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Autismo pode ser mascarado em meninas e mulheres
Reportagem Seriada

Autismo pode ser mascarado em meninas e mulheres

Por muito tempo se falou que a prevalência de autismo era quatro vezes maior em meninos. Hoje, há hipóteses de que estereótipos de gênero têm influência em um subdiagnóstico em meninas e mulheres e que desde cedo elas aprendem a disfarçar sinais imitando comportamentos de outras pessoas. O chamado masking tem impactos negativos para a saúde mental
Episódio 1

Autismo pode ser mascarado em meninas e mulheres

Por muito tempo se falou que a prevalência de autismo era quatro vezes maior em meninos. Hoje, há hipóteses de que estereótipos de gênero têm influência em um subdiagnóstico em meninas e mulheres e que desde cedo elas aprendem a disfarçar sinais imitando comportamentos de outras pessoas. O chamado masking tem impactos negativos para a saúde mental
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Recusar convites para ir à praia dizendo apenas não gostar do ambiente parecia mais aceitável do que explicar aos outros a sensibilidade de tato à areia e ao bater do vento nos cabelos. Antes de ser diagnosticada com autismo aos 20 anos, a UX e UI designer e escritora Maiara Fonseca de Alencar Barbosa, 29, disfarçava a disfunção sensorial para não ser desacreditada pelos outros.

Com o tempo, ela também aprendeu algumas maneiras de demonstrar interesse durante uma conversa, como olhar nos olhos da outra pessoa ou de vez em quando balançar a cabeça positivamente. "Eu não reajo assim naturalmente, mesmo que esteja interessada na conversa, então a pessoa pode achar que estou distraída", conta Maiara.

Essa constante adequação aos comportamentos considerados socialmente aceitos tem nome: chama-se camuflagem social — ou masking — e pode estar ligado a um subdiagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em meninas e mulheres. "É basicamente você notar que é diferente e que boa parte dos seus comportamentos são punidos, e então começar a observar e a imitar comportamentos de pessoas consideradas habilidosas de maneira geral", explica a psicóloga Táhcita Medrado Mizael, que também foi formalmente diagnosticada com TEA depois de adulta.

"Você passa a reproduzi-los na medida do possível para se encaixar no mundo neurotípico em que vivemos", complementa a doutora em Psicologia e pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP-SP). Táhcita aponta ainda que a camuflagem social está relacionada a uma série de consequências negativas para a saúde mental da pessoa no espectro, como quadros ansiedade e depressão.

O que é o TEA?

TEA em mulheres e meninas

Estimativas apontam "'Análise do comportamento aplicada ao autismo e atuação socialmente responsável no Brasil: Questões de gênero, idade, ética e protagonismo autista' — Táhcita Medrado Mizael e Cíntia Cristina Ferreira Ridi" que uma menina é diagnosticada com TEA para cada quatro meninos. Porém, nas últimas décadas têm sido levantada a hipótese de que estereótipos de gênero tenham influência no subdiagnóstico em meninas e mulheres, o que as leva a identificar o TEA apenas mais velhas.

Em alguns casos, por exemplo, o autismo em meninas e mulheres pode não ser identificado porque o hiperfoco "interesse restrito, intenso, sobre algo"  delas é considerado compatível com o gênero. "Se uma menina apresenta um hiperfoco em bonecas ou em princesas, a família pode considerar um comportamento típico", exemplifica Táhcita Medrado Mizael.

Além disso, a pesquisadora aponta que algumas características do TEA podem ser externalizadas ou internalizadas, em relação ao tipo de comportamento. É o caso do que se chama de tantrum — ou crises. "Às vezes as pessoas veem como manha, mas no caso do autismo não é uma manha. Por exemplo, a criança quer alguma coisa e precisa ser aquela coisa específica. Se a família não dá, ela se joga no chão e começa a chorar, bate na parede ou começa a se bater", explica.

