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"Tempo é cérebro": reabilitação do AVC deve começar ainda no leito do hospital
Reportagem Seriada

"Tempo é cérebro": reabilitação do AVC deve começar ainda no leito do hospital

Neuroplasticidade nas primeiras horas precisa ser aproveitada. Ao sair do hospital, pacientes têm dificuldades para continuar tratamento necessário

"Tempo é cérebro": reabilitação do AVC deve começar ainda no leito do hospital

Neuroplasticidade nas primeiras horas precisa ser aproveitada. Ao sair do hospital, pacientes têm dificuldades para continuar tratamento necessário
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Um dos lemas de profissionais que trabalham com pacientes que passaram por um Acidente Vascular Cerebral (AVC) é a frase “tempo é cérebro”. Depois da rapidez do primeiro atendimento, que influencia diretamente na gravidade das sequelas, a reabilitação é o próximo passo que demanda urgência.

Nas primeiras 72 horas após o AVC, chamada de fase aguda, o paciente já deve começar a receber a atenção de uma equipe multidisciplinar, com fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicólogo. 

Ainda no leito do Hospital Regional do Sertão Central (HRSC), localizado em Quixeramobim, a reabilitação é iniciada. “Quanto mais cedo esse processo de reaprendizado, menores são as sequelas”, afirma o neurologista da unidade de AVC do HRSC, Vitor Abreu.

Hospital Regional do Sertão Central, referencia no tratamento de AVC, inicia reabilitação ainda no leito(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Hospital Regional do Sertão Central, referencia no tratamento de AVC, inicia reabilitação ainda no leito

Ele explica que a neuroplasticidade — a capacidade de adaptação do cérebro — é o que faz os neurônios aprenderem as funções daqueles que “morreram” devido ao AVC. “Quanto antes a reabilitação acontece, mais rápido e mais neurônios vão aprendendo. Se isso começa muito tardiamente, dificilmente aqueles neurônios vão aprender”, diz.

A neuroplasticidade também é menor em pessoas mais velhas. Apesar disso, Vitor afirma que não é “impossível” um idoso conseguir se recuperar totalmente de um acidente vascular.

Para iniciar, é determinado qual tipo de terapia será necessária. “Para identificar o nível de sequela, é preciso fazer vários testes para saber o que a pessoa consegue e não consegue realizar. Testes funcionais, como levar a mão à boca, escovar os dentes, pegar algo no chão”, relata Ramon Távora, coordenador do curso de fisioterapia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Uma das maneiras de avaliar isso é por meio da Escala de Rankin. Ramon explica que o paciente é avaliado em sete níveis, desde alguém sem sintomas, representado pelo zero, até o óbito, o último desfecho da escala representado pelo número 6.

O mecanismo de avaliação passa por diferentes condições de incapacidades e deficiências, como não conseguir realizar atividades diárias ou ficar acamado.

 

Escala de Rankin

A disfagia — dificuldade de engolir alimentos ou líquidos — também é um dos primeiros aspectos analisados.

“Antes da primeira dieta do paciente ser dada, a gente precisa da avaliação da fono, para fazer uma alimentação por via segura. Se ele está com uma disfagia importante, não vai seguir com dieta oral, e sim por sonda”, diz a coordenadora da enfermagem da unidade de AVC, Mara Cibelly Pinheiro.

Manipular o membro que está paralisado, colocar o paciente sentado e até incentivar que ele ande são alguns dos exercícios feitos de forma constante ainda no hospital. “Usamos também aparelhos como bicicleta e escada, já para que esse paciente comece a ser preparado para o domicílio e quem sabe até voltar ao trabalho”, relata Mara.

Hospital Regional do Sertão Central, referencia no tratamento de AVC, inicia reabilitação ainda no leito(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Hospital Regional do Sertão Central, referencia no tratamento de AVC, inicia reabilitação ainda no leito

“A gente sabe que a internação hospitalar é algo rápido. Só que a reabilitação neuromuscular desses pacientes é de longo prazo. Demora muito para ele se recuperar. Então, a gente tem um objetivo principal: tornar o paciente mais independente”, explica José Antônio Almeida Neto, fisioterapeuta da unidade de AVC do HRSC.

Ramon relata que as unidades especializadas em AVC, como a do HRSC, fazem grande diferença no tratamento imediato das sequelas.

“Antes, muitos ficavam com sequelas graves, nível 4 e 5 na Escala. Agora, além de sobreviver, muitos pacientes ficam com sequelas mais leves. A quantidade de pessoas que tiveram AVC e conseguem caminhar, passear e voltar a trabalhar é muito maior do que há 20 anos atrás”, diz

    

Videogame auxilia fisioterapeutas nos cuidados com pacientes pós-AVC em Quixeramobim

Osita Sousa da Silva, 75, teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) em outubro e precisou ficar internada no Hospital Regional do Sertão Central (HRSC). Para recuperar a força e a destreza na mão direita, a idosa utilizou um recurso inovador disponível no hospital: a gameterapia.

