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Sobre identidade e crescimento: a pré-história na vida cotidiana
Reportagem Seriada

Sobre identidade e crescimento: a pré-história na vida cotidiana

A divulgação da pré-história ajuda a definir o que significa ser do Cariri, além de promover desenvolvimento socioeconômico por meio do turismo
Episódio 3

Sobre identidade e crescimento: a pré-história na vida cotidiana

A divulgação da pré-história ajuda a definir o que significa ser do Cariri, além de promover desenvolvimento socioeconômico por meio do turismo
Episódio 3
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Irenice de Freitas Diniz brincou de boneca até os 15 anos de idade. Desde então, elas começaram a ficar desinteressantes quando comparadas às tertúlias no Crato (CE). Embaixo de uma árvore, radinho de pilha tocando as músicas mais românticas da época, a dança com os garotos instigava muito mais o coração adolescente dela.

Foi nessa brincadeira de tertúlia pra lá, tertúlia pra cá que Irenice conheceu o marido, Francisco Ferreira, ao som de Revelações, do cearense Fagner. Na época, a licenciada em Letras tinha 23 anos. Estava com três anos de moradora da pequena Nova Olinda, para onde mudou-se a fim de atuar como professora, em 1977.

Ela pode dizer, sim, que viu muito de Nova Olinda crescer. “É melhor ser o primeiro da vila que o último da cidade”, relembra as sábias palavras do pai, motivadoras para fazê-la sair do Crato e arranjar emprego a 40,8 quilômetros (km) de distância. E assim ela viu, em 1992, o surgimento da Fundação Casa Grande -Memorial do Homem Kariri (FCG).

Antes, dizia-se que o casarão do século XVII era assombrado. Crianças passavam correndo, com medo, e pelo menos alguns adultos apertavam o passo à noite quando cruzavam o local. Mas nos anos 90 os músicos Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde começaram a movimentar a casa com lendas e artefatos antigos. No dia 18 de dezembro de 1992, aniversário de Rosiane e Alemberg, a Fundação foi inaugurada.

 

 

Novamente, Irenice foi uma das primeiras. Foi quem teve a iniciativa de levar as turmas do ensino fundamental para assistir e discutir a filmes na Fundação, que tinha a estrutura, e também foi uma das primeiras mães que tiveram o prazer de ver os filhos se desenvolvendo no local.

Irenice de Freitas Diniz, aposentada e proprietária de pousada domiciliar.(Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Irenice de Freitas Diniz, aposentada e proprietária de pousada domiciliar.

Aos 65 anos, na sala de sua casa, a agora aposentada Irenice dividiu conosco algumas memórias. Ela lembra, por exemplo, do dia em que viu a filha Samara dar aula para as crianças da Fundação no pátio do casarão. Todos sentadinhos, em roda, ouvindo as explicações de Samara sobre as lendas do Cariri. “Foi uma coisa tão boa que eu senti que ia explodir [de orgulho]”, ri. Aliás, ela até correu para chamar o marido e garantir que ele presenciasse o momento também.

Na Fundação, são as crianças que produzem conteúdo e repassam histórias. Elas participam da rádio e da televisão comunitárias, da confecção de quadrinhos e até do Memorial do Homem Kariri, como guias. O Instituto de Arqueologia da fundação também já as levou para escavações, e as ensinou um pouco sobre arqueologia para que conheçam a própria história e tenham capacidade de divulgá-la para os turistas.

Além da filha, hoje formada em Letras com mestrado em Minas Gerais, Irenice também viu o filho Samuel descobrir a paixão pela música no local. Com a banda de lata, ele, os coleguinhas e Alemberg chegaram a fazer turnê na Europa. Samuel cresceu e virou um fotógrafo profissional, ofício também aprendido no casarão.

São transformações do tipo que inspiram o episódio de hoje: um museu de cada vez.

 

 

As pessoas por trás da histórias

 

Um pouco mais sobre Nova Olinda

De todo o Cariri, dois municípios se destacam considerando museus: Nova Olinda, com a FCG e o estudo da arqueologia; e Santana do Cariri, com o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN). É claro que outras cidades da região têm espaços científicos, culturais e de memória, mas essas duas, no Centro Oeste do Cariri, definitivamente são paradas obrigatórias.

Ambas as instituições são jovens. A Fundação Casa Grande completa 30 anos em dezembro deste ano, enquanto o Museu de Paleontologia tem 37 (fundado em 1985).

