Um inimigo silencioso é desafiador, mas se ele for previsível, pode ser mais fácil de ser combatido. Uma das principais causas de morte e, sobretudo, de incapacidade em todo o mundo, o Acidente Vascular Cerebral (AVC) pode ser prevenido e, quando ocorre, pode ter sequelas menos graves. Mas, para isso, a informação e o tempo são determinantes. Os casos de AVC podem ser reduzidos em 80% se algumas causas associadas forem controladas.
No Ceará, 9.286 pessoas foram internadas no para tratar AVC no último ano (entre setembro de 2023 e agosto de 2024) e foram registradas 1.415 mortes em decorrência da doença em 2023, conforme dados do Datasus.
Os casos de AVC apresentaram aumento preocupante nas últimas décadas. Estudo científico publicado na revista The Lancet Neurology no segundo semestre de 2024 revela que houve um aumento de 70% nos casos de AVC em 30 anos. Conforme o estudo, que rastreou o impacto e a epidemiologia da condição e seus fatores de risco, foi registrado aumento de 44% nas mortes em decorrência da doença entre 1990 e 2021.
O neurologista Octávio Marques Pontes Neto, chefe do Serviço de Neurologia Vascular e Emergências Neurológicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, explica que algumas das causas dessa variação são “um momento de descontrole dos principais fatores de risco e aumento do envelhecimento da população”, que tem gerado aumento os casos de doenças cerebrovasculares.
Segundo Marques, que é professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Rede Nacional de Pesquisa em AVC, embora seja mais comum em pacientes com mais de 50 anos, pode ocorrer em qualquer idade. “O AVC está entre as dez principais causas de mortes em crianças”, alerta.
“Também pode acontecer por causas mais raras, mesmo sem os fatores de risco, como as características genéticas. De 10% a 20% dos casos têm base genética. A história familiar aumenta o risco”, acrescenta.
Existem dois tipos de AVC, que ocorrem por dois motivos diferentes. Mais comum, representando 85% dos casos, o AVC isquêmico ocorre quando há obstrução de uma artéria, impedindo a passagem de oxigênio para células cerebrais, que acabam morrendo. Essa obstrução pode acontecer devido a um trombo (trombose) ou a um êmbolo (embolia).
Embora seja responsável por 15% de todos os casos, o AVC hemorrágico pode causar a morte com mais frequência do que o AVC isquêmico. Ele ocorre quando há rompimento de um vaso cerebral, provocando hemorragia. Esta hemorragia pode acontecer dentro do tecido cerebral ou na superfície entre o cérebro e a meninge.
Apesar de ser grave, os sinais podem não ser identificados facilmente. “O que dói dá medo nas pessoas. O AVC não dói, na maioria das vezes. Então, a pessoa pensa ‘Ah, vou deitar um pouco e vai melhorar’, isso acontece muito”, alerta Fabrício Lima, neurologista e chefe da Unidade de AVC do Hospital Geral de Fortaleza (HGF).
“Alguns pacientes relatam que sentem como se desligassem algo da tomada. Ele pensa em fazer o movimento, ele sabe que tem que fazer, mas ele não consegue. O cérebro não responde. Dependendo do caso, o paciente ‘esquece’ um lado inteiro do corpo”, detalha Vitor Abreu, neurologista da Unidade de AVC do Hospital Regional do Sertão Central (HRSC).
Uma forma de reconhecer os sinais é lembrar a sigla “Samu”, ensina Fabrício Lima. “Peça para sorrir, se a boca está torta significa que paralisou um lado do rosto, pode ser um AVC. O ‘A’ de abraço. Peça para levantar o braço, se ela não consegue fazer o gesto de abraço porque está fraca de um lado, também pode ser um AVC. ‘M’ de mensagem. Se a pessoa está falando de forma enrolada e não consegue entender, também é um sinal”, ensina.
Se qualquer um desses sinais for identificado, é preciso lembrar do ‘U’ de urgente. A indicação é procurar atendimento médico o mais rápido possível, destaca o neurologista. “Essa é uma estratégia excelente porque de 80% a 90% dos casos de AVC, um desses sintomas está presente”, reitera o chefe da Unidade de AVC do HGF.
O neurologista Octávio Marques Pontes Neto afirma que a prioridade após um caso de Acidente Vascular Cerebral é identificar as causas para prevenir uma segunda ocorrência. “É uma prevenção secundária. Quem tem um AVC, têm risco maior de ter outro do que a população em geral. Precisa orientar e tomar medidas agressivas para evitar outro”, frisa.
Seu José Airton Pereira da Silva, de 61 anos, já enfrentou quatro episódios de AVC, que o deixaram com dificuldades na fala. Morador da praia do Iguape, localizada no município de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), ele trabalha como pescador.
