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A história de uma colônia do Piauí em pleno território cearense
Reportagem Seriada

A história de uma colônia do Piauí em pleno território cearense

Em meio à briga entre Ceará e Piauí, uma comunidade de autodeclarados piauienses se formou em terras do Ceará, no município de Ipueiras, localizado na área de litígio
Episódio 2

A história de uma colônia do Piauí em pleno território cearense

Em meio à briga entre Ceará e Piauí, uma comunidade de autodeclarados piauienses se formou em terras do Ceará, no município de Ipueiras, localizado na área de litígio
Episódio 2
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De longe, mal se vê a Tapera dos Vital. Dá trabalho encontrar o povoado no mapa. De carro, são alguns quilômetros de estradinha serpenteando por dentro de Ipueiras, município a quase quatro horas de viagem de Fortaleza e um dos 13 que se empoleiram na corcova da Serra da Ibiapaba.

Mas o distrito existe. Está fincado na divisa entre Ceará e Piauí, no miolo da área de litígio entre os dois estados, que duelam na Justiça pela primazia da posse de 3 mil km² de terra, quase 300 escolas e 200 postos de saúde espalhados no curso da geografia serrana.


 

Ao menos no papel, a Tapera dos Vital ainda é patrimônio cearense – mas só ali mesmo. Uma vez chegando lá depois de atravessar muito caminho acidentado, já abeirando chão piauiense, nenhuma das 75 famílias da região reconhece essa pertença com o lado de cá da linha que demarca os limites entre as unidades da federação.

A toda gente do lugarejo que se pergunte se vive como cearense ou piauiense, dirão sem pigarreio ou embargo na voz: são do estado vizinho. Para eles, a comunidade encravada numa encruzilhada já é Piauí, mesmo sendo Ceará – ou ainda é do Ceará, embora já se integre, na prática, ao Piauí.

Naquele fim de manhã quente em dezembro passado, Genivaldo Ribeiro Barros se abanava na entrada avarandada de casa enquanto os meninos jogavam bola no terreiro, os pés descalços a despeito da fervura do solo crestado.

O distrito de Tapera dos Vital está fincado na divisa entre Ceará e Piauí, no miolo da área de litígio entre os dois estados, que duelam na Justiça pela primazia da posse de 3 mil km² de terra(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES O distrito de Tapera dos Vital está fincado na divisa entre Ceará e Piauí, no miolo da área de litígio entre os dois estados, que duelam na Justiça pela primazia da posse de 3 mil km² de terra

Aos 52 anos, o líder comunitário está habituado a instruir quem passa por lá em busca do rumo de Pedro II, cidade piauiense mais próxima (44 km), ou de volta a Ipueiras (mais de 100 km), municipalidade de travessia mais penosa e demorada por causa das condições da trafegabilidade.

À frente da associação que representa os habitantes do assentamento “Nova Terra”, Genivaldo não tem dúvida: é piauiense de nascença e de morada, já que a casa fora erguida sob administração desse Estado e assim permanece até hoje, segundo seus cálculos e entendimento firmado no tempo, desde a chegada das primeiras levas de retirantes, fugidos da seca de 1915 e ali apeados para beber da água do poço que ainda existe.

“Eu me sinto piauiense porque todas as nossas coisas são conseguidas através do Piauí. Escola, posto de saúde, tudo. Eu voto no Piauí e torço pros times do Piauí”, explica, depois de vacilar quando quis saber se preferia Ceará ou Fortaleza. “Mas os documentos da terra”, continua, “é que são de Ipueiras”.

Genivaldo Ribeiro Barros é líder comunitário da comunidade da Tapera dos Vital e representa os habitantes do assentamento (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Genivaldo Ribeiro Barros é líder comunitário da comunidade da Tapera dos Vital e representa os habitantes do assentamento

Eis o impasse instalado. Legalmente, então, a Tapera dos Vital é parte da região contestada, mas segue como território cearense na disputa que opõe os dois governos. No dia a dia, contudo, a área já é ocupada pelo Piauí, que assiste os moradores no que diz respeito à educação e à saúde, além do transporte e de outros serviços básicos, conforme afiança Genivaldo, que vocaliza esse desejo coletivo.

É uma colônia de “piauizeiros” em pleno Ceará, como se diz, uma frente avançada que, além daquele pedaço, está de olho também em outras porções da cartografia local, abrangendo percentuais que vão dos 13% da extensão de Ubajara até a gorda fatia dos 66% de Poranga – quase dois terços.

No caso de Ipueiras, a mordida espacial do Piauí é intermediária: 19,2% de seu desenho, o que inclui o enclave que Genivaldo e outras famílias já adotaram como piauienses por identificação, coração e necessidade.