O fisioterapeuta da unidade de AVC do HRSC, José Antônio Almeida Neto, relata que, no início, dona Osita não queria nem tentar a gameterapia. Após a equipe explicar os benefícios do videogame e depois de algumas tentativas, José conta que ela não queria mais parar de jogar.

Osita Sousa da Silva, 75, utilizou a gameterapia no tratamento de AVC no Hospital Regional do Sertão Central(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Osita Sousa da Silva, 75, utilizou a gameterapia no tratamento de AVC no Hospital Regional do Sertão Central

O videogame escolhido para Osita simula um jogo de golf, onde a paciente precisa utilizar as duas mãos, como se fosse usar um taco, e mirar no alvo. Os sensores do videogame permitem que o corpo inteiro seja trabalhado enquanto o paciente joga.

Para cada dificuldade apresentada devido às sequelas, há um tipo de simulação recomendada e adaptada, como beach tennis, dardos ou surf. “A gente vê que eles ficam motivados a realizar essa terapia, é uma terapia boa e tem artigos que comprovam a eficácia desse trabalho”, afirma José.

Os pacientes devem ter um perfil específico, conforme o fisioterapeuta. Conseguir andar e ter um déficit de força em um membro superior são alguns dos critérios para realizar a gameterapia. 

   

Pacientes enfrentam dificuldade de acesso à reabilitação pós-alta

Apesar dos avanços no que se refere ao atendimento e às intervenções para casos de Acidente Vascular Cerebral (AVC), o acesso à reabilitação após sair do hospital ainda é uma dificuldade para os pacientes. A continuação do tratamento pós-alta é determinante para evitar sequelas graves.

“Se tem sequela na fala, precisa de fonoaudiólogo; se tem sequela visual, oftalmologista; se tem sequelas motoras, precisa ser atendido pelo fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, principalmente para restaurar as funções que ele perdeu”, explica o coordenador do curso de Fisioterapia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ramon Távora Viana.

“Não só aqui no Ceará, mas no Brasil a gente tem uma carência extremamente grande para reabilitação desses pacientes fora do ambiente hospitalar”, destaca Fabrício Lima, neurologista e chefe da unidade de AVC do Hospital Geral de Fortaleza (HGF).

Recuperação hospitalar e pós-alta são importantes para uma vida sem sequelas(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Recuperação hospitalar e pós-alta são importantes para uma vida sem sequelas

A oferta desse atendimento não é suficiente para suprir a demanda. Muitos pacientes acabam procurando reabilitação em serviços filantrópicos ou mesmo particulares.

Ele explica que os pacientes do HGF são acompanhados no ambulatório da unidade nos primeiros meses. Período que varia a depender da necessidade de cada caso. Normalmente, eles também são referenciados para reabilitação no Hospital Geral Dr. Waldemar Alcântara (HGWA).

O HGWA possui, inclusive, um Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD), que atende pacientes de Fortaleza, mesmo que não tenham passado pela internação na unidade. Atualmente, 88 dos 190 atendidos têm sequelas de AVC.

Ingrid Barros, geriatra do SAD do HGWA e especialista em cuidados paliativos, destaca que a reabilitação é capaz de melhorar muito a qualidade de vida do paciente e da família.

Reabilitação em casa é pouco acessível. Pacientes acabam ficando sem acompanhamento(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Reabilitação em casa é pouco acessível. Pacientes acabam ficando sem acompanhamento

O serviço é direcionado aos casos mais graves, de pacientes mais debilitados, como os acamados e os que utilizam sonda. São quatro equipes multiprofissionais que atendem, em média, 30 pacientes, cada.

“Realmente, é uma rede que ainda está se formando. O atendimento domiciliar ainda está engatinhando no Estado”, analisa, sobre a rede de acompanhamento domiciliar no Ceará.

Quando saem do hospital, os pacientes também devem continuar sendo acompanhados na Atenção Primária para reduzir as chances de outro AVC, principalmente quando associado a comorbidades como diabetes, hipertensão e colesterol alto.

Em Fortaleza, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou, por meio de nota, que oferta reabilitação e tratamento para pacientes com sequelas de doenças, incluindo os acometidos com AVC, em policlínicas e instituições contratualizadas, além do programa Melhor em Casa.

O POVO questionou quantos pacientes de AVC eram atendidos nos serviços da SMS, mas não obteve resposta.

