Logo O POVO+
Retórica moralista atravessa século e justifica crimes contra a mulher
Reportagem Seriada

Retórica moralista atravessa século e justifica crimes contra a mulher

A estratégia discursiva e narrativa na defesa dos acusados, notadamente machista, revitimiza e culpabiliza as vítimas
Episódio 2

Retórica moralista atravessa século e justifica crimes contra a mulher

A estratégia discursiva e narrativa na defesa dos acusados, notadamente machista, revitimiza e culpabiliza as vítimas
Episódio 2
Tipo Notícia Por

“Nessa conjuntura, perseguido o acusado pelo ciúme que lhe invadia a alma, sentiu-se ofendido em sua dignidade de homem e de esposo (...) que explodindo depois de haver martelado bastante o seu cérebro, produzia um estado transitório de completa perturbação dos sentidos, obrigando-o e levando-o a prática do crime, sem que tivesse discernimento do mal que praticava, tudo executado automaticamente. Foi o acusado antes uma vítima do que um algoz, merecendo por isso que lhe seja reconhecida a sua inocência.”

Este foi o argumento de defesa de Antônio Pereira dos Santos, que matou a ex-esposa Eulâmpia Sales a facadas em 1929, em Fortaleza. A motivação: o operário não admitia o novo modo de vida de Eulâmpia, que passara a frequentar festas e passeios após separação. O que era considerado "folganças", como consta na dissertação de Idalina Maria Almeida de Freitas, "Crimes Passionais em Fortaleza: O Cotidiano construído nos processos-crime nas primeira décadas do século XX", apresentada para o mestrado em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2007. 

 

A análise de processos de homicídios ocorridos nos anos 1920 e 1930 destaca que as imagens das mulheres "foram sendo construídas e idealizadas, atribuindo a elas o papel de boas esposas, fiéis, honradas e castas". Na pesquisa, a autora também analisa o modelo social no qual os homens "eram obrigados a respeitar certos preceitos de honra" e, se fosse preciso, "deveriam tomar atitudes públicas para defendê-los, na tentativa de limpar o próprio nome.

Mesmo com o surgimento do movimento em defesa dos direitos das mulheres no Brasil e a criação de legislações protetivas, como a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio (2016), no Pais, os mais de 90 anos que separam o caso citado dos dias de hoje não foram suficientes para mudar de forma considerável o quadro de violência contra as mulheres.

Manifestação na Praia de Iracema pede justiça para Mari Ferrer, influencer vítima de estupro(Foto: MARÍLIA FREITAS/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: MARÍLIA FREITAS/ESPECIAL PARA O POVO Manifestação na Praia de Iracema pede justiça para Mari Ferrer, influencer vítima de estupro

No primeiro semestre de 2020, foram registrados 147.379 chamados à Polícia Militar em casos de violência doméstica — número 3,8% maior que no mesmo período do ano anterior. O número de feminicídios também cresceu: 648 vítimas — o que representa aumento de 1,9% com relação ao primeiro semestre de 2019. 

Na estratégia discursiva e narrativa na defesa dos acusados para culpabilizar as vítimas — mulheres estupradas, espancadas ou mortas por homens — paramos ainda mais no tempo. Machismo e moralismo dão o tom argumentativo como se ainda estivéssemos no passado.

Imagem reproducao do instagram de Mari Ferrer(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Imagem reproducao do instagram de Mari Ferrer

Em caso que repercutiu nas últimas semanas, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho — que faz a defesa do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estupro — caracteriza as fotos da vítima, a digital influencer Mariana Ferrer, como “ginecológicas”. Ele afirma que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana.

A proporção midiática põe luz sobre “casos emblemáticos que são a ponta de um iceberg que a gente não consegue visualizar”, avalia Hayeska Costa Barroso, professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Observatório da Violência contra a Mulher (Observem) da Universidade Estadual do Ceará (Uece).


