis, Sergipe, Conselheiro deixou uma capela. A cidade se chama atualmente Cristinápolis.

A promessa de construir 25 igrejas e cemitérios, disse o historiador João Brígido, foi feita ainda quando Antônio peregrinava pelo Ceará.

Após viver por cerca de 27 anos em Quixeramobim, o rapaz trabalhou em Tamboril como caixeiro e professor; depois, foi advogado dos pobres (rábula) no fórum de Ipu. Já separado da mulher, morou em Santa Quitéria, onde teve um caso rápido com a artesã Joana Imaginária. Do relacionamento nasceu Aprígio. Ninguém sabe o que sucedeu à criança. Depois, mudou-se para Assaré. De lá, rumou para a Bahia já vestido como beato, numa túnica de cor azul, cabelos e barba crescidos, com a missão de construir 25 igrejas e cemitérios.

Placa do primeiro centenário de inauguração da Igreja do Senhor do Bonfim (Foto: @Avelino)
Foto: @Avelino Placa do primeiro centenário de inauguração da Igreja do Senhor do Bonfim

Quinze anos mais tarde, começam a chegar as primeiras notícias da sua peregrinação por Sergipe e Bahia. O que chamava a atenção, porém, não eram as igrejas, tampouco os cemitérios, mas a quantidade de gente que passava a seguir o arquiteto das capelas. Além disso, despertava interesse as contendas que envolviam sua atuação como beato e, claro, as discórdias que sua pregação aos sertanejos fermentava entre os fazendeiros da época.

Até agora nenhum dos pesquisadores de Canudos e de Conselheiro confirmou se ele conseguiu ou não cumprir a promessa que fez. Pelas contas do historiador José Calasans, na obra “Cartografia de Canudos”, considerada a mais completa investigação realizada sobre a dupla Canudos e Conselheiro, Antônio conseguiu edificar 21 capelas e cemitérios. Isso porque em alguns lugares como em Itapicuru, por exemplo, ele construiu apenas o cemitério.

Em Itapicuru de Cima, no entanto, fez nascer uma igreja e decidiu estabelecer moradia na região, ergueu um galpão para receber romeiros e mandou cavar um tanque para abastecer água aos moradores. Chamou o lugar de Bom Jesus. Deixou ali gravada a data de 1892.


 

O almoço, enfim, ficou pronto. Declinei o bode. O calor é intenso. Os raios do sol parecem penetrar em todo o corpo de uma só vez como se quisesse levá-lo a combustão. Mesmo para uma cearense, que já morou em Teresina, o calor do sertão baiano é inesquecível.

historiador Neto Camorim conhece bem o lugar. Esteve lá a primeira vez em 2007 acompanhando a peça “Os Sertões”, do dramaturgo Zé Celso Martinez, que seria encenada em Canudos, após temporada em Quixeramobim. Lembrou que Zé Celso colocou Chorrochó entre as músicas do espetáculo e a elevou à Capital do Fim do Mundo.

 

 

Experiência em Belo Monte inspira política e reúne credos 

 

Em Canudos, me hospedei num pequeno hotel, no centro da cidade, cercado por restaurantes e bares. À noite, uma batalha de música sertaneja tomava conta das calçadas com mesas e cadeiras coloridas enfileiradas que, aos poucos, ficava cheia de gente até alta madrugada.

Antes de disputar uma das mesas, pedir uma pizza e me empanturrar de Jorge Mateus e João Neto e Frederico, fui a um dos pontos altos da romaria de Canudos: o Ato Inter-religioso que reúne todos os credos da cidade em torno da memória de Antônio Conselheiro. O auditório do Memorial que leva o nome do beato cearense ficou lotado, gente em pé nas laterais do salão assistiam ao encontro incomum nos dias de hoje no Brasil.

No culto inter-religioso representante das igrejas católica e evangélica, uma pessoa do candomblé e dos povos indígenas homenageiam Canudos e Antônio Conselheiro(Foto: Canudos TV/João Araújo/Lequinho Oliveira)
Foto: Canudos TV/João Araújo/Lequinho Oliveira No culto inter-religioso representante das igrejas católica e evangélica, uma pessoa do candomblé e dos povos indígenas homenageiam Canudos e Antônio Conselheiro

Um padre, uma pessoa do candomblé, um indígena, um representante de uma igreja evangélica, lado a lado, falavam da inspiração de Conselheiro. Desde que a romaria de Canudos foi criada, em 1987, Antônio Conselheiro passou a fazer parte dela e tornou-se o centro das conversas. Unânimes condenaram a intolerância religiosa, racial e política que avoluma no País. Todos repetiram a necessidade de “reconstrução da sociedade brasileira”.

“A pessoa humana é mais do que uma crença herdada. A romaria nos projeta para a realidade que vivemos. Belo Monte tem elementos que valorizavam os saberes dos outros, é uma experiência que não tem limites”, afirmou o padre Thiago Müller, durante o ato. A sacerdotisa Antonieta de Oxum lembrou que Conselheiro inspira a luta pelos direitos à pluralidade cultural e religiosa.

Embora os nomes dos políticos não figurassem em nenhuma das falas, a política nacional permeou toda a romaria. O próprio ato inter-religioso nasceu de uma postura política. Foi criado pelo pastor Djalma Torres, morto há dois anos.

Djalma lutou contra a Ditadura Militar no Brasil a partir de 1964, acolhendo pessoas envolvidas com o movimento pela volta da democracia no País. Em 2012, chegou a ser condecorado com o Prêmio Direitos Humanos da Secretária Nacional de Direitos Humanos, na categoria Liberdade Religiosa.

O teatrólogo e ator baiano, Fabrício Torres, filho de Djalma Torres, afirma que a instrumentalização da religião no atual momento brasileiro é uma “perversão”, porque do contexto político se exclui a “verdadeira experiência da fé, que é a conexão com o sagrado, com o divino”. Para ele, é grave o que está acontecendo com o segmento religioso no Brasil, com igrejas construídas apenas com base nas “dimensões mercadológicas”.

À noite, a temperatura baixa em Canudos. A madruga nem de longe lembra a terra onde cada pessoa tem um sol particular. Em julho, segundo os moradores, uma onda fria faz os termômetros marcarem 17°. Acordo de manhãzinha para passear pela cidade quase vazia. A Canudos onde eu estou não é a Canudos de Conselheiro. Aquela foi bombardeada e destruída, em 1897.

Uma segunda Canudos começou a ser povoada sobre as ruínas de Belo Monte pelos sobreviventes da guerra entre 1909-1910. Voltaram mudos. Apenas na década de 1950 começaram a contar o horror das campanhas militares para Odorico Tavares e José Calasans, ambos pesquisadores que se voltaram para a narrativa dos vencidos que restaram do conflito.

O povoado, porém, é destruído pela segunda vez. Ficou submerso pelas águas do açude Cocorobó, que Getúlio Vargas planejou construir no local, mas apenas em 1968, a invasão das águas expulsou os moradores para um lugar 20 km dali. A terceira Canudos é criada em 1985, fincada no Vale do Vaza Barris. E nesta estou hospedada.

 

 

Parque de Canudos, o palco da guerra 

 

É sábado. O vento é frio. Quem fica em Canudos apenas nesse horário, não imagina que horas mais tarde a cidade dispute o título de Capital do Inferno, como brincou o pesquisador Lemuel Rodrigues, professor da UFRN, um dos palestrantes convidados para a romaria. A visita ao Parque Nacional de Canudos está marcada para 7h, mas sai próximo das 9hs do Memorial Antônio Conselheiro com o sol já tinindo.

Entrada do Parque Estadual de Canudos (Foto: Regina Ribeiro )
Foto: Regina Ribeiro Entrada do Parque Estadual de Canudos

O parque, criado pela Universidade Estadual da Bahia em 1986 reúne obras e intervenções artísticas no cenário onde aconteceram, principalmente, as batalhas finais da Guerra de Canudos.

Passados 125 anos ainda é possível perceber as dificuldades quase sobre-humanas do conflito. No mês de outubro, momento em que se deu o desfecho da guerra, a paisagem da caatinga assume soberana o cinza a perder de vista. O terreno é pedregoso e acidentado. Tudo é seco em volta. O tempo fez o trabalho de erosão em alguns trechos do cenário. Hoje como em 1897, o Sol é um dragão lançando labaredas de fogo pela boca.

A visita é longa. Cansativa. Pesada. O número de pessoas mortas durante os quatro confrontos da guerra, e os degolamentos dos rendidos, ainda é uma conta em aberto. A tarefa sempre coube aos historiadores e pesquisadores que se empenharam em trazer à tona a memória que o País se empenhou em tentar apagar.

Sabe-se de certo que a guerra causou milhares de mortes. Alguns arriscam 25 mil: 20 mil canudenses, 5 mil militares. Uma mortandade. Mesmo que tenha sido metade disso.

“O local é o único cenário de guerra estudado no Brasil”, informa o historiador João Batista de Lima, pesquisador de Canudos, mestrando em Crítica Cultural pela Uneb. Ele guia o grupo de romeiros memória adentro no palco do massacre. Conhece o território como a palma da mão.

Rosto de mulher presa durante a guerra de 1897 abre a intervenção Os Memorialistas, no Parque Estadual de Canudos(Foto: Regina Ribeiron)
Foto: Regina Ribeiron Rosto de mulher presa durante a guerra de 1897 abre a intervenção Os Memorialistas, no Parque Estadual de Canudos

A geografia do parque é marcada por intervenções artísticas que funcionam como motes para se reviver Belo Monte a céu aberto. Numa espécie de teatro, o narrador conta os episódios contracenando com o passado trágico de Canudos, enquanto a plateia de romeiros se transforma em participantes da guerra interagindo com o espaço.

1º Ato. Os Memorialistas. A imagem de uma mulher negra, presa durante a guerra, nos últimos dias do conflito, entra em cena num retrato que nasce do chão batido de terra quente. Anônima. Abaixo do retrato, a frase de estadista francês Georges Clemenceau: “A guerra é uma coisa demasiada grave para ser confiada aos militares”.

O que se seguem são outros retratos de cerca de três metros de altura por dois metros de comprimentos com imagens de militares e outros profissionais que escreveram sobre Canudos durante o conflito e depois dele: o escritor Euclides da Cunha, o jornalista Manuel Benício, o farmacêutico Lélis Piedade, baiano, que socorreu inúmeras mulheres e crianças após a guerra, quando foram levadas prisioneiras para as localidades de Monte Santo, Queimadas, Alagoinhas, Salvador. Muitas foram estupradas. Várias vagaram pelas ruas de algumas cidades.

Aliás, às mulheres de Canudos coube a pior parte da guerra, além da violência e da morte, após o conflito vieram a prisão, o abandono, a pobreza extrema. Não à toa, foram as primeiras, segundo os historiadores, a retornarem ao Belo Monte para reerguer suas casas.

Cenário de Os Memorialistas, no Parque Estadual de Canudos(Foto: @Avelino )
Foto: @Avelino Cenário de Os Memorialistas, no Parque Estadual de Canudos

O cenário do Parque de Canudos foi concebido pelo documentarista e fotógrafo baiano Claude Santos, que se tornou referência como pesquisador iconográfico de Canudos. Morreu, aos 63 anos, em 2016. Claude foi o responsável por juntar e expor no parque alguns dos principais registros fotográficos da guerra e dos sobreviventes da tragédia captados por fotógrafos como Pierre Verger, que esteve em Canudos em 1946 e fotografou remanescentes do conflito.

2º Ato. Chapada dos Equívocos. Os desenhos do médico e pintor baiano Tripoli Gaudenzi compõem o cenário que retrata o início da guerra contra Canudos, o sermão de Antônio Conselheiro, a procissão dos canudenses às vésperas das batalhas. Junto às cenas que surgem do traço de Gaudenzi, João Batista desfia o rosário de mentiras que alcançaram Antônio Conselheiro: além de herege e assassino, o estopim da guerra, em 1896, deu-se em torno da madeira que o beato comprou e pagou em Juazeiro da Bahia para cobrir uma capela em Belo Monte.

A encomenda não chegou, o que motivou a ida de emissários de Conselheiro a Juazeiro verificar a razão da demora. Porém, o boato de invasão da cidade pelos “fanáticos” de Canudos chegou primeiro. Rapidamente, as forças policiais juazeirenses solicitam apoio ao governo da Bahia para conter Conselheiro e Canudos. O primeiro confronto aconteceu em Uauá, quando a morte de quase todos os soldados, obriga a campanha militar a recuar. Era o começo da tragédia. O fim de Belo Monte.

Chapada dos Equívocos com obras do pintor baiano Tripoli Gaudenzi, no Parque Estadual de Canudos(Foto: Regina Ribeiro )
Foto: Regina Ribeiro Chapada dos Equívocos com obras do pintor baiano Tripoli Gaudenzi, no Parque Estadual de Canudos

A madeira comprada por Antônio Conselheiro só chegou a Canudos quase um século depois e hoje faz parte do acervo do Instituto Popular da Memória de Canudos, junto com o Cruzeiro da Igreja de Bom Jesus, edificada por Conselheiro para o arraial. O IPMC foi criado, em 1993, durante as comemorações do primeiro centenário de construção de Belo Monte.

3º Ato. Os sobreviventes. Eles aparecem por todos os lados em um dos cenários mais importantes do parque. Ali se concentrava a retaguarda da guerra. Recebera as duas colunas militares que haviam partido uma de Monte Santo, a outra, de Sergipe rumo a Canudos com a missão de encerrar a refrega de uma vez por todas.

No local, foram improvisadas duas barracas que faziam as vezes de hospitais para assistir aos feridos dos confrontos. Militares. O lugar ficou famoso também, porque quando a primeira coluna militar em combate estava prestes a sofrer mais uma derrota, o general Artur Oscar envia pedido de reforço e socorro porque se veem: “quase vencidos pelos bárbaros”.

Retratos dos sobreviventes de Canudos feitos por fotógrafos brasileiros e estrangeiros desde a década de 1940(Foto: DIVULGAÇÃO )
Foto: DIVULGAÇÃO Retratos dos sobreviventes de Canudos feitos por fotógrafos brasileiros e estrangeiros desde a década de 1940

Nessa altura da visita ao parque, o sol turva as imagens em preto e branco dos sobreviventes captadas pelos fotógrafos Pierre Verger, Evandro Teixeira, Antônio Olavo, Claude Santos, Jair Dantas, Audálio Dantas a partir da década de 1940. Os retratos fincados no chão parecem ganhar alma. Fixam os visitantes. Homens e mulheres ocupam o terreno íngreme e seco totalmente imersos no clarão de sol. Estão todos mortos, mas a história deles venceu o silenciamento, desafiou o esquecimento. Agora, luta contra o tempo.

4º ato. Alto da Favela. Em 1897, a parte mais alta de Belo Monte funcionava como uma torre de vigia do arraial, rodeada pela planta que dá nome ao morro. Árvore típica da caatinga no vale do Vaza Barris, a favela forneceria alimento e remédio para os canudenses.

Alto da Favela, ponto mais alto do Belo Monte tomado pela última campanha militar, abrindo o cerco e a queda do arraial (Foto: Regina Ribeiro )
Foto: Regina Ribeiro Alto da Favela, ponto mais alto do Belo Monte tomado pela última campanha militar, abrindo o cerco e a queda do arraial

O último avanço da campanha militar sobre o Alto da Favela facilitou o cerco final a Belo Monte desde setembro de 1897, quando a morte se instalou no povoado e libertou todos os seus rostos e cheiros.
O então estudante de Medicina, Manuel Benício, deixou registrado em “O rei dos jagunços”, os pavorosos últimos três dias da guerra. “As roças foram incendiadas, as casas destruídas com os jagunços dentro. Três dias foram gastos no desmoronamento da cidadela”, contou.

Euclides anotou em “Os Sertões” sobre o povoado pouco antes da queda: “O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida”.

Martins Horcadas sentenciou em artigo publicado no “Jornal de Notícias”, da Bahia: “O cérebro do homem não pode, nem a pena tem força para narrar os horrores ali presenciados, nem mesmo sei se me exprimo bem, dizendo horror!”

Do Alto da Favela é possível ver uma pequena mostra das ruínas da antiga Canudos que repousa submersa no açude Cocorobó. Quanto mais as águas do açude baixam, mais Belo Monte se eleva.
Era meio dia quando retornei para o hotel. O sol a pino. Almocei rapidamente e à tarde, uma mesa de debates reunia pesquisadores das universidades estaduais do Rio Grande do Norte, Lemuel Rodrigues; da Bahia, Adriana Fontes, além do memorialista Moisés Varjão.

Enquanto Lemuel acabou de concluir um pós-doutorado com pesquisa que emparelha Canudos, Contestado e Caldeirão elencando semelhanças e distanciamentos entre os movimentos religiosos e sociais, Adriana investiga, em nova pesquisa, as crenças dos canudenses que davam sentido à fé popular e produziam o cruzamento entre os discursos religioso e medicinal na vida cotidiana do povoado de Conselheiro, a partir da obra de José Aras.

Há 35 outubros, novos estudos sobre o beato e Belo Monte desfilam pela romaria de Canudos. Parte deles atravessa a Bahia rumo a Quixeramobim onde acontece, há mais de 10 anos, o Conselheiro Vivo, sempre em março, mês de nascimento de Antônio Vicente.

 

 

A travessia Quixeramobim-Canudos-Quixeramobim 

 

Foi essa travessia que levou o professor Ailton Brasil a organizar os romeiros de Quixeramobim até Canudos. Em 2022, levou o sexto e maior grupo de cearenses para a romaria. Brasil me contou em Salgueiro, Pernambuco, que conheceu Antônio Conselheiro bem jovem, quando militava nas Comunidades Eclesiais de Base (Cebs).

Na verdade, a militância política entrou na vida de Ailton na adolescência, quando o pai, agricultor, o escolhera, entre os irmãos, para assistir às reuniões do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, aos sábados pela manhã, e reportar a ele as decisões do colegiado. Em 1993, porém, durante a Romaria da Terra, que comemorava o primeiro centenário de Belo Monte, Antônio Conselheiro se impôs.

Ailton Brasil, organizador da viagem que leva romeiros de Quixeramobim a Canudos desde 2016 (Foto: Avelino)
Foto: Avelino Ailton Brasil, organizador da viagem que leva romeiros de Quixeramobim a Canudos desde 2016

“Percebi que era preciso conhecer mais essa história do Conselheiro”, concluiu, após sucessivos eventos em Quixeramobim que realçavam a figura do personagem, entre elas a peça “O Sertões”, de Zé Celso Martinez, encenada em 2007 no município. Também, decidiu ir a Canudos, mas somente após a leitura de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A leitura ficou pelo caminho, mas as viagens seguiram seu curso.

No intercâmbio Quixeramobim-Canudos-Quixeramobim, o militante dos movimentos populares como a Pastoral da Terra, encontrou em Conselheiro a inspiração que precisava. “Me tornei um conselheirista e vejo como a história de Antônio Conselheiro é atual, ao observar os direitos pelos quais ele lutava: terra, saúde, educação”, compara Ailton Brasil, professor em uma escola de campo em Quixeramobim. “Conselheiro é fundamental como referência para nossa luta”, afirma. Júlia, a filha mais nova de Brasil, tem seis anos e está na quarta romaria a Canudos. “Essa história tem que se perpetuar”.

A tarde cai em Canudos. O fluxo de energia elétrica foi interrompido seis vezes entre 14h e 17h. Ninguém se mexe no auditório lotado. Os palestrantes seguem a fala normalmente a cada interrupção. À noite, a romaria tem desfile de estudantes, feira e mais palestras ao ar livre, na sede do IPMC, quando a romaria atinge seu tom mais político.

De acordo com o cientista político Rubens Siqueira a república brasileira viveu dois graves momentos e está em curso o terceiro. “O primeiro deles foi Canudos; o segundo, o golpe de 1964 que implantou uma ditadura no Brasil, e o terceiro, estamos vivendo no atual momento político”, pontua. Entre os três fatos históricos da política nacional, a elite brasileira figura entre eles.

“A elite não aceitou o fim da escravidão quando atacou Canudos. Hoje vemos a conexão das elites brasileiras com as elites do atraso em níveis mundiais”, argumenta Siqueira: “Canudos é uma referência. Aqui começou o Brasil, aqui ele se salva”, concluiu ao referir-se à experiência coletiva de Belo Monte.

Rubens Siqueira, Marina Braga e João Ferreira Damião em debate na noite de sábado, do Instituto Popular Memorial de Canudos (Foto: JOÃO BATISTA)
Foto: JOÃO BATISTA Rubens Siqueira, Marina Braga e João Ferreira Damião em debate na noite de sábado, do Instituto Popular Memorial de Canudos

O pesquisador João Ferreira Damião ressalta que o episódio de Canudos é “trágico, mas é também uma bela história”, e diz que Conselheiro “foi um intelectual além do seu tempo” quando instalou em Belo Monte uma comunidade baseada na “democracia, fraternidade, fé, solidariedade, depois de peregrinar por 20 anos no sertão construindo igrejas, cemitérios, aguadas e aconselhando desamparados”.

Pra mim, a romaria vai chegando ao fim. Nesses dias Belo Monte e Conselheiro vão se transformando aos poucos. Da Canaã do sertão baiano com seus “rios de leite e barrancas de cuscuz”, como lembra o professor Damião, surge um lugar povoado de gente comum, imperfeita, mas que viveu uma experiência única e, por isso mesmo, resiste na memória do País.

Na cidade erguida, em mutirão, por Conselheiro, havia casas de alvenaria e a troia de barro que sinalizava uma sociedade de classes. O comércio dos irmãos Vilanova confirma os ricos e os pobres de Canudos. Havia ainda a poeira, como era chamada a cadeia em Belo Monte.

Estudantes da cidade de Canudos desfilam pela cidade. Antônio Conselheiro é o personagem central da romaria (Foto: Canudos TV/João Araújo/Lequinho Oliveira)
Foto: Canudos TV/João Araújo/Lequinho Oliveira Estudantes da cidade de Canudos desfilam pela cidade. Antônio Conselheiro é o personagem central da romaria

“Canudos não era um Eldorado. Algumas pessoas chegavam de noite e iam embora pela manhã”, afirma o memorialista Moisés Varjão, descendente dos moradores de Canudos por parte de pai e mãe. O que é tido como certo é que Conselheiro mantinha o equilíbrio entre as diferenças do povo em Canudos, como assevera o professor riograndense Lemuel Rodrigues.

Amanheço o dia de domingo na Bahia, anoiteço no Ceará.

 

 

Ouça a trilha sonora da Saga de Canudos

 

 

 

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