Para meninas, comportamentos assim muitas vezes são repreendidos. "Existe essa hipótese, então, de que logo no começo da infância as meninas aprendem que tem certas coisas que elas não podem fazer. Em vez de elas mostrarem desconforto a partir desses comportamentos de agressão muito visíveis, elas vão ter comportamentos internalizantes, como ficar quietinhas, entrar em quadros de ansiedade, em quadros depressivos que vão ser diagnosticados."

Com isso, só em idade mais avançada algum profissional identifica que esse quadro de depressão e/ou ansiedade é resultado de algum suporte que a pessoa no espectro precisava e não recebeu. Essa falta de apoio é a primeira consequência negativa para a pessoa no espectro que não recebeu o diagnóstico na infância citada pela psicóloga. Receber um diagnóstico incorreto e, com isso, realizar um tratamento que pode ser prejudicial pode ser mais uma repercussão ruim.

"Quando olhamos estudos de mulheres adultas que tiveram diagnóstico de autismo depois dos 18 anos, é muito comum ver relato de que elas sentiam que precisavam de algum tipo de apoio mas as pessoas simplesmente achavam que elas eram folgadas ou eram preguiçosas. Ou elas mesmas começavam a pensar: 'poxa, se todo mundo consegue fazer isso, porque que eu não consigo?', e isso leva a uma redução na autoestima, que também é uma consequência negativa", explica.

Níveis de suporte no Transtorno do Espectro Autista

Fonte: Autismo e Realidade

 

 

Uma ferramenta para ser mais respeitada

Chegar à faculdade foi um ponto de virada na vida de Maiara Barbosa. Até então, ela "recusava" a possibilidade de estar no espectro autista, apesar de enfrentar dificuldades em algumas áreas da vida. Ao ler sobre o assunto, porém, ela não se encaixava em descrições como as que diziam que pessoas com autismo "não conseguem entender figuras de linguagem".

"Eu amo literatura. Eu não só entendo como me formei nessa área porque eu realmente adoro isso, adoro escrever, sempre fui extremamente criativa. Lá dizia que (autistas) têm dificuldade em jogar jogos de imaginação, são lógicos, e eu odiava matemática. Eu ficava (pensando) 'isso não tem nada a ver comigo'", conta.

Maiara Fonseca de Alencar Barbosa, 29, é formada em Letras - Português pela Universidade Federal do Ceará (UFC). UX e UI designer e escritora, ela está escrevendo um livro sobre mulheres da antiguidade na história da Ciência.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Maiara Fonseca de Alencar Barbosa, 29, é formada em Letras - Português pela Universidade Federal do Ceará (UFC). UX e UI designer e escritora, ela está escrevendo um livro sobre mulheres da antiguidade na história da Ciência.

Ao se deparar com o ambiente acadêmico, em que não bastava mais apenas tirar boas notas nas provas e em que a programação das atividades não seria mais tão padronizada, variando de acordo com as disciplinas e com a metodologia adotada  pelos professores, Maiara teve uma crise.

"Sempre gostei muito de questões de rotina e previsibilidade, então isso pesou muito em mim. Eu tive uma crise, um burnout, e tive que me afastar da faculdade e na época eu realmente tive que passar um tempo direto só em casa. Fiquei incapaz de fazer a maioria das coisas e foi nesse período que meus pais se preocuparam muito com essa questão de descobrir o que havia comigo", lembra.

Foi nesse contexto que Maiara encontrou um psicólogo com quem se sentiu mais à vontade para falar sobre o TEA. Isso porque, com outros profissionais, sentia que a própria percepção sobre não se encaixar era invalidada. Após entender que o autismo se trata de um espectro e que, para entender linguagem não-verbal e figuras de linguagem, por exemplo, ela faz mais esforço do que pessoas com desenvolvimento típico "pessoas que não estão no espectro" , Maiara ficou mais receptiva ao diagnóstico de TEA.