No caso mais recente, ele estava sentado em uma cadeira e teve dificuldade de levantar. A esposa de Airton logo reconheceu o risco de algo mais grave. O pescador tem hipertensão, colesterol alto e diabetes, doenças associadas ao risco de AVC.
Após alguns dias internado no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), ele apresentou melhoras no equilíbrio, que ficou prejudicado após o AVC mais recente. Depois de quatro episódios, ele planeja controlar melhor as comorbidades para prevenir outro acidente mais grave.
Quanto mais idoso, mais difícil é se recuperar das sequelas do AVC. Por isso, o atendimento rápido pode fazer toda a diferença na qualidade de vida pós-AVC dos mais velhos. Juvenal Aerre, de 86 anos, vai voltar para casa com quase a mesma funcionalidade motora de antes, após internação no Hospital Regional do Sertão Central (HRSC).
“Eu não sei como aconteceu. Eu não vi quando saí de casa, não vi quando estava na estrada, quando cheguei aqui. Com um tempo foi que minha neta me perguntou se eu sabia onde eu estava, eu disse que estava em casa. Mas ela disse ‘não vô, o senhor está em Quixeramobim’”, lembra o morador de Boa Viagem.
“Eu vinha como morto. Hoje, graças a Deus e ao pessoal que trabalha aqui, eu estou bem, estou com saúde. Eu vou sentindo alívio daqui porque vou pra casa com saúde”, comemora.
A partir do momento em que o telefone do Hospital Regional do Sertão Central (HRSC) toca avisando que há um paciente com AVC chegando de algum município da região, todo o setor fica em alerta.
A “janela” entre o início dos sintomas do acidente vascular e a aplicação do trombolítico - um remédio que ajuda a “dissolver” o trombo ou coágulo sanguíneo - precisa ser menor do que quatro horas e meia. É com uma intervenção dentro desse período que o paciente tem a maior chance de recuperação completa após o AVC.
“A cada minuto em que a irrigação da sanguínea do cérebro é prejudicada, a pessoa pode perder quase 2 milhões de neurônios. Então, quanto mais rápido se consegue restabelecer o fluxo sanguíneo no cérebro, melhor vai ser o resultado”, explica Thais Melo, diretora médica da Boehringer Ingelheim, farmacêutica responsável pelo medicamento.
Por isso a pressa para realizar uma coreografia bem ensaiada e precisa. Ela inicia com um maqueiro se posicionando na porta da Emergência. Assim que o paciente é colocado na maca, enfermeiros fazem acessos endovenosos e colhem sangue para exames.
Depois, a pessoa é levada até a sala de tomografia. Constatado o AVC isquêmico por meio do exame, o remédio é administrado ali mesmo.
Da chegada do paciente até o momento em que recebe a medicação para diminuir os efeitos do AVC são em média 20 minutos. A média mundial recomendada é de menos de 60 minutos.
Cada segundo conta para evitar uma vida com sequelas motoras e cognitivas. Esse tempo, chamado de porta-agulha, é um dos indicadores que faz o HRSC se destacar no atendimento desse público.
Localizado em Quixeramobim, a 212,24 km de Fortaleza, o hospital atende cerca de 630 mil habitantes dos municípios da região, mas também recebe pacientes de cidades ainda mais distantes da Capital.
Para o neurologista Vitor Abreu, a proximidade e o fácil acesso para os moradores do Interior são as maiores vantagens da unidade de AVC do hospital, inaugurada em 2018.
“Antes, a maioria dos pacientes tinha que ir para o Cariri ou para Fortaleza. Com isso, a maioria já chegava fora da janela, abarrotando principalmente o Hospital Geral de Fortaleza (HGF), que é o único hospital [da Capital] que recebe pacientes neurológicos desse jeito”, conta.
Em um estudo feito pela equipe do HRSC, foram analisadas as mortes por AVC da macrorregião do Sertão Central de 2013 a 2023. No primeiro ano após a abertura do serviço no hospital, o número de mortes caiu de 262 para 216, representando uma queda de 17%. Na década analisada, a diminuição foi de 37%, com 2013 apresentando 293 mortes e 2023 com 183.
O treinamento para identificar o AVC e acionar o alerta para atendimento rápido vai desde o porteiro até o médico neurologista. Fabrício Lima, neurologista chefe da unidade de AVC do HGF, explica que o protocolo é adotado internacionalmente.
“Quando o vaso entope, nosso cérebro não morre imediatamente. Tem uma rede de circulação que ainda mantém durante alguns poucos minutos, até poucas horas, a atividade. Então, quanto mais cedo você tratar, menor é a sequela do AVC”, diz.
Outro procedimento que depende da procura rápida por uma unidade especializada é a trombectomia mecânica. No Ceará, o HGF é o único a realizá-lo. Por meio de um cateter na virilha, é possível localizar e desobstruir o vaso cerebral afetado.