Ângela Diniz: namorado matou por “legítima defesa da honra”

Por algumas características determinantes, casos tornam-se emblemáticos na sociedade. Ganham repercussão e, por vezes, mobilizam movimentos sociais e impulsionam mudanças. Um desses casos foi o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, em 1976. Ela foi morta em Búzios, no litoral fluminense, pelo namorado, Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. Ambos eram figuras constantes em colunas sociais da época.

.(Foto: OPOVO.doc)
Foto: OPOVO.doc .

Morta com quatro tiros no rosto, Ângela, segundo a defesa do acusado, teria atiçado outros homens e mulheres mesmo estando em um relacionamento com Doca, o que o fez cometer o crime em “estado de violenta emoção”. O podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, recupera o caso, detalhando como, de réu, o homem tornou-se vítima.

.(Foto: OPOVO.doc)
Foto: OPOVO.doc .

Lançado em setembro, o trabalho põe luz sobre como o argumento de “legítima defesa da honra”, apesar de não estar presente no Código Penal, era reconhecido nos tribunais. O advogado do réu, Evandro Lins e Silva, se refere a Ângela nos tribunais como “prostituta” e “Vênus lasciva”.

No primeiro julgamento, em 1979, ele foi condenado a dois anos de prisão. No segundo, em 1981, a 15 anos. Entre uma decisão e outra, esteve a importante atuação de movimentos feministas e pelos direitos das mulheres. A campanha "Quem Ama Não Mata", criada por esses grupos, influenciou diretamente na opinião pública e, consequentemente, no resultado do segundo julgamento.

Os casos de Mariana Ferrer e Ângela Diniz, mesmo que temporalmente distantes, “encarnam marcas históricas de um sistema de justiça hegemonicamente patriarcal, legalista e que tende a favorecer homens, brancos e de classe social privilegiada”. Na análise de Hayeska Costa Barroso, “são muitos mais elementos em comum do que a gente pode imaginar”. As quatro décadas que separam os crimes são “pouco” ante a um processo milenar.

“Nos anos (19)80, a gente fala de um movimento feminista muito incipiente. Hoje, são bem mais heterogêneos, articulados e conseguem trazer para a pauta do dia um recorte de raça. Não há como fazer um movimento feminista de forma generalizada. Mariana e Ângela são mulheres brancas”, destaca a pesquisadora sobre a amplitude que os casos tiveram na mídia.

A tese que coloca a mulher como alguém que desencadeia o crime continua sendo utilizada. Isso porque há uma conjuntura na qual estereótipos de gênero são enraizados. Segundo Hayeska "há um código moral de auto proteção masculina. Um esvaziamento da existência da mulher".  Em espaços hegemonicamente masculinos, que fazem parte da estrutura da sociedade, "a institucionalidade não dá conta de proteger as mulheres, reiteram um processo de violência"", analisa a pesquisadora.                                                                                                                                                                                                                                                                        

Ethel Angert: ex-marido matou pois “estava sob violenta emoção”

Matéria do O POVO em 21 de novembro de 1992: “Flávio Carneiro depõe sobre a morte de Ethel. Empresário diz ao Juiz que a ex-esposa o traía e alega que atirou nela sob violenta emoção”. O roteiro de argumentação seguido na defesa de homens que matam mulheres com as quais tiveram algum relacionamento se repete. A mulher “fez por onde” ser morta e os homens, por sua vez, estavam “em estado de violenta emoção”.

.(Foto: OPOVO.doc)
Foto: OPOVO.doc .

Loja no Centro de Fortaleza foi o local de um crime que repercutiu nacionalmente e provocou grande comoção. A empresária Ethel Angert foi morta no dia 15 de outubro de 1992, no interior da loja de discos de propriedade do ex-marido, na rua Guilherme Rocha, durante desocupação do local. Ela havia ganhado ação para retomar posse do imóvel. O crime gerou protestos de diversas entidades de defesa dos direitos da mulher, como a União das Mulheres Cearenses (UMC). Assim como no caso de Ângela Diniz, os grupos acompanhavam os passos do processo.