"Se é assim eu posso aceitar, porque eu não vou desmentir quem eu sou para me encaixar no diagnóstico. Mas se o diagnóstico se alinha comigo eu não vejo problemas com isso. Foi basicamente essa a questão." - Maiara Barbosa

Para ela, o que mais mudou após o diagnóstico foi em relação às outras pessoas passarem a ser mais compreensivas. "Antes, todas essas coisas que eu tinha eram consideradas preguiça, frescura esquisitice mesmo. As pessoas não levavam a sério o suficiente. Então, com o diagnóstico eu tenho uma ferramenta que me ajuda a ser mais respeitada e mais bem tratada em diferentes contextos", explica.

De volta à faculdade três anos após aquela crise, Maiara entrou em contato com a coordenação e foi estabelecido um esquema de progressão gradual de disciplinas para ela conseguir se formar no tempo correto. E, com o TEA confirmado, ela podia solicitar alguns ajustes na hora de fazer as provas, por exemplo. As aulas remotas devido à pandemia de Covid-19 a ajudaram a estudar com mais conforto, uma vez que ela tem sensibilidade a luz branca, que é utilizada tanto em salas de aula quanto nas ruas de Fortaleza "Mais de 95% das ruas da Capital têm luz branca, segundo a Prefeitura de Fortaleza" .

Mas isso não quer dizer que ter o diagnóstico solucionou todos os problemas. Ainda ocorre de adaptações não serem providenciadas ou de elas serem questionadas por "não parecerem" necessárias. "Sempre é uma luta quando o que você tem não é uma coisa tão aparente", afirma.

 

 

Situações que podem chamar atenção

 

Um dos ambientes em que os sinais do autismo podem ficar mais evidentes é o local de trabalho. Por isso, ele pode ser "especialmente importante" para ajudar o profissional a chegar a fechar o diagnóstico, aponta a psicóloga Táhcita Medrado Mizael, que conduz avaliações de autismo em adultos e em adolescentes.

Por mais que algumas características do comportamento da pessoa no espectro autista sejam notadas ou até comentadas ao longo da vida entre as pessoas mais próximas, no ambiente de trabalho a pressão pode ser maior. Expressar-se de forma mais direta pode ser percebido como grosseria e ter comportamentos repetitivos pode ser mal visto.

"Pessoas neurotípicas também podem se identificar com essa descrição, porque elas também falam: 'eu utilizo essa roupa específica para ir ao trabalho porque eles não querem que eu use essa outra roupa' ou 'no ambiente de trabalho eu preciso falar de certa forma porque eles não admitem que eu utilize muitas gírias' etc. Mas, para elas, fazer esses ajustes acaba sendo muito menos custoso do que para as pessoas autistas, e é aí que começamos a captar essas diferenças", explica Táhcita.

Além disso, o trabalho é um local onde, no geral, é exigido um alto nível de interação em que a pessoa geralmente não tem controle e deve-se seguir regras que "não necessariamente vão fazer sentido". "É um ambiente com pouco controle sobre iluminação, sobre aspectos sensoriais, sobre nível de interação, um ambiente que vai exigir bastante em termos de habilidades sociais", complementa a doutora em psicologia.

Selfie da psicóloga Táhcita Medrado Mizael em um parque

Intersecção entre gênero e raça

Como os estereótipos de gênero, o racismo pode dificultar a identificação precoce de TEA e levar crianças negras a receberem diagnósticos errados, relacionados a transtornos de conduta — mais associado à criminalidade. Confira a entrevista com a psicóloga Táhcita Medrado Mizael.

Capa do ebook autismo no feminino: a voz da mulher autista

Indicação de livro

A partir da pergunta “O que você pensa que a sociedade precisa saber sobre autismo no feminino?”, mulheres autistas escreveram textos para o livro "Autismo no Feminino: A voz da mulher autista" para difundir informações técnicas e histórias pessoais do caminho até o diagnóstico.

 

Ponto de vista 

Nem chata, nem anjo azul: muito prazer, sou autista!

Lua Santos, jornalista

"Imagine um computador com diversos programas rodando ao mesmo tempo. E um deles é o navegador de internet, com dezenas de abas abertas, do tipo que não aparece nem o ícone das páginas. E além disso, tem mais umas duas músicas diferentes tocando e você não sabe onde. Meu cérebro é mais ou menos assim."

