O mesmo país que atingiu a marca de um estupro a cada oito minutos durante o ano de 2019 vive um contexto em que as vítimas não são incentivadas a buscar justiça e denunciar os agressores. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, foram registrados 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável no ano passado. Pesquisadores estimam, porém, que há subnotificação em relação aos casos de violência sexual em decorrência de diferentes fatores, como: vergonha, sentimento de culpa, medo do agressor, desejo de preservar a família ou falta de apoio por parte das autoridades.
O medo de procurar uma delegacia ou outra instituição e, no processo de denúncia e julgamento, tornar-se vítima de novo é um dos motivos para que as mulheres que sofrem violência não busquem as autoridades. “Em qualquer tipo de crime que envolve principalmente questões de gênero, a mulher infelizmente não é vítima só no momento do crime”, afirma a promotora Lucy Antoneli, coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do Estado do Ceará (Nuprom/MPCE).
A falta de apoio psicossocial para que a mulher seja acolhida pode levar à ocorrência de outras violências nos momentos posteriores ao crime, quando ela busca instituições, que muitas vezes não estão preparadas para compreender a violência de gênero. Um caso que ilustra esse processo de revitimização é o da digital influencer Mariana Ferrer, que chamou atenção recentemente.
No último 2 de novembro, o The Intercept Brasil trouxe à tona cenas de uma audiência do processo em que a jovem acusa o empresário André Aranha de estupro, que teria ocorrido em uma festa na noite de 15 de dezembro de 2018. Na audiência, realizada online, foram mostradas fotos da jovem, e o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, falou em “posições ginecológicas”.
Além disso, Mariana ouviu do jurista frases como: “Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você” e “É seu ganha pão, a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem”. Após a publicação da matéria do The Intercept Brasil (TIB), diversas entidades e personalidades manifestaram-se nas redes sociais e fora delas, e o assunto chegou aos trending topics do Twitter como um dos assuntos mais comentados.
Não existe "estupro culposo". Existe estupro. Doloso. Intencional. A culpa não é da vítima. Nunca. #justiçapormariferrer pic.twitter.com/fRrJdkN0ae
— Defensoria Pública do Ceará (@defensoriaceara) November 3, 2020
Na audiência veiculada pelo TIB, que ocorreu em setembro último, o empresário foi absolvido da acusação de estupro de vulnerável. O processo corria em segredo de Justiça, mas a própria Mariana havia tornado o caso público pro meio das redes sociais em maio de 2019. De acordo com ela, foi uma forma de pressionar a investigação que considerava parada devido à influência do empresário.
Quantas mulheres como Mariana Ferrer vocês conhecem? Mulheres vítimas de abuso sexual que, mesmo apresentando todas as provas, foram desacreditadas. Esse caso mostra o quanto ainda temos que lutar. É pela vida das mulheres! Minha solidariedade à Mariana! #justicapormariferrer
— Manuela 65 (@ManuelaDavila) September 10, 2020
Utilizar fotos da mulher sem relação com o processo, falar sobre a vida sexual anterior da vítima ou fazer menção ao modo de se vestir ou de viver como se esses elementos justificassem alguma violência não é novidade.
“O que aconteceu com Mariana Ferrer é muito comum entre as mulheres. Não foi algo fora da curva. O senso comum, inclusive, julga a mulher a partir de suas roupas, de sua postura. Procura-se na vítima a razão que explica o abuso”, afirma a advogada Joyceane Bezerra de Menezes, doutora em Direito e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Após as imagens da audiência serem divulgadas pelo The Intercept Brasil, o juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, tornou-se alvo de representação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) devido à conduta de omissão durante a audiência.
Além disso, a Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC) informou, por meio de nota emitida pela assessoria de comunicação, que vai apurar denúncias sobre a conduta de Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André Aranha. A instituição afirmou, ainda, que os processos disciplinares são sigilosos.
Quando a mulher sobrevive à agressão e resolve buscar ajuda, a revitimização pode ocorrer em diferentes instituições, seja na delegacia, no Ministério Público ou no poder judiciário. Conforme explica a promotora Lucy Antoneli, ela se dá, por exemplo, quando a mulher precisa contar a mesma história da violência diversas vezes, em cada órgão onde passa.
