Em uma das últimas edições do Carnaval de Fortaleza, Vanessa de Assis foi escalada para trabalhar como intérprete de Libras na programação musical do evento. Ela acompanhava as atrações até que, quando se preparava para trabalhar no show seguinte, ouviu que não seria necessária sua participação, pois o artista já tinha seu próprio intérprete na banda.
O artista, no caso, era Berg Menezes, cantor e compositor com quase duas décadas de carreira e que desde 2019 destaca o tema da acessibilidade em seus shows. Em vez de "apenas" aparecer no palco, o intérprete faz parte da banda, planejando as apresentações e acompanhando os ensaios como os demais integrantes.
Para Vanessa, aquilo era uma novidade, pois estava acostumada a ver intérpretes "num cantinho separado" e com um "visual diferente" da banda. Nessa "nova" situação, o intérprete interagia, se movimentava, circulava pelo palco. "Fiquei muito impactada", confessa. Alguns meses depois, foi convidada a acompanhá-lo em uma turnê que passaria por cidades como Quixeramobim, Natal, João Pessoa e Fortaleza.
"O show já estava todo estruturado. Eu entrei com o 'carro em movimento', digamos assim. Ele me mandou as traduções do antigo intérprete e eu mantive essas traduções inicialmente. Hoje, eu faço adaptações, coloco um pouco da Vanessa. Conheci o trabalho dele e entendi como era, de fato, a dinâmica. Eu nunca havia passado por isso. Era sempre ali, no cantinho, usando preto", recorda.
Esse é um dos exemplos nos quais a acessibilidade estética é posta em prática. Como o cinema, com sessões adaptadas para pessoas neurodivergentes, a música atua como área importante para agregar indivíduos à arte.
A Libras, portanto, tem protagonismo no trabalho de Berg Menezes. Segundo Vanessa, porém, é raro encontrar artistas com essa preocupação, visto que, mesmo a presença de intérpretes em eventos públicos sendo exigida por lei, são poucos que a cumprem.
Hoje, é integrante fixa da banda de Berg Menezes. Ela não "repassa" somente as mensagens: a intérprete e cantora participa de todo o processo. Vanessa de Assis começou a estudar Libras em 2013 e é formada em Geografia. Ela também trabalha como intérprete no Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ) e na UFC, além de fazer tradução em eventos.
Ela compartilha as suas observações sobre os ganhos dessa presença: "Tem pessoas que acham que a música não é para os surdos, mas é, sim. Eles gostam, participam e deixam de ir a eventos porque muitas vezes não têm acessibilidade. Às vezes não tem nem uma pessoa para dar informação, quanto mais para fazer um show para eles".
A intérprete afirma que recebe muitas mensagens de pessoas surdas questionando, por exemplo, informações básicas sobre shows que acontecerão em Fortaleza, como se terá área de acessibilidade. "Se isso (a divulgação de informações) virar uma constante, eles vão ocupar esses lugares. É direito deles. Sendo surdo ou não, temos que estar lá para que se sintam seguros e tenham vontade de ir a qualquer lugar em qualquer hora", destaca.
Quando se fala em consumo de cultura e de arte, um público importante é o formado por pessoas neurodivergentes. A cada mês, algumas das redes de cinemas de Fortaleza promovem sessões adaptadas para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras necessidades sensoriais.
Nessas programações, movimentos são feitos para o ambiente ficar mais confortável aos espectadores. O volume do áudio dos filmes, por exemplo, é mais baixo, para evitar desconforto ou sobrecarga sensorial. As luzes são parcialmente acesas, para diminuir a ansiedade e criar sensação de segurança.
Além disso, os espectadores podem se levantar, se movimentar pela sala e fazer barulho sem restrições e não são exibidos trailers comerciais.
A técnica de enfermagem Aline Viana, 35, descobriu as sessões adaptadas em redes sociais: "Lembro que estava no trabalho e, quando saí, corri para garantir o ingresso do meu filho, que é autista".
"Ele amou e eu, como mãe, amei ainda mais. Ver meu filho ali, mesmo com sua sensibilidade auditiva, assistindo ao filme… Foi linda e emocionante a iniciativa do projeto. Um ambiente livre, respeitando o limite das crianças", acrescenta.
Aline pontua a luta diária por uma maior acessibilidade à arte e para que "nenhuma criança seja excluída por suas limitações". "É um trabalho de formiguinha e ninguém muda o mundo sozinho, mas que bom que já existe muita gente engajada nessa luta", afirma.
De modo geral, os filmes são obras direcionados ao público infantil e familiar. Em novembro de 2022, foi aprovado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL 133/2019), que assegura o acesso com TEA a salas de cinema e a realização obrigatória de sessões adaptadas.
Apesar da proposta tornar obrigatório o oferecimento de 2% das sessões em formato adaptado, a medida ainda não virou lei oficializada. Isso não impede, entretanto, que redes promovam a programação. No dia 19, cinemas do North Shopping Jóquei e RioMar realizaram sessão adaptada do filme infantil "Robô Selvagem".
Mesmo sem diagnóstico de TEA, a estudante de psicologia Iohana Maia, 23, compareceu à sessão. "Falamos muito sobre acessibilidade no contexto de mobilidade física, mas pouco se pensa na adaptação ao contexto cultural".