Como já apresentamos Irenice, que tal seguir nossa história em Nova Olinda? De acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do município em 2021 deve ter alcançado 15.798 pessoas. Visitamos a cidade no começo de março, em um dia chuvoso em Juazeiro do Norte, mas bem ensolarado subindo a serra.

 

Algo que ainda não contei sobre Irenice é que agora ela gerencia uma pousada familiar dentro de sua própria casa. O sistema de pousadas familiares começou quando a população de Nova Olinda passou a receber turistas, tanto romeiros, quanto pesquisadores e interessados nos aspectos científicos da região.

Como a cidade não tinha hotéis, esses viajantes começaram a se hospedar nas “casas dos meninos da Casa Grande”. Foi então que houve uma proposta de criar as pousadas familiares, na qual as famílias da Fundação poderiam se beneficiar economicamente do turismo crescente. “Com a pandemia, teve algumas desistências”, lamenta Irenice. “Mas antes tinha umas 10 a 12 pousadas”, afirma.

Elas entram no programa de geração de renda familiar da Fundação, que estimula os pais a terem pousadas, restaurantes e agências de viagens em Nova Olinda. “Tem na Casa Grande um local que indica as pousadas familiares. Tudo é para servir a cidade”, explica a aposentada. Nesse esquema, Irenice já recebeu muitos estrangeiros do hemisfério norte. Um deles o franco-canadense Michel Régnier, que em 2004 publicou o livro O fóssil (Le fossile, em francês, pela editora Éditions Pierre Tisseyre), inspirado no Cariri pré-histórico e mitológico.

Mas não é preciso cruzar mares para falar de visitantes afetados pelo Cariri. A escritora premiada com o Jabuti 2013 "Primeiro lugar na categoria Infantil, com o livro "Ela tem olhos de céu", da Editora Gaivota" e jornalista Socorro Acioli também escreveu sobre a região. O livro juvenil ilustrado O Peixinho de Pedra, da Editora Demócrito Rocha, nasceu da experiência de Acioli como professora na FCG e como testemunha das meninas e meninos do casarão. Uma dessas crianças foi Samara, filha de Irenice, inspiração para uma das personagens do livro.

 

 

Próxima parada: o turismo de Santana do Cariri

A 13 km de Nova Olinda, chegamos a Santana do Cariri. É fácil identificar as duas marcas do município de 17.726 pessoas "Estimativa do IBGE para 2021" : a imagem da beata Menina Benigna na entrada e a enorme escultura de dinossauro na praça central.

Perto do dinossauro (no Diário de Bordo 9/3 tem umas curiosidades sobre ele!), está o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens. Pintado em um laranja barroso forte, com pegadas de dinossauro desenhadas na calçada, a instituição também trabalha com o esquema de guias mirins. Um deles é Francisco José da Silva Júnior ― ou só Júnior, mesmo ― de 14 anos, que nos recebeu e nos guiou pelo acervo.

 

 

Além dele, outros nove estudantes de Santana do Cariri atuam no contraturno escolar como guias do Museu, recebendo uma bolsa de 200 reais. Eles passam por uma seleção e, após serem aprovados, estudam por um mês sobre a paleontologia local e a coleção fóssil. Na guiança de 30 minutos a uma hora, Júnior nos mostrou troncos fósseis, insetos enormes (algumas libélulas no período Carbonífero atingiam 75 centímetros de comprimento!), peixes pequenos e grandes (alguns comendo outros peixes) e pterossauros.

Júnior nos contou que, a princípio, achava que seria incapaz de aprender tudo para ser guia e quase não tentou a seleção. Mas com sete meses de atuação, podemos dizer que ele já estava arrasando nas curiosidades e informações; claro, sempre com um monitor acompanhando mais de longe, para tirar quaisquer dúvidas um pouco mais específicas.

Erick Lima, guia de turismo, empresário e estudante.(Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Erick Lima, guia de turismo, empresário e estudante.

"O sonho de toda criança de Santana é ser guia do museu", conta Erick Lima, 23, ex-guia mirim do MPPCN e atual guia de turismo. "É como um plano de carreiras", explica. Isso porque, de todos os colegas que guiaram, a maioria se formou ou ainda está cursando a faculdade. Nem todos, é claro, foram para carreiras focadas no turismo ou na ciência. Mas encontraram perspectiva de vida ao estagiarem no museu, garante.

