Foi aos 8 anos que Lucas Vieira teve o primeiro contato com uma sala de cinema. A experiência "mudou completamente" a sua vida. Sentiu que havia preenchido uma parte que faltava.
Aos 12 anos, Lucas perdeu a visão "por causas desconhecidas". Pensou nunca mais poder assistir a um filme novamente. Entrou em uma reabilitação em braille e então conheceu o universo da audiodescrição: "Foi uma luz no fim do túnel".
Entretanto, sentia não ser o bastante para pessoas com deficiência visual serem "integradas às artes audiovisuais". "Era necessário que esse recurso se tornasse uma política pública", afirma. Hoje, o estudante de jornalismo consegue assistir a filmes a partir do avanço de recursos de acessibilidade
Ferramentas como legendas, intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e audiodescrição são caminhos para a acessibilidade cultural, que tem tipos como arquitetônica, digital e atitudinal. Ainda assim, são variados os desafios para alcançar a arte plenamente.
Entre falta de infraestrutura, programações com poucos
No Ceará, segundo estado com maior proporção de pessoas com deficiência no Brasil, há avanço nas discussões. A análise é de Thamyle Vieira, mulher cega, coordenadora da Célula de Acessibilidade da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) e consultora em Acessibilidade Cultural.
Ela cita o protagonismo de pessoas com deficiência à frente de políticas públicas: "Há pouco tempo era comum somente pessoas sem deficiência pensando arte e cultura. Quando colocamos nossas percepções a partir dos nossos corpos e das nossas existências, movemos toda essa lógica normativa".
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O avanço se dá também em conceitos. Segundo Thamyle Vieira, há a compreensão atualmente das pessoas com deficiência de suas condições enquanto corpos políticos. Ela não hesita em dizer:
"Nossa deficiência é uma identidade. Isso nos tira daquele lugar de passividade de um corpo percebido socialmente como incompleto, como um corpo que é menos capaz. Ocupando esses espaços conseguimos trazer nossas vivências. Apenas nós, que temos deficiência, podemos falar o que funciona ou não sobre a acessibilidade".
Enquanto coordenadora da Célula de Acessibilidade, Thamyle propõe ações de formação para a rede de equipamentos da Secult e pensa práticas estruturantes para a aplicação da política de acessibilidade nos editais de fomento da pasta. Durante dez anos, trabalhou no setor de Leitura Acessível da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), responsável por impressões em braille e adaptações de materiais.
Para ela, o principal desafio relacionado à acessibilidade ainda é o "capacitismo", ou seja, a percepção de que pessoas com deficiência são menos capazes e precisam "ser restituídos" e "normalizados".
Segundo Thamyle, a acessibilidade na cultura hoje é discutida a partir da dimensão do acesso e não mais da "inclusão", pois essa palavra insinua que as pessoas com deficiência precisam de "permissão das pessoas normativas" para ocupar espaços.
Entre as soluções mais conhecidas de acessibilidade estão a audiodescrição e a interpretação em Libras. Mas, afinal, elas são suficientes? Segundo Thamyle, muitas vezes não, pois partem de um entendimento "muito normativo" de que uma pessoa cega em uma exposição, por exemplo, quer consumir apenas descrições técnicos e detalhadas, como tamanho de uma obra. Na prática, porém, sabe-se que esse não é o desejo principal.
A consultora defende o conceito de "acessibilidade estética" — uma acessibilidade "que envolve o corpo em sua totalidade": "Quando vou em uma exposição, o que mais me interessa não é o tamanho do quadro. Não vou com a minha trena medir o tamanho de uma obra de arte. Quero saber o que aquela obra me provoca e como me afeta".
Há o desejo de consolidar a
"É preciso ter todo um processo de formação com as pessoas que trabalham nos equipamentos culturais e com o campo artístico para provocar essas pessoas a trazerem a acessibilidade como elemento de criação em suas produções desde o início", declara.
A importância da formação é enfatizada por Iana Soares, assessora de Formação do
O objetivo é tornar essa política um fluxo permanente no trabalho dos equipamentos culturais e que não dependa "da vontade pontual" de alguns profissionais: "Entendemos que a acessibilidade cultural é estruturante e faz parte de nossas ações, desde ofertas de espetáculos, shows e ações formativas a vagas de trabalho reservadas a pessoas com deficiência".
"A formação é fundamental para que essa dimensão transversal seja percebida por todas as pessoas que hoje compõem o Instituto Mirante, tanto na própria sede como os trabalhadores nos equipamentos culturais. A formação é essencial no entendimento de que a acessibilidade cultural é um direito e que ela permite que mais pessoas acessem vários outros direitos, como à arte, ao lazer e à cidadania", explica.