Ou, ainda, quando a vítima ouve perguntas que se voltam contra ela, como: “O que você fez até chegar a esse ponto?”. “Muitas vezes, o promotor entende que não houve nenhuma violência contra a mulher e denuncia como crime comum, sem ter em vista essa questão de gênero”, complementa a promotora.
Para Aline Yamamoto, especialista de Prevenção e Enfrentamento da Violência contra as Mulheres da ONU Mulheres Brasil, o caso de Mariana Ferrer pode, por um lado, ter um impacto negativo para o movimento social que incentiva mulheres a denunciarem a violência sofrida.
“(Para) algumas mulheres que estejam sofrendo ou que sofram essa violência, ver a forma como a justiça condena a Mariana pela sua história de vida é que faz com que elas tenham receio de buscar ajuda”, afirma. Por outro lado, ela destaca a reação de “absoluta solidariedade” por parte de outras mulheres e a mobilização de diferentes instituições aliadas da luta pelo direito das mulheres.
A expectativa da promotora Lucy Antoneli é que o caso Mariana Ferrer tenha impactos futuros. Inclusive, o Projeto de Lei Nº 5096/2020, de autoria da deputada federal Lídice da Mata (PSB/BA) e outros 25 parlamentares está em tramitação. A proposta visa a alteração do Código de Processo Penal para contemplar o zelo pela integridade física e psicológica da vítima em audiência de instrução e julgamento de processos que apurem crimes contra a dignidade sexual.
SAIBA O QUE DIZ O PROJETO
Art. 1º O Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro e 1941 passa a vigorar acrescido dos seguintes dispositivos:
Art. 400 – A. Na audiência de instrução e julgamento de processos que
apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes presentes no ato
deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, cabendo ao juiz
garantir o cumprimento do disposto neste artigo, sob pena de
responsabilização, em caso de omissão.
§ 1º Nas audiências de instrução e julgamento de processos criminais, em especial nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, é vedado a qualquer das partes e ao magistrado manifestarem-se sobre fatos e provas que não constem nos autos, sob pena de responsabilização junto aos órgãos de correição competentes e à Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 2º O juiz determinará a exclusão imediata de qualquer manifestação que atente contra a honra da vítima, devendo oficiar os órgãos de correição competentes ou a Ordem dos Advogados do Brasil, para apuração de responsabilidade profissional.
PDF disponível em: https://bit.ly/332WMmH
Outras leis surgiram após casos violência contra mulheres terem grande repercussão. É o caso da conhecida internacionalmente Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; da Lei Carolina Dieckmann (nº 12.737/2012), que tipifica delitos informáticos e da Lei Lola (nº 13.642/2018), que dá à Polícia Federal a atribuição de investigar crimes na internet que difundem conteúdo misógino.
Foram longos os caminhos percorridos para ver essas mudanças sociais em forma de lei. Outro exemplo dessa demora é que somente em 2005, com a Lei nº 11.106, o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) foi alterado, e a expressão “mulher honesta” foi retirada dos artigos 215 e 216, referentes aos delitos de posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude, respectivamente.
“Persiste, porém, no imaginário social, o conceito de mulher decente, assim entendida como aquela que se adequa a um padrão ‘ideal’ de comportamento socialmente talhado para a mulher. A indecente não poderia reclamar dos abusos – sua conduta, afastada do padrão de decência, legitimaria a intrusão do macho”, comenta a advogada Joyceane Bezerra de Menezes.
São dois os meios apontados pelas especialistas para se evitar que mulheres que sofreram violência sejam revitimizadas. Eles são: formação profissional e informação. Tanto a promotora Lucy Antoneli quanto a advogada Aline Yamamoto apontam a necessidade de os agentes que vão prestar acolhimento às vítimas. Essa capacitação deve ter início ainda na graduação, de acordo com elas.
“Precisa ter uma capacitação de gênero, tanto dentro do poder judiciário, como no Ministério Público, na Defensoria e creio que também dentro da própria OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). As faculdades também não fazem essa capacitação, isso precisa começar desde os cursos de Direito” defende Lucy Antoneli.
