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Como a arte acessível melhora a autoestima de pessoas com deficiência?
Reportagem Seriada

Como a arte acessível melhora a autoestima de pessoas com deficiência?

No consumo ou na produção, pessoas com deficiência apostam na arte como forma de ressaltar suas identidades, ainda que encarem desafios
Episódio 2

Como a arte acessível melhora a autoestima de pessoas com deficiência?

No consumo ou na produção, pessoas com deficiência apostam na arte como forma de ressaltar suas identidades, ainda que encarem desafios
Episódio 2
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Mais que uma forma de expressão, a arte funciona com síntese de identidade. Aos 29 anos, Norton Lima lembra bem de como começou sua relação com a arte e com a cultura. Ele ainda era pequeno e estudava na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) em Fortaleza. Enquanto artista plástico, suas referências passeiam pelo que seus olhos atentamente observam, como paisagens, elementos da natureza e as belezas do dia a dia.

"Faço pinturas do que vem na minha cabeça. Gosto de pintar paisagens, o sol, serras, rios e também vendo as obras", exemplifica. Norton reforça que sempre admirou tudo relacionado a artes plásticas, música e dança. Diagnosticado com Síndrome de Down, ele encontra na cultura uma forma de expressar sua identidade.


 

Seja como fruidor ou agindo na produção - não só como pintor, mas também como dançarino -, Norton não é o único a perceber a importância do contato com a arte. Como afirma Cristina Silva, especialista em Arteterapia, no artigo "A Contribuição da Arteterapia para a Deficiência Física", a "arte dá suporte ao indivíduo, atingindo seus aspectos físicos, psicológicos e sociais".

Segundo a pesquisadora, a arte ajuda diretamente na "melhora da autoimagem e da autoestima", fazendo o indivíduo se sentir capaz de realizar diferentes tarefas. Sim, o artigo foca na deficiência física, mas é possível estender esses efeitos da arte para outros tipos de deficiência. Fundamental, então, garantir o acesso pleno à cultura, sem amarras e barreiras.

 

 

O consumo da arte na gangorra da fruição e dos desafios

Norton participa de exposições, como a Mostra Ceará de Turismo e Cultura, realizada no shopping Iguatemi Bosque em junho. Hoje, ele trabalha no memorial da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) e recepciona alunos de escolas que visitam o ambiente, mostrando a eles os espaços da casa.

Frequentador de shows e outros eventos culturais, Norton lembra da relevância da meia entrada para pessoas com deficiência. Ele, aliás, compreende que deveria ser de graça para quem não tem condições de pagar ingressos.

Entretanto, o cearense também aponta situações que acabam ocorrendo em shows que dificultam a acessibilidade, como falta de áreas adequadas para pessoas com deficiência e distância para o palco.

Houve um caso em que Norton foi impedido de entrar na área para pessoas com deficiência porque, segundo orientação recebida pelo segurança, só era para deixar entrar quem usasse cadeira de rodas.

 

 

Apoio familiar é fundamental, mas é necessário infraestrutura

Maurício Lima, pai de Norton, lembra bem da situação, que acarretou uma representação junto ao Ministério Público. Advogado, ele também é vice-presidente da Comissão de Defesa das Pessoas com Deficiência da OAB/CE. Além de ressaltar a necessidade de preparação adequada de prestadores de serviço para atenderem às pessoas com deficiência, defende a importância do apoio familiar para o seu melhor desenvolvimento e o exercício da cidadania plena.

| Leia mais | Acessibilidade, o respeito ao direito de ser humano e o crime da exclusão

"Muitas famílias não usam os espaços culturais por medo de não terem apoio necessário no local do evento. Isso tira muitas pessoas desses eventos", enfatiza. Maurício também destaca que deve ser cumprido o que diz a Constituição e o Estatuto da Pessoa com Deficiência sobre os seus direitos de acesso à cultura e ao lazer.

 

 

O sonho atravessado por dificuldades físicas

Se, para Norton Lima, a possibilidade de pagar meia entrada é uma boa alternativa, para Jordenia Custódio, 57, não é diferente. A bancária encara essa ferramenta como um bom "tipo de acessibilidade", pois muitos não têm condições de comprar ingressos por valores de inteira.

Jordenia teve a perna amputada após sofrer um acidente de trânsito com 11 anos. Uma pessoa estava bêbada e a atingiu ao subir a calçada com o veículo. Ela ressalta o apoio da família em sua trajetória e destaca seus diferentes trabalhos, com passagens pela Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor).

Amante da fotografia, Jordenia também é atleta de canoagem e ama "tudo o que se refere à arte". "A arte, para mim, é vida. Amo ir ao cinema, a shows e fazer a minha própria arte, que é fotografar. A importância da cultura e a arte na minha vida é aprender, estudar, amar a vida e sonhar", declara.