À época, Ethel e Flávio Carneiro estavam se separando e travavam briga judicial por causa da divisão dos bens e da guarda dos filhos. Ele foi preso três dias após o crime, em Messejana. Durante o processo, a defesa, formada pelos advogados Paulo Quezado e Clayton Marinho, expôs rumores da época, nos quais Ethel teria se separado de Flávio por causa de amantes. Durante julgamento, o advogado Clayton Marinho afirmou: “A própria vítima procurou a sua morte. Ela quase clamou”.

.(Foto: OPOVO.doc)
Foto: OPOVO.doc .

As mulheres presentes ao julgamento reagiram com repúdio à fala. Uma das fundadoras da UMC e ex-prefeita de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele, lembra a mobilização. “Acompanhamos vários casos como o da Ethel. Nos articulávamos para estar presentes nos julgamentos e nos locais dos crimes”, relata a ex-parlamentar e ativista.

Flávio foi condenado a 14 anos de prisão em regime fechado, mas a defesa recorreu novamente. Em 2017, após 24 anos do crime, a pena foi extinta pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). Isso porque a pronúncia do empresário foi confirmada em 9 de outubro de 1995, e o espaço de tempo para o novo julgamento ultrapassou o prazo de prescrição, de 16 anos. Segundo o TJCE, à época, o juiz destacou na decisão sucessivos recursos feitos ao longo dos anos. Em parecer, o Ministério Público do Estado também reconheceu a prescrição. O réu ficou 12 dias preso pelo crime.

Procurados pelo O POVO, os advogados não quiserem se pronunciar sobre o caso em questão. Clayton Marinho, contudo, comentou a argumentação das teses de defesa dos acusados de crimes contra mulheres. "Só um profissional recém saído da faculdade poderia tentar explicar uma morte por legítima defesa da honra. Os costumes mudaram. A história de legítima defesa da honra já passou, é ultrapassado”, disse, por telefone.

O advogado afirmou que a criação de leis não é suficiente para resolver os crimes de violência contra a mulher. "É um problema cultural. Tem que ser na educação também, temos que ter uma educação menos machista", disse.

.(Foto: OPOVO.doc)
Foto: OPOVO.doc .

Não obstante as mudanças com a tipificação de crimes contra a mulher, por que algumas alegações ainda se baseiam em atacar a honra da vítima? “Quando a gente fala de emancipação da mulher, ela ocupa cargos e espaços mas o poder é masculino”, argumenta Maria Luiza Fontenele. Apesar dos avanços, as estruturas não foram rompidas, perpetuando os crimes e o machismo estrutural.

“Temos que ter essa ruptura. Precisamos de um movimento unificado no combate à sociedade patriarcal, ao machismo ou não acabaremos com essa lógica. O machismo está cada vez mais selvagem. Há uma estrutura estatal e jurídica que sustenta isso. A sociedade nos assombra do ponto de vista do massacre das mulheres”, analisa ainda Maria Luiza.

Maria Luiza, ex-petista, foi a primeira prefeita eleita de Fortaleza, em 1985 (Foto: Fotos: Tatiana Fortes/ O POVO, 1995)
Foto: Fotos: Tatiana Fortes/ O POVO, 1995 Maria Luiza, ex-petista, foi a primeira prefeita eleita de Fortaleza, em 1985

Conforme a ex-parlamentar, também primeira mulher a ser eleita prefeita de uma capital de estado brasileiro, o valor é do homem e a mulher é considerada, até hoje, inferior. “Então, temos que fazer esforço dobrado para sermos aceitas em qualquer espaço. Mesmo tendo mulheres em destaque em qualquer parte, o poder é do macho branco”, acrescenta.


 

O que você achou desse conteúdo?

As questões trazidas à tona pelo caso Mari Ferrer

Discussão sobre o que o caso Mari Ferrer trouxe novamente para o centro de debates quanto à forma que a Justiça trata casos de agressão e até estupro contra mulheres. Histórias do passado que já mostravam revitimização e novos abusos contra as vítimas.