Na Terra do Humor, a arte do riso pode ser celebrada a qualquer momento, mesmo sem combinação prévia. Não à toa, foi assim que a população do Ceará resolveu vaiar o sol há mais de 80 anos, em 30 de janeiro de 1942. Após três dias de chuvas intensas, o astro rei, meio smilinguido, “deu as caras” em Fortaleza. No coração da Capital, em meio ao vai-vem da Praça do Ferreira, pessoas viram o sol reaparecer entre as nuvens e, sem hora marcada, entoaram “uma grande duma vaia”. Um jornalista do O POVO que passava por ali ouviu quando vozes ecoaram um estridente “Ieeeeeeeeêi!”. Um dos causos mais famosos do Estado foi documentado, inclusive, em edição deste jornal.
Na mesma praça, um bode, apelidado de Ioiô, foi eleito vereador pela população da Capital no início do século XX. E, como se não bastasse, pessoas se reuniam por ali, debaixo de um cajueiro, para eleger o maior mentiroso do Ceará em celebração ao Dia da Mentira, a cada 1º de abril. As eleições no Cajueiro Botador, referenciado como Cajueiro da Mentira, foram realizadas de 1904 a 1920. Com a reforma da praça em 1920, o pé de caju foi cortado. Em 1991, em sua memória, um novo cajueiro foi plantado no mesmo lugar. De baixo da árvore, há uma placa de bronze que registra essa história. Por lá, anualmente, acontece o Festival de Mentiras desde 2006.
A memória do humor no Estado mora no ímpeto das surpresas, entre o fazer rir e até chorar. Mundo afora, tem cearense fazendo graça ou gente que ancorou seu coração no Ceará para fazer da arte do riso profissão. A identidade “Ceará moleque” se apresenta quase como uma força invisível, um estado de espírito que permeia este território de ponta a ponta.
Aqui, mais precisamente ao pé da serra de Maranguape, nasceu o mestre do humor Chico Anysio (1931-2012), em 12 de abril de 1931. Nesta data, aliás, é comemorado o
Em diversas partes do País, o Estado é referenciado como um solo fértil da comédia, especialmente a partir da metade do século XX. Muito por isso, nesta reportagem especial, o Vida&Arte, reúne 140 nomes daqueles que fazem rir neste território, desde o primeiro humorista brasileiro, Paula Nei (1858-1897), passando pelo mestre Chico Anysio (1931-2012) e por Renato Aragão, o eterno Didi Mocó, até alguns dos expoentes da arte do riso, hoje, no Ceará.
Esta é uma tentativa de mapear a cena do humor cearense, apresentando pessoas que disseminam a comédia por aqui, em diversas expressões: literatura, teatro, audiovisual, música, internet e mais possibilidades. Este “Almanaque do Humor” conta com o apoio do historiador e humorista Jader Soares. Conhecido pelo personagem Zebrinha, ele é diretor do Teatro Chico Anysio e do Museu do Humor Cearense, localizados no bairro fortalezense Benfica, além de presidente da Associação dos Humoristas Cearenses (Asso-H).
O pesquisador gentilmente concedeu um levantamento de nomes, de materiais de suas pesquisas, ao V&A. Os dados foram cruzados com informações das mídias sociais dos artistas e do Mapa Cultural do Ceará, plataforma virtual, livre e colaborativa da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult/CE), onde agentes culturais que atuam no Estado direta ou indiretamente podem acessar editais e divulgar projetos e eventos. Artistas no radar do Vida&Arte também foram adicionados à lista. Zhélio, um paraibano de coração ancorado no Ceará, assina as caricaturas das artes das capas. As ilustrações integram projeto pessoal do artista em retratar humoristas cearenses.
Após a apresentação de Paula Nei, o primeiro humorista brasileiro, o inventário está organizado em ordem alfabética, a partir do nome artístico de cada profissional. Neste episódio, a lista abrange nomes de A a K. No segundo episódio, após os artistas Jader Soares, Ciro Santos, Karla Karenina e Tom Cavalcante repercutirem o humor cearense no mundo contemporâneo, o Almanaque continua com os nomes de L a Z.
