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As tramas que surgem do bordado, crochê e tricô
Reportagem Seriada

As tramas que surgem do bordado, crochê e tricô

Mais importante do que falar de técnicas e estilos, se debruçar sobre a linha é também contar um pouco sobre pessoas que podem estar em Fortaleza, em Jericoacoara ou mesmo extremo oposto das Américas. O POVO começa a desenrolar nesta reportagem o novelo dessas narrativas entrelaçadas a lugares
Episódio 1

As tramas que surgem do bordado, crochê e tricô

Mais importante do que falar de técnicas e estilos, se debruçar sobre a linha é também contar um pouco sobre pessoas que podem estar em Fortaleza, em Jericoacoara ou mesmo extremo oposto das Américas. O POVO começa a desenrolar nesta reportagem o novelo dessas narrativas entrelaçadas a lugares
Episódio 1
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A linha é, por si só, muito democrática, e acolhe em sua lógica de pontos até quem diz não ter jeito para a coisa. Ela consegue envolver nos seus macios novelos tanto os novatos quanto os já praticantes, assim como os de nível master em outras artes manuais. Mulheres, homens, crianças e jovens, todos como se encantados e transformados em delicadas aranhas humanas. Seguindo esse delicado rastro, traçamos uma linha imaginária e percorremos o circuito dos bordadeiros, crocheteiros e afins — gente que mexe na linha como forma de sustento, terapia, arte ou quem sabe, tudo junto. 

 

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Bairro de Fátima. Lição do primeiro ponto: aprender a bordar só

Escolha tecido, linha e agulha. Algumas ferramentas e suprimentos também serão necessários, como um bastidor, que é uma espécie de arco feito de madeira para prender o tecido no ponto onde o bordado vai surgir, e um stencil para transferir o desenho desejado. Está com um dinheiro a mais? Então compre uns dedais para preservar a pele dos dedos e também adquira uns passadores de linha, úteis para manter a paciência quando o buraco da agulha teimar em dançar bem diante dos seus olhos.

Ah, você prefere o tricô ou o crochê ao trabalho do bordado? Prepare também os seus materiais, já que quase tudo nesta vida e que demanda um certo esforço começa com um bom planejamento — bem, pelo menos deveria ser assim. Só depois dessa organização toda é que a mente fica livre de verdade para viajar nos desenhos e modelos. Saiba que a execução de uma peça sempre vai ser uma mistura agridoce de método e relaxamento, e o resultado vai ser o que a habilidade das suas mãos conseguir entregar.


Marlenice é autodidata e começou a fazer bordados na pandemia(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Marlenice é autodidata e começou a fazer bordados na pandemia

 

Marlenice Martins, a Nicinha (@nicinha.comamor), aprendeu a bordar assim, sozinha, seguindo instruções tiradas da internet e pensando em como o bordar parece com o viver. Ela trabalha no setor administrativo da Enel, a multinacional distribuidora de energia elétrica no estado, mas para esta reportagem, ela prefere ser apresentada como bordadeira. Ainda que o hobby tenha começado há poucos anos e o tempo disponível seja apenas os finais de semana e feriados, ela já tem uma clientela engajada e, de sua casa no Bairro de Fátima, ela segue fazendo as peças. Mas de onde surgiu o dom que a fez aprender em tão pouco tempo a fazer algo que pode ser difícil de executar, ainda que com instruções detalhadas?

“Descobri meu dom na pandemia. Minha filha encomendou um daqueles trabalhos feitos em bastidor e que são colocados na porta de entrada de casa. A encomenda chegou no meu endereço e, quando eu abri, me veio logo uma memória afetiva. Lembrei de algo que estava bem esquecido no meu consciente, que era minha mãe me ensinando a bordar. Eu era muito pequena e ela não me deixava pegar na agulha, só olhar”, lembra. Como Nicinha tinha um bastidor e agulhas em casa, decidiu começar a bordar. Os delicados pingentes ela encara como um “desafio gostoso”, e assim nascem árvores e animais de estimação feitos à linha.

“A pandemia foi um período muito difícil pois perdi um jovem sobrinho para a Covid. Também fiquei isolada, assim como boa parte das pessoas, e não pude ter contato com meus colegas. No meio disso tudo, foi no bordado onde encontrei alento. O tempo que passo bordando é uma terapia, inclusive gostaria de viver só disso. Infelizmente essa arte não é valorizada aqui no Ceará, no sentido do reconhecimento do trabalho do artista e valores pagos pelas peças”, pontua.

Marlenice (Nicinha), bordadeira, faz bordados como hobby desde a pandemia(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Marlenice (Nicinha), bordadeira, faz bordados como hobby desde a pandemia

Bordadeira iniciante do estilo livre (sem a acuidade do ponto de cruz, por exemplo), Marlenice lembra de um dos primeiros trabalhos: a reprodução da foto do perfil de uma amiga, um ipê amarelo de copa majestosa. “Gosto muito dele, teve um grau de dificuldade grande, pois usei o ponto francês, que é ponto pequenino, e tinha muitos detalhes”, descreve. Ela gostou tanto do resultado que a amiga ficou até hoje sem receber o presente.

 

 

Jericoacoara: Quando o crochê é renda

Um dos polos do artesanato cearense na manufatura de crochês, rendas e bordados, o município de Jijoca de Jericoacoara, no Litoral Oeste, tem muitas localidades que se dedicam à produção de peças como saídas de praia, vestidos, blusas e saias, vendidos em lojinhas nas sedes das vilas e, muitas vezes, também oferecidos nas barracas de uma das praias mais badaladas do estado. Janiele da Silva trabalha ao lado da irmã Jeiciele na Associacao das Crocheteiras Mundo Jeri, mas foi a mãe delas, a dona Edilsa, que lutou para organizar as mulheres em prol da valorização do trabalho delas.


Janiele e Edilsa da Silva estão à frente da Mundo Jeri, a Associação das Crocheteiras de Jericoacoara(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Janiele e Edilsa da Silva estão à frente da Mundo Jeri, a Associação das Crocheteiras de Jericoacoara

“Iniciamos o trabalho com o crochê quando Jeri ainda era um serrote e as mulheres vendiam cebola e colorau para sobreviver. Depois as donas das pousadas começaram a pedir colchas para as camas, que eram compradas por apenas R$ 15, sendo que era um trabalho que levava um mês inteiro para fazer. Quando as mulheres iam até as pousadas para entregar o serviço, os turistas viam a qualidade e se interessavam em comprar o que elas tivessem em casa pronto. Foi o que fez ‘cair a ficha’ das mulheres, de que o trabalho delas poderia ser mais valorizado”, lembra Janiele.

Junto com a fama de Jeri para o turismo e o aumento no fluxo de viajantes, veio a independência financeira das mulheres do crochê. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Ceará (Sebrae-CE) ajudou a montar a associação (@mundojeri_crochet) juntamente com a prefeitura, e o trabalho então passou a ser de convencimento. “É que os maridos não queriam deixar as mulheres saírem de casa para