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"Somos do Piauí"

“Não tem nada do Ceará aqui, nenhum benefício. Até os agentes de saúde é tudo daqui. Eu voto pra governador do Piauí e pra prefeito de Pedro II. Nunca dei voto pra político do Ceará”, enfatiza, como se o destino da obrigação eleitoral dissolvesse qualquer dúvida que eventualmente prosperasse se acaso lhe pedissem para escolher um vitorioso na arenga jurídica que se estabeleceu secularmente, ganhando novo capítulo a partir de 2011.

“A vida depende muito de Pedro II e muito pouco do Ceará. Nessa disputa, com certeza estou torcendo pelo Piauí porque está bem perto de nós”, arbitra.

Em seguida, no entanto, puxa pela memória e lembra de uma época em que, mesmo com vínculos reconhecidamente estreitados com o Piauí, havia no fundo uma nesga de hesitação sobre a origem dos membros da Tapera, se de fato eram mais para cearenses ou piauienses.

Genilvaldo Ribeiro Barros é uma espécie de guia para quem trafega pela área da Tapera dos Vital(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Genilvaldo Ribeiro Barros é uma espécie de guia para quem trafega pela área da Tapera dos Vital

“Aqui no passado era uma terra de ninguém, ninguém sabia se era do Piauí ou do Ceará. Nós somos de onde mesmo?”, perguntava-se Genivaldo, sem amparo da segurança de que a ligação umbilical da comunidade fosse com um ou com outro. Estavam no meio, num vazio de lei e de governos, negligenciados de parte a parte.

Mas isso ficou para trás: “Agora temos mais ou menos a visão. Somos do Piauí. Se ficarmos com eles, ajuda. A comunidade está mais identificada com esse estado”.

 

 

Área no Ceará é disputada por Carnaubal, Guaraciaba do Norte e Piauí

Região do município na Serra da Ibiapaba é concorrida. Além do Piauí, área de Carnaubal também é alvo de investida de Guaraciaba, segundo moradores

O cenário não é de guerra, mas o ânimo ali é beligerante. Como dois soldados que se preparassem para a batalha, Raimundo e Cícero conversam no bar no meio de uma estradinha de terra em Carnaubal, no interior cearense.

A região é duplamente conflagrada. Situada numa espécie de tríplice fronteira, faz divisa com Guaraciaba do Norte e Pedro II, no Piauí. Por onde o olhar se estende, há plantação de feijão e muito torrão avulso, num estirão que se perde no firmamento. Mas Raimundo assegura: “A terra é disputada”.

Carnaubal é área de concorrida disputa, pelo Piauí e por Guaraciaba (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Carnaubal é área de concorrida disputa, pelo Piauí e por Guaraciaba

Aos 59 anos, pai de sete filhos e nascido daquele pedaço de chão, Raimundo Antônio combate em duas frentes. Numa delas, peleja com um adversário doméstico. “Aqui é Carnaubal, mas Guaraciaba quer tomar, e isso não pode acontecer”, finca pé, decidido a preservar a integridade do seu território natal como quem zela pela própria casa.

Noutra zona de litigância, acusa o Piauí de pretender anexar uma fração do mapa de Carnaubal, justamente aquela onde ele havia fixado residência e vivia desde então, criando a filharada com a renda obtida com o bar de beira de estrada.

A hipótese de passar ao estado vizinho, no entanto, lhe provoca uma comichão. Do lado de dentro do batente, a voz levemente engrolada, ratifica o desejo. “Quero ficar no Ceará. Moro aqui, nasci aqui, não quero sair. Onde já se viu mudar a esta altura da vida?”, questiona.

A indagação cala fundo no amigo, o vendedor Cícero Ribeiro dos Santos, 49. Natural de Croatá, o cearense estava de passagem, mas se interessara pelo assunto e resolvera ficar. Afinal de contas, já cumprira com parte das obrigações da jornada. Vinha de um distrito próximo, onde tinha abastecido o comércio local de peixe e frango antes de ganhar o mundo de novo em cima da moto. 

Nem era meio-dia, e agora estava abancado ao lado de Raimundo. A expressão era de genuína preocupação. “Faz tempo que tem essa briga, mas essas terras sempre foram daqui”, Cícero deixa escapar, acrescentando que se trata de uma área concorrida, “até Guaraciaba quer”. 

 

Não se sabe se em tom de brincadeira, de repente vislumbra uma possibilidade que não interessa a ninguém: a de conflito aberto, como esses tantos que ele pesca às vezes na internet ou escutando o rádio no fim da tarde, estirado na rede.

“Se tiver guerra, é fácil de resolver”, diz pensativo a Raimundo, antevendo talvez as falanges de parte a parte se batendo umas contra as outras por aquele recorte precioso de Carnaubal. Cícero leva a sério a imagem.

“A terra aqui dá mais coisa, é mais fácil, tem mais riqueza, é tomate, é todo tipo de legume. Lá no Piauí é mais seco, as terras são assim queimadas, não ajudam”, inventaria as motivações para o estado querelante estar de olho nessas localidades da Serra Grande.