A fisioterapeuta Erika Marques assistiu à sessão com sua família e destaca a importância de "mais empatia da sociedade" com quem tem essa demanda: "Acho super válido. Sou fisioterapeuta pediátrica e tenho muitos pacientes com essa demanda de adaptação para ser mais incluído na sociedade. Gostei de ter essa experiência para conhecer e falar a respeito para meus pacientes".
>>Ponto de vista
Por Carlos Viana*
Historicamente nós, pessoas com deficiência, sempre tivemos muita dificuldade para ter acesso à cultura. Quando criança, em visitas a museus, a palavra de ordem era "não pode tocar". E eu, que sou cego, achava aquelas viagens entediantes.
Atualmente, diversos espaços culturais começam a implementar políticas para garantir acessibilidade de suas obras e espetáculos para pessoas com deficiência. No entanto, mesmo diante de inúmeros avanços, é inegável que muito ainda precisa ser feito.
Audiodescrição, piso tátil, textos em braile e em versão ampliada, janela ou intérprete de Libras são alguns exemplos de recursos que podem ser implementados. No entanto, a acessibilidade é bem mais que isso.
É necessário preparar a equipe, sobretudo de seguranças e recepcionistas, é preciso já pensar na obra de forma acessível. E, sobretudo, é fundamental que pessoas com deficiência sejam contratadas por esses equipamentos para que participem desses projetos.
Eu, enquanto pessoa com deficiência, gostaria de ter mais acesso a equipamentos culturais. No entanto, a falta de acessibilidade, a falta de preparo das equipes e o horário, muitas vezes tardios dos eventos, acaba fazendo com que eu frequente muito menos esses espaços.
Dia desses, por exemplo, eu e um casal de amigos fomos a uma apresentação musical. Na saída, o celular de meu amigo quase foi roubado. Por sorte, um segurança viu e conseguiu interromper o roubo.
Mesmo assim, tivemos muita dificuldade para que o segurança nos colocasse dentro do carro de aplicativo para irmos para casa. É nesse sentido que falo da necessidade das equipes passarem por formações constantes para estarem preparadas para nos receber.
Outro ponto que precisa ser observado é a necessidade de se não todas, mas pelo menos a maioria das sessões estarem com acessibilidade, pois é comum que, em alguns locais, os gestores disponibilizem um horário "X", prejudicando quem não pode ir naquele momento.
Carlos Viana é jornalista do O POVO
>>Ponto de vista
Por Lucas Vieira*
Desde jovem, fui um apaixonado pela Sétima Arte. Gostava muito de consumir filmes, séries e desenhos animados. Eu tinha 8 anos quando tive o primeiro contato com uma sala de cinema: aquela experiência mudou completamente a minha vida. Foi como se eu tivesse finalmente preenchido uma parte que estava faltando na minha vida. Foi quase um encontro simbiótico, em que eu naquele ambiente pude ter sensações que jamais havia passado anteriormente.
Até que aos 12 anos, eu perdi a visão por causas desconhecidas até os dias atuais. Naquele momento, eu achava que nunca mais poderia ter a experiência por completo de assistir a um filme. Foi então que eu entrei na reabilitação em Braille na Escola de Ensino Fundamental Instituto dos Cegos, localizada no bairro Antônio Bezerra. E em um determinado dia, eu fui com os colegas de reabilitação assistir a um filme na biblioteca da escola. Foi dessa forma que conheci a audiodescrição.
No entanto, a realidade foi um tanto mais complexa. Pois não era o suficiente existir o recurso da audiodescrição para que as pessoas com deficiência visual passassem a ser incluídas no contexto das artes audiovisuais. Era necessário que esse recurso se tornasse uma política pública.
Assim, passei muitos anos desde a perda da minha visão. Até que somente em 2023, após muitas lutas para que os filmes viessem com o recurso com audiodescrição e Libras, no caso das pessoas com deficiência auditiva, que as salas passaram a vir com os recursos de acessibilidade para as pessoas com deficiência.
A novidade consistiu em aplicativos em que a pessoa com deficiência visual ou auditiva poderia baixá-los do próprio celular e depois fazer o download dos recursos de acessibilidade para os filmes que essas pessoas iriam assistir.
Eu posso dizer que, de 2023 para os dias atuais, a minha vida mudou da água para o vinho. Primeiro, que eu passei a assistir muito mais filmes, como jamais tinha feito nesses 15 anos que fiquei cego. Segundo, que a minha independência melhorou 100% com essa "novidade".
"É maravilhoso saber que conquistamos um direito que foi muito dolorido para atingi-lo. Mas o que fazer com tudo que nós perdemos no passado?"
Agora, eu sou livre para ir ao cinema quando quero. Se tiver companhia, é claro que ela será sempre bem-vinda. Caso contrário, se eu quiser, posso ir sozinho e só preciso do meu celular e fone de ouvido para apreciar um bom filme… Ou não, né? Risos!
Acho que o grande problema hoje em dia é o que fazer com os anos que nós, pessoas com deficiência, ficamos sem acessibilidade nas artes. É maravilhoso saber que conquistamos um direito que foi muito dolorido para atingi-lo. Mas o que fazer com tudo que nós perdemos no passado? Quantos filmes nós perdemos a oportunidade de assistir por falta de audiodescrição e Libras?
Lucas Vieira é integrante da 33ª turma dos Novos Talentos do O POVO
Série especial aborda a acessibilidade na arte, conceito cada vez mais discutida para envolver pessoas com deficiência em sua totalidade de poéticas