Para pacientes que residem em áreas mais afastadas a dificuldade de continuar a reabilitação é ainda maior, relata Mara Cibelly Pinheiro, coordenadora da enfermagem da unidade de AVC do HRSC.

“Já têm dificuldade do profissional chegar lá e ainda mais dele (paciente) ir até o serviço. Os fisioterapeutas até ensinam aos familiares alguns exercícios que eles podem fazer”, contextualiza Mara Cibelly.

Mestre da Cultura João Pedro do Juazeiro trabalha com xilogravuras e sente dificuldade de fazê-las após o AVC(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Mestre da Cultura João Pedro do Juazeiro trabalha com xilogravuras e sente dificuldade de fazê-las após o AVC

João Pedro do Juazeiro vive essa realidade após o AVC em janeiro de 2024. Xilógrafo, cordelista e Mestre da Cultura do Ceará, ele convive com sequelas e não tem assistência contínua na recuperação.

“Não sinto quente nem frio, o lado direito não tenho controle. O corpo está totalmente desequilibrado. Somente a mente está intacta”, conta. No início, o artista foi acompanhado pela Rede Sarah, filantrópica especializada em reabilitação. No entanto, a reabilitação com profissionais já foi interrompida.

“A reabilitação está sendo em casa. A alma está nesse corpo para andar e tenho que me movimentar. Minha família e meus amigos brigam porque sou impossível e continuo trabalhando”, diz.

   

Sintomas depressivos são comuns pós-AVC

Além das sequelas físicas, a ocorrência de um AVC também deixa marcas na saúde mental dos pacientes. A técnica de enfermagem Analice Rodrigues teve um AVC aos 44. A reabilitação tem sido um período difícil. "Mexe muito com o emocional, né, com a sua rotina. A minha que era bem agitada e você paralisar assim da noite para o dia", compartilha.

Além de lidar com as sequelas, a dificuldade financeira após ficar sem trabalhar e de acesso ao tratamento preocupam. "O meu caso foi um estresse. Então, eu não poderia me estressar e nem me preocupar com nada, mas como você não se preocupar se a gente não tem uma renda financeira?”, relata.

Analice Rodrigues, 44, técnica de enfermagem, nota dificuldades para manter a saúde mental durante tratamento(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Analice Rodrigues, 44, técnica de enfermagem, nota dificuldades para manter a saúde mental durante tratamento

Analice ficou com sequelas no lado esquerdo do corpo e se locomove com cadeira de rodas. Com a fisioterapia, que ela faz na Rede Sarah, a técnica de enfermagem já conquista avanços nos movimentos.

O neurologista Octávio Marques Pontes Neto, chefe do Serviço de Neurologia Vascular e Emergências Neurológicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, explica que pessoas que tiveram AVC podem desenvolver doenças como depressão, que podem dificultar o tratamento do acidente vascular. “Tem uma base neuroquímica, o AVC altera o funcionamento do cérebro”, relaciona.

A psicóloga Milena Setúbal, residente do programa de Neurologia e Neurocirurgia de Alta Complexidade pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/HGF), afirma que as sequelas impactam a funcionalidade e autonomia que o paciente tinha antes do AVC. Alterações que afetam as relações familiares e a qualidade de vida do indivíduo.

A técnica de enfermagem Analice Rodrigues diz que a reabilitação mexe muito com o emocional(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR A técnica de enfermagem Analice Rodrigues diz que a reabilitação mexe muito com o emocional

“Artigos mais recentes falam que uma a cada três pessoas que sobreviveram ao AVC vão experimentar sintomas clinicamente significativos de depressão. O que significa que algumas pessoas vão desenvolver uma sintomatologia sugestiva de depressão. Isso é natural que aconteça ali nos primeiros 12 meses depois e vai diminuindo, progressivamente. Mas cerca de 30% dessas pessoas permanece”, explica.

Sem uma assistência hospitalar intensiva, as pessoas que ficam deprimidas tendem a apresentar uma significativa queda da recuperação funcional em comparação com as pessoas que não estão deprimidas.

“Ele (o paciente) não tem essa perspectiva de que vá melhorar. Tem muito essa relação com o sentido que ele encontra na vida. Entender que esse momento é um momento novo e que há muito para além da sequela”, afirma Milena Setúbal.

Como no caso de Analice, é comum que questões financeiras afetem de forma intensa a saúde mental. Pessoas que eram provedores da família e ficam sem condições de trabalhar — mesmo que temporariamente — suportam uma “carga emocional muito maior”.

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Série especial traz a pauta uma discussão sobre o Acidente Vascular Cerebral (AVC), uma das principais causas de morte e, sobretudo, de incapacidade em todo o mundo. Inimigo silencioso e desafiador, porém previsível e pode até ser combatido