Além de guia de turismo e estudante de Economia na Universidade Regional do Cariri (Urca), Erick também é dono da empresa de recepção turística SC. Segundo ele, Santana é o pilar principal do Cariri, pois consegue agregar turismo religioso, de aventura, paleontológico e arqueológico em uma mesma cidade. Em 2019, por exemplo, a empresa recebeu quase 2 mil visitantes.

 

Mesmo assim, o turismo ainda não é a principal fonte de renda do município. Um dos fatores é a falta de estrutura da cidade, que agora está começando a trabalhar com algumas pousadas familiares e até uma dentro do próprio Museu de Paleontologia. Para além do museu, há outras vias potenciais para o turismo: as romarias, o Vale do Buriti, a Euroville e o Pontal (segundo ponto mais visitado no Cariri além da estátua de Padre Cícero, em Juazeiro), por exemplo.

Mesmo com tantas opções, Erick analisa que a população de Santana do Cariri ainda desconhece o próprio patrimônio, e, portanto, a possibilidade de desenvolvimento por meio dele. "Durante seus 30 anos, o museu teve um papel fundamental em fazer o santanense se reconhecer e se identificar com o patrimônio", comenta. Mas ainda é preciso divulgar mais, expandir os conhecimentos para a população.

Érica Magalhães e Espedito Sousa, empresários.(Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Érica Magalhães e Espedito Sousa, empresários.

Os empresários Érica Magalhães, 39, e Espedito Sousa, 52, também percebem uma certa resistência do povo de Santana para assumir a veia artesã e pré-histórica da região. De acordo com Espedito, os moradores de Santana ainda têm muita vergonha do artesanato, da imagem do barro, do tradicional. "As pessoas de longe querem ver a cultura nossa, tradicional. E as pessoas [de Santana] têm vergonha disso", lamenta Espedito.

O casal é dono da loja Dino Artes Mimos, que surgiu com o objetivo de conquistar turistas e o público santanense, vendendo dinossauros de feltros Até 2019, nenhuma loja do município tinha se apropriado da base paleontológica da cidade. Hoje, vendem também bolsas personalizadas. "Nós tínhamos que montar uma loja que tivesse tudo a ver com dinossauros. Nosso portfólio é artesanal!”, comenta Érica. “E eu tenho orgulho de ser do Cariri. Antes, quando eu era mais nova, eu tinha o hábito de dizer que eu morava no fim do mundo. Mas a nossa Santana é privilegiada: é onde tudo começou. Na verdade, eu moro no começo do mundo", orgulha-se.

Praça em frente ao Museu de Paleontologia, em Santana do Cariri. No meio, a escultura de um dinossauro. No canto inferior direito, um tronco fóssil de seis metros e cinco toneladas.(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Praça em frente ao Museu de Paleontologia, em Santana do Cariri. No meio, a escultura de um dinossauro. No canto inferior direito, um tronco fóssil de seis metros e cinco toneladas.

 

 

Geopark Araripe: articulador do desenvolvimento na Chapada do Araripe

Reconhecido pela Unesco em 2006 como integrante da Rede Global de Geoparques (GGN), o Geopark Araripe é o primeiro do tipo das Américas e, por enquanto, o único do Brasil. Como entidade, é responsável pela conservação do patrimônio da Chapada do Araripe, pela educação ambiental das comunidades em volta e, ainda, pela articulação de projetos focados no desenvolvimento sustentável da região.

Para entender um pouco mais sobre a atuação do geoparque, conversamos com a coordenadora de Desenvolvimento Sustentável Territorial e Geoturismo, Jeanne Sidrim. Clique nos botões de play para ouvir a entrevista:

 

Uma semana para o Cariri é pouco

Dos dias 7 a 11 de março, a reportagem do O POVO Mais esteve no Cariri para produzir o especial Cariri Pré-Histórico. Os viajantes foram o motorista Francisco Aurélio, a produtora Luana Sampaio, o repórter fotográfico Aurélio Alves e a repórter Catalina Leite. Que tal conhecer a rota da viagem no mapa abaixo e, descendo um pouco mais a página, acessar os diários de bordo da produção?

Expediente

  • Edição O POVO Mais Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Texto Catalina Leite
  • Identidade Visual Isac Bernardo
  • Recursos Digitais Catalina Leite
  • Fotografias Aurélio Alves
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