“É semelhante ao cateterismo do coração, mas é feito no cérebro. Através desses tratamentos você consegue desentupir o vaso e preservar o cérebro”, explica Fabrício.
O HGF também é o único hospital do País a contar com um núcleo dedicado exclusivamente a casos hemorrágicos, com 15 leitos exclusivos para pacientes em tratamento intensivo. Neste ano, a Unidade de AVC do equipamento completa 15 anos.
Além dessas duas unidades especializadas, que funcionam 24 horas, o Ceará conta ainda com serviço de atendimento de AVC no Hospital Regional Norte, em Sobral, e no Hospital Regional do Cariri, em Juazeiro do Norte.
Preparar um serviço de qualidade para atender pacientes de AVC requer capacitações e treinos constantes. A rede de saúde precisa estar conectada, já que a população pode chegar com sintomas em postos de saúde, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e outros hospitais municipais.
No início da implementação da unidade de AVC no Sertão Central, a equipe do hospital regional contou com a iniciativa internacional Angels, da farmacêutica Boehringer Ingelheim, para treinar tanto os profissionais da unidade quanto aqueles que trabalham na rede de saúde da região.
O projeto Angels também reconhece as boas práticas e certifica as unidades de AVC que se destacam em indicadores como o tempo porta-agulha, tempo de permanência de pacientes, rapidez para realizar a primeira tomografia, o combate a infecções hospitalares, entre outros.
Conforme a coordenadora da enfermagem da unidade de AVC, Mara Cibelly Pinheiro, o HRSC já recebeu 19 certificações nos três níveis premiados: dois ouros, 13 platinas e cinco diamantes, sendo esta última a mais prestigiada.
A iniciativa também procura levar conhecimento sobre o AVC para a comunidade da cidade. Em setembro, alunos da escola fundamental Dona Maria de Araújo Carneiro, da rede pública de Quixeramobim, receberam o projeto Fast Heroes.
Por meio de contação de histórias e personagens que representam os sintomas do AVC, crianças de cinco a nove anos aprenderam como reconhecer um acidente vascular cerebral e como buscar ajuda de forma rápida.
Kamila Fachola, gerente da Iniciativa Angels no Brasil, explica que a iniciativa nasceu para atuar como uma consultoria e auxiliar unidades hospitalares na implementação do que era recomendado do ponto de vista científico.
“Está em mais de 8 mil hospitais. No Brasil, são cerca de 600 hospitais. Os hospitais que se organizam e analisam seus dados e sua qualidade de atendimento, a gente observa que tem, sim, diminuição de mortes e sequelas para o paciente”, assegura.
No Ceará, o Hospital Geral de Fortaleza (HGF), o Hospital Regional do Sertão Central (HRSC), o Hospital Regional do Cariri (HRC) e o Hospital Regional Norte (HRN) são certificados.
"O grande objetivo é aumentar o número de Cidades Angels. O hospital, muitas vezes, só pensa no paciente ali dentro. O objetivo é colocar todo mundo junto. O mesmo paciente passando por várias fases"
A iniciativa também realiza a certificação de Cidade Angel, no qual uma cidade precisa atender a alguns critérios, como ter um Centro de Referência de AVC, atendimento pré-hospitalar — como Samu e regulação — da cidade certificado, estratégia de educação nas escolas e caminho para a reabilitação do paciente no pós-alta.
“Significa ser uma cidade segura para um paciente com AVC”, resume. Segundo ela, Quixeramobim está no processo para obter a certificação de Cidade Angels, com “expectativa de conseguir esse ano”.
“O grande objetivo é aumentar o número de Cidades Angels. O hospital, muitas vezes, só pensa no paciente ali dentro. O objetivo é colocar todo mundo junto. O mesmo paciente passando por várias fases. Outro objetivo é alcançar as populações vulneráveis, como no Amazonas”, prospecta Kamila Fachola.
Para os dados de mortes por AVC no Ceará, utilizamos os registros da categoria I64 da Classificação Internacional de Doenças (CID), que diz respeito aos casos de acidente vascular cerebral não especificados como hemorrágico ou isquêmico. Os dados foram extraídos do Datasus.
A categoria foi escolhida de acordo com orientações da área técnica da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), que segue diretrizes da Coordenação-Geral de Vigilância de Doenças Não Transmissíveis (CGDNT), do Ministério da Saúde (MS).
Já para o número de internações, escolhemos os registros de três procedimentos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH): tratamento de acidente vascular cerebral isquêmico ou hemorrágico agudo; tratamento do acidente vascular cerebral isquêmico agudo com uso de trombolítico; e tratamento do acidente vascular cerebral isquêmico agudo com trombectomia mecânica.