E Guaraciaba? Sobre isso, Cícero admite não ter tanta informação. Mas sustenta que o município também nutre secretamente essa vocação expansiva que os piauienses vêm demonstrando ao mirar na geografia da Ibiapaba.

 

 

"É tudo Carnaubal"

Longe uns bons quilômetros dali, mas ainda em Carnaubal, Manuel Vieira, 80 anos, assiste a essa escalada bélica sentado numa cadeira de balanço no alpendre de casa, de frente para uma árvore frondosa cuja copa havia acabado de florir, produzindo um espetáculo de cores.

Já experiente, as mãos com sulcos talhados pela lida com plantação e bicho desde menino, Manuel confirma os rumores em torno da queda de braço entre as duas cidades cearenses. Ele, contudo, garante conhecer exatamente onde começa um e termina o outro.

“Aqui o povo diz que é Guaraciaba, mas é tudo Carnaubal”, relata, complementando que “todo mundo concorda que é melhor continuar no Ceará, de qualquer maneira”.

Manuel Vieira, 80 anos, morador de Carnaubal, diz que é melhor continuar no Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Manuel Vieira, 80 anos, morador de Carnaubal, diz que é melhor continuar no Ceará

Na sequência, conta que há uma casa mais à frente, a última daquele vilarejo, onde essas divisas estão totalmente borradas, e nela não se pode ter certeza se se está no Ceará ou já no Piauí. “Diz que a sala é no Carnaubal e a cozinha é em Pedro II”, narra o agricultor, o olhar espichado para a árvore.

A equipe do O POVO foi até a dita casa, que de fato era a derradeira do povoado, num universo limítrofe. Depois de umas batidas na porta sem que alguém aparecesse, todavia, a reportagem resolveu se contentar com a história de Manuel e de outros moradores, que repetiam o causo.

No município de Carnaubal está localizada uma casa que fica bem no meio da divisa entre os estados do Ceará e Piauí, metade da casa em cada estado(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES No município de Carnaubal está localizada uma casa que fica bem no meio da divisa entre os estados do Ceará e Piauí, metade da casa em cada estado


 

Comunidade quilombola está na área de litígio entre Ceará e Piauí

Izidio Alves dos Santos e Maria Ivanira do Nascimento, 86 e 73 anos, moradores do quilombo Três Irmãos(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Izidio Alves dos Santos e Maria Ivanira do Nascimento, 86 e 73 anos, moradores do quilombo Três Irmãos

A pouco mais de 300 km de Fortaleza, o município de Croatá tem 32% do seu território situado na zona de disputa entre o Ceará e o Piauí. Uma porção dessa terra abrange a comunidade quilombola Três Irmãos, que congrega hoje 75 pessoas distribuídas em 19 famílias.

Uma delas é a de Antoniza Mateus dos Santos, 50, presidente da Associação Comunitária Remanescente Quilombo Três Irmãos, onde se localiza a primeira escola quilombola do estado, batizada de Luzia Maria da Conceição.

Antoniza Mateus dos Santos, 50, presidente da Associação Comunitária Remanescente Quilombo Três Irmãos, na área de litígio entre Piauí e Ceará(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Antoniza Mateus dos Santos, 50, presidente da Associação Comunitária Remanescente Quilombo Três Irmãos, na área de litígio entre Piauí e Ceará

Agente de saúde já há quase três décadas, Antoniza se mostra preocupada ante a perspectiva de que parte da região de solo cearense passe para administração do governo do Piauí.

"A gente é uma comunidade quilombola que vem de uma descendência e de uma ancestralidade de muitos anos. Hoje aqui a comunidade está na sexta geração, desde que a gente nasceu e desde os ancestrais sempre fomos cearenses e não vamos deixar de ser cearenses", defende.

Segundo ela, os "bisavós sempre conheceram esse território como do Ceará, sempre foi e vai continuar no Ceará".

Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição. Quilombo Três Irmãos. Área de Litígio entre Ceará e Piauí(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição. Quilombo Três Irmãos. Área de Litígio entre Ceará e Piauí

Professor na escola local, Diógenes de Melo Filho afirma que, caso o estado vizinho acabe por vencer a briga judicial que vem travando na Justiça, a comunidade perderia apoio e sua sobrevivência estaria ameaçada. Não à toa, o grupo demandou ao Supremo Tribunal Federal (STF) entrar como parte interessada na ação do litígio.

"Familiares da minha mãe são do Piauí, mas não tenho esse desejo. A gente vê as dificuldades que nossos primos enfrentam. No Ceará, tanto na educação quanto na saúde, a assistência é muito melhor", avalia o docente, que "não é favorável a mexer com essa situação".

"Já existe um acordo, áreas, limites. Geograficamente tem demarcações. Essa escola é um peso pra isso. Quanto à construção de identidade, como é que vai ser discutido? Não tem como reparar uma situação dessas, não tem lógica", critica.

 

 

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