Essa foi a melhor descrição que eu já vi na internet sobre Autismo. Na verdade, sobre o meu Autismo, porque, afinal, como o nome diz, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) abrange diferentes sintomas, manifestações e níveis de suporte. E, para mim, ele é exatamente assim.

Eu descobri que era autista com 32 anos, graças a uma professora de um curso. Até então, eu era só uma pessoa considerada chata, inflexível com mudanças, antipática, cheia de “frescura”, preguiçosa, distraída, insira-aqui-seu-adjetivo-ruim e ah, com uma mania terrível de arrancar os cabelos e as cutículas das unhas.

"Já reparou como o Autismo está na moda?" Essa parece ser a pergunta que não quer calar. E geralmente, vem acompanhada de frases como "mas agora todo mundo é autista ou TDAH".

Lua Santos, jornalista(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Lua Santos, jornalista

O fato é que, por anos, se acreditou que autista era aquela criança que não falava, não interagia, e que quando crescia, era como o personagem do filme Rain Man.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 1% da população mundial tenha autismo. Fazendo as contas, significa dizer que, no Brasil de 200 milhões de habitantes, cerca de 2 milhões sejam autistas. É muita gente, certo?

Isso só mostra que não é moda, nem fase. Os autistas sempre estiveram aí, mas, geralmente, só os casos mais severos – e em meninos! – eram diagnosticados precocemente. Os demais, principalmente as meninas, eram tidos, por familiares e professores, como crianças difíceis, chatas para isso ou aquilo, etc...

Veja você, até no diagnóstico o machismo atrapalha, afinal, faz parte da criação das meninas ensinar a ficarem quietas, sem interagir muito, a mascarar o que pensam e sentem e copiar como os outros se comportam. Então, não é à toa que o número de mulheres sendo diagnosticadas na fase adulta seja grande. Muitas, inclusive, só recebem o diagnóstico enquanto os neuropsicólogos investigam o autismo nos filhos delas.

Isso sem mencionar que autistas crescem. Eles não permanecem "crianças azuis" para sempre, nem ficam “curados” quando completam 18 anos. Isso, somado ao fato do acesso a informações ter se ampliado, a melhora dos exames clínicos e até mesmo a melhor formação dos profissionais médicos faz com que mais pessoas sejam diagnosticadas com autismo e outras neuroatipias como TDAH e afins.

 

"Imagina não conseguir "agir como os outros" e, ao mesmo tempo, ser plenamente consciente disso, de que suas atitudes são ridicularizadas, ou de que as pessoas não compreendem sua forma de se expressar"

 

Hoje em dia, o autismo é classificado por seus diferentes níveis de suporte, sendo o nível 1 também chamado de autismo "leve". Mas, leve para quem? Pesquisas afirmam que os índices de depressão são grandes entre os autistas, principalmente os de nível 1.

Imagina não conseguir "agir como os outros" e, ao mesmo tempo, ser plenamente consciente disso, de que suas atitudes são ridicularizadas, ou de que as pessoas não compreendem sua forma de se expressar ou de entender o que, para muitos, é chamado de senso comum.

Quem diria, não é mesmo? Neuroatipias não são moda. Nem "fase". Pode parecer que receber o diagnóstico na vida adulta não faça diferença. Mas faz. Faz compreender que não há nada de errado com a gente. E que o verdadeiro ignorante é aquele que insiste em dizer "você nem parece autista" ou que "neuroatipia está na moda", o que faz bullying, o que não quer entender e prefere seguir sendo capacitista.

Expediente

  • Edição OP+ Regina Ribeiro
  • Texto Gabriela Custódio
  • Edição de arte Cristiane Frota
  • Identidade visual Lucas Jansen
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Autismo em mulheres

Especial aborda o autismo em meninas e mulheres adultas. Estudos atuais dão conta de hipóteses de que estereótipos de gênero têm influência em um subdiagnóstico e que, desde cedo, elas aprendem a disfarçar sinais imitando comportamentos de outras pessoas