Jordenia Custódio é bancária e ama ser fotógrafa(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Jordenia Custódio é bancária e ama ser fotógrafa

Para a bancária, os principais desafios enfrentados por pessoas com deficiência para acessar eventos culturais envolvem dificuldades de recursos como Libras, audiodescrição, ampliador de textos, educação das pessoas e elevadores - o que, nesse caso, implica na infraestrutura.

As dificuldades de acesso se estendem também a questões estruturais para quem tem deficiência física. Hugo Feitosa, 41, relata desafios como "falta de elevadores, rampas de acesso e lugares adaptados para assistir aos eventos". Há 16 anos, sofreu um acidente enquanto trabalhava.

Ele acabou se desequilibrando ao carregar um fardo de farinha e, ao cair sentado, fraturou as vértebras C4 e C5. Devido a esse acidente, Hugo ficou tetraplégico (ou seja, perdeu os movimentos do tronco, pernas e braços).

"Minha relação com a arte, infelizmente, ainda é pouca, pois há muitos eventos, mas nem todos são acessíveis. Os que vou são de aprendizados e diversão. Já fui para exposição de fotos, teatro, cinema, shows, mas participei ultimamente de rodas de conversas sobre educação e acessibilidade", relembra.

Hugo Feitosa não titubeia ao afirmar a relevância da arte e da cultura em sua vida: "Tem grande importância de aprendizados como pessoa e como cidadão. Muitas vezes nos ajudam a melhorar nossos pensamentos para podermos enfrentar nossos obstáculos".

 


 

 

 

A acessibilidade no "Diário de Um Deficiente"

A arte e a cultura também têm grande importância na vida de Denis Júnior, 24. Estudante de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Ceará (UFC), ele não hesita em enfatizar sua criatividade e reforçar seu lado artístico. O jovem mantém no Instagram o perfil "Diário de um Deficiente", no qual publica poesias e conteúdos sobre moda.

Denis tem paralisia cerebral e mora na região do Grande Mucuripe, em Fortaleza. Como destaca, sua relação com a arte é grande, especialmente devido ao seu curso — que exige, naturalmente, uma maior imersão artística. "A gente tem que saber um pouco de tudo, porque nossa área de atuação é muito ampla", explica.

O estudante revela que o tipo de evento cultural que mais frequenta é o cinema, mas admite que não vai com a assiduidade que deseja devido à dificuldade com locomoção. Segundo Denis, sua mãe - quem dava mais suporte a ele e ia com ele para todos os lugares - teve problemas de saúde em 2023 e ficou com sequelas.

 

 

"Tenho muito orgulho do homem que me tornei"

Denis Júnior afirma que está descobrindo agora "as responsabilidades de um homem adulto", pois precisa ser mais independente. "Acho que durante toda a minha vida, principalmente na adolescência, eu fui muito abdicado de sair para os lugares. Eu mesmo não me dava acessibilidade, porque tinha muita vergonha. A adolescência é uma fase muito difícil, ainda mais para uma pessoa que tem paralisia", recorda.

Ele complementa: "Eu deixava de sair para muitos lugares por vergonha, porque as pessoas ficariam olhando para mim, meu jeito de andar, minha voz… Minha adolescência foi muito complicada. Hoje, não. Tenho muito orgulho do homem que me tornei. Da pessoa consciente que me tornei, de poder lutar por direitos".

Estudante de publicidade e propaganda, Dênis Jr. tem paralisia cerebral(Foto: Arquivo Pessoal Dênis Jr)
Foto: Arquivo Pessoal Dênis Jr Estudante de publicidade e propaganda, Dênis Jr. tem paralisia cerebral

Para Denis, os principais desafios de acessibilidade cultural são os preços e a locomoção. Apesar de haver eventos gratuitos, muitas programações não são, e por isso sente dificuldades por ser de classe baixa. Ele percebe que faltam mais oportunidades de lazer e acesso à cultura em sua região.

Assim, entra o problema da locomoção: "Acho que deveria ter transportes para levar pessoas com deficiência para esses eventos. Uma van, um ônibus específico, que ficasse em determinados pontos da cidade. Ou, então, ter mais eventos culturais nos bairros".

Denis ressalta o carinho que tem pela região onde mora e reflete sobre a importância de conhecer a cultura de cada bairro: "Acho que todo mundo faz parte de uma cultura. Eu me sinto parte da cultura de Fortaleza". 

  • Textos Miguel Araújo
  • Edição Fátima Sudário e Miguel Araújo
  • Identidade visual Cristiane Frota
  • Recursos digitais Mateus Mota
  • Imagens Fábio Lima e acervo dos artistas
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