Diante da escassez de materiais para explicar história da arte a seus alunos com deficiência, a artista plástica, arte educadora e especialista em acessibilidade cultural Marina Baffini criou a Inclua-me. A empresa paulista desenvolve projetos com adaptações de obras de arte, exposições e materiais educativos.
Entre os produtos da empresa estão dioramas (modo de apresentação artística tridimensional e realista de cenas da vida real para exposição com finalidade de apreciação tátil), textos em braille, adaptações táteis de obras bidimensionais com diferentes relevos e texturas, materiais lúdicos educativos e escrita em pictogramas.
A ideia é ir além dos recursos tradicionais de acessibilidade, promovendo maior imersão ao público e contemplando diferentes deficiências. Acima de tudo, o interesse é proporcionar uma "experiência estética" em sua plenitude.
"Quando uma pessoa visita uma instituição cultural, ela busca experiência estética. Então, se deparar somente com legendas em braille, por exemplo, é muito pouco. O audioguia é muito importante, mas ele traz também esse nível informativo. A pessoa tem a experiência estética quando toca uma peça tátil, uma obra de arte traduzida para entender aquela imagem pelo toque", elucida.
Ela também destaca: "Quando você fica só nesse lugar do texto em braille, por exemplo, você fica muito no lugar da informação e esquece que a arte vai muito além disso. Ela também tem o lado da poética".
Além de recursos de acessibilidade, a especialista reforça a importância de ultrapassar a "barreira atitudinal", pois "na maioria das vezes as pessoas conhecem muito pouco" sobre o assunto e "não têm habilidade" para atender um visitante com deficiência.
Além dos recursos, é fundamental a preparação dos profissionais para prestarem serviços adequados a pessoas com deficiência. No caso de uma pessoa surda, por exemplo, que precise ir ao hospital, o atendimento médico será muito "mais confortável linguisticamente" se feito em Libras.
A análise é de Lyvia Cruz, atriz surda, contadora de história em Libras, tradutora de Libras, professora e Mestra em Estudos da Tradução. Até dezembro, ela ministra no Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS-CE) um curso básico de Libras para funcionários do equipamento cultural.
Na formação, ela aborda a "cultura das pessoas surdas", com informações sobre suas demandas e as melhores práticas para atendê-las. No campo da cultura, cita desafios enquanto uma mãe surda de ir a programações que muitas vezes não têm intérpretes de Libras e, por isso, não consegue interagir com sua filha, além de poucos horários de atividades com acessibilidade, o que não permite a "livre escolha".
"Meu sonho é que exista acessibilidade em todos os horários e em todas as programações. Essa é minha principal dificuldade como mãe surda de uma filha ouvinte: que ela possa estar nos espaços culturais e que tenha intérprete para mim", admite.
Ao falar sobre sua história com a arte, Lyvia Cruz relata que "não percebeu" em si "uma essência de artista", pois, em sua visão, na comunidade surda "não há conhecimento na área artística muito profundo e robusto". Quando sua mãe a levava para assistir a peças teatrais, não havia acessibilidade, e por isso ela não entendia, apenas visualizava.
Ao estudar em uma escola bilíngue, encontrou uma professora que sabia Libras e que a colocava como atriz nos papéis de peças do colégio. Para Lyvia, seu desenvolvimento "foi muito devagar", até entrar na faculdade e se dedicar a pesquisas acadêmicas. Professora efetiva de Libras no IFCE de Camocim, a contadora de histórias hoje produz arte adaptada para crianças.
Professora efetiva de Libras no IFCE de Camocim, a contadora de histórias hoje produz arte adaptada para crianças. Ela também faz traduções literárias para crianças surdas: "Muitos professores de Letras-Libras tinham essa dificuldade de fazer contação de história e teatro para crianças - muitas vezes contando até de forma um pouco negligente, faltavam algumas transformações. É muito importante garantir esse contato das crianças com a arte e a cultura".
Com portfólio extenso, um de seus trabalhos é a peça "Vozes Silenciadas", que dramatiza relatos reais de surdos do interior cearense: "É uma mensagem muito forte, porque retrata o sofrimento surdo, fala sobre nossas angústias e diversos outros assuntos". O espetáculo será apresentado em 10 de janeiro no Porto Dragão.
Em suas obras, tenta trabalhar a acessibilidade estética, transmitindo os sentimentos das peças em sua plenitude, mas sente falta de intérpretes que sigam essa tendência também - na música, por exemplo.
Sócia da empresa Ondas de Tradução (agência de acessibilidade com serviços de audiodescrição, legendagem e interpretação), ela destaca a importância da arte na sua vida: "A cultura me ensinou a viver, me guiou pelos caminhos quando eu não tinha nada, quando não sabia onde deveria estar, quando ninguém parou para me orientar".