Aline Yamamoto acrescenta que há “iniciativas interessantes”, como a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aprovada no último dia 6 de outubro, aos tribunais de Justiça para que promovam capacitação com perspectiva de gênero para todos os magistrados e magistradas que atuam em juizados ou varas de violência doméstica.
Além disso, temas como gênero, desigualdade e opressão devem ser enfrentados, uma vez que, conforme destaca a advogada Joyceane Bezerra de Menezes, “as instituições espelham a sociedade”. “Temos que trabalhar esse preconceito de gênero dentro da sociedade para que tenhamos delegados, promotores e juízes com essa mentalidade do atendimento e de um acolhimento da mulher vítima”, corrobora a promotora.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 também traz informações sobre os feminicídios cometidos no País em 2019. Desde que a Lei nº 13.104/201 incluiu esse crime no Código Penal, o feminicídio vem crescendo no Brasil. O documento aponta aumento de 7,1% dos casos em 2019, quando comparado com os números de 2018. Ao todo, foram 1.326 desse crime. Já durante o primeiro semestre de 2020, em meio à pandemia, foram 648 vítimas — um aumento de 1,9% em comparação ao mesmo período do ano anterior.
O que todas nós estamos pedindo é respeito
Por Cristiane Bonfim*
Sou mulher, mãe (de menina e de menino), jornalista e pesquisadora na área de comunicação, com interesse em especial sobre questões relacionadas ao ativismo das mulheres. Dessa forma, minhas considerações sobre o caso do julgamento do empresário catarinense André Aranha, acusado de estupro pela promoter Mariana Ferrer, partem de uma análise que envolve questões técnicas, mas não somente. Têm a ver também com empatia e com a lembrança de muitas vulnerabilidades, violências simbólicas e físicas a que mulheres foram em algum grau submetidas simplesmente por serem mulheres.
Dói assistir ao vídeo da audiência virtual com Mariana. Ela é humilhada pela defesa do empresário enquanto outros homens calam ao vê-la passar pela situação. Não entro no mérito técnico do julgamento, pois não é minha seara discutir as leis. Pergunto-me, entretanto, quantas vítimas de estupro deixariam de denunciar uma violência dessa gravidade para não serem submetidas a tudo que Mariana Férrer ouviu? Então Mariana ter feito fotos com poses que o advogado considera inadequadas ou ter ingerido bebida alcoólica autorizaria que ela fosse vítima de um crime previsto no artigo 213 do Código Penal?
O caso dessa jovem que gerou mobilização nas redes e nas ruas de todo o Brasil puxada pelas hashtags #justiçapormariferrer e #estuproculposonãoexiste deixa muitas perguntas e requer que o debate continue. Quantas camadas de violência as mulheres estupradas, inclusive as que são de outras classes sociais e raças, precisam enfrentar para buscar Justiça? Se o vídeo do julgamento não tivesse sido divulgado pelo site jornalístico The Intercept Brasil, a sentença que inocenta André Aranha teria obtido tanta repercussão?
É aí então que entra o papel crucial do jornalismo, tanto para uma cobertura crítica sobre o Judiciário como para uma abordagem sem estigmas de pautas relacionadas à violência contra as mulheres. Importante destacar que a repórter responsável pela matéria do The Intercept Brasil, Schirlei Alves, acabou também se tornando vítima de ataques virtuais.
Portais de análise do Jornalismo, como o Observatório da Imprensa e o Observatório da Ética Jornalística (Objethos), publicaram recentemente artigo de autoria da professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pesquisadora, Sílvia Meirelles Leite. A especialista reforça como a cobertura desse caso é emblemática para a reflexão sobre a revitimização da mulher. Ainda é relativamente recente o espaço para mulheres em lugares de poder, na academia, no judiciário ou na mídia. As perspectivas de onde se olha, de quem avalia e o que se vê continuarão sendo fundamentais. O que todas nós precisamos é de respeito.
(*) Cristiane Bonfim é jornalista, com mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), pesquisa sobre ativismo e gênero
Discussão sobre o que o caso Mari Ferrer trouxe novamente para o centro de debates quanto à forma que a Justiça trata casos de agressão e até estupro contra mulheres. Histórias do passado que já mostravam revitimização e novos abusos contra as vítimas.