Trata-se de um processo de investigação que não se encerra nesta lista. Pelo contrário: deve ser atualizado constantemente. Afinal, no Ceará se “respira” humor o ano inteiro, nos 365 dias do calendário. Para falar da comédia genuinamente cearense, talvez não precise de explicação factual. Na Terra do Humor, o riso é arte todo dia. E “cearense não nasce, estreia”, já dizia o mestre Anysio.
O município cearense de Aracati, conhecido por suas paisagens naturais de dunas e falésias, tem o trunfo de ser a terra natal do primeiro humorista brasileiro. Essa tese é defendida por Jader Soares, autor do livro “Paula Nei: o primeiro humorista brasileiro”; e por Chico Anysio, que assina o texto de apresentação da publicação.
Francisco de Paula Nei — o Paula Nei — nasceu numa terça-feira, no segundo dia de fevereiro, em 1858, na Vila de Aracati, a cerca de 150 quilômetros de Fortaleza. Poeta, jornalista e boêmio, ele foi contemporâneo de Capistrano de Abreu, Olavo Bilac, Aluísio Azevedo e Coelho Neto. Filho do alfaiate Mariano de Melo Nei e da dona de casa Carlota Cavalcanti de Sousa Pinheiro, ele era conhecido por ser uma criança inquieta.
Em Fortaleza, Nei estudou no Ateneu Cearense, no Seminário de Fortaleza e no Liceu Cearense. Conta-se que o menino fazia graça e tinha respostas rápidas para qualquer questionamento. Aos 18 anos, foi morar no Rio de Janeiro, então capital do Reino do Brasil. Estudou Engenharia e Medicina. Desistiu de ambos os cursos. Sua passagem pela Engenheira parece ter durado apenas um dia. Numa aula de cálculo, o professor abarrotou dois quadros com números, letras gregas e operações matemáticas. Ao fim, depois de uma hora, tudo aquilo havia resultado a zero. Ao notar o contraponto, Paula Nei disse: “Quer dizer que o senhor, professor, passou uma hora gastando giz nestes dois quadros, para no final dar em nada… Igual a zero… Sinto muito! Eu desisto”.
Segundo o historiador Jader Soares, ele era tão apaixonado pelo Ceará, que dizia: “Pelo Brasil, sou capaz de morrer; pelo Ceará, sou capaz de matar”. O soneto com os dizeres “Fortaleza, a loira desposada do Sol” é de Paula Nei. Aos 39 anos, o intelectual morreu na capital carioca, em 13 de outubro de 1897. Essa história está documentada no livro “Paula Nei: o primeiro humorista brasileiro”. A publicação pode ser adquirida no Museu do Humor Cearense (avenida da Universidade, 2175 - Benfica), a R$ 35.
Jader considera que, no Ceará, há uma “tríade de precursores do humor”. São eles: Paula Nei, Quintino Cunha (1875-1943) e Leonardo Mota (1891-1948). Paula Nei e Quintino Cunha contavam anedotas, eram conhecidos por fazer graça e inventar histórias.
Paula Nei não chegou a publicar textos contando causos. Quintino Cunha lançou livros, mas com destaque para outros gêneros da literatura. “Nada com piada”, diz Jader. “Outros autores que escreveram livros contando os causos do Quintino, sendo o mais notado o filho dele, Plautus Cunha, que lançou diversos livros contando causos do pai”.
Leonardo Mota, que pesquisava a cultura nordestina, chegou a escrever textos e explorar o cordel. Ele é autor do livro “Cabeças-chatas”, em que cita Paula Nei e Quintino Cunha. Coelho Neto, amigo de Paula Nei, dedica o livro “Fogo Fatuo” ao cearense. Essas são algumas das
Eis uma curiosidade! Em Fortaleza, a rua Leonardo Mota, no bairro Aldeota, cruza a rua
Especial mostra o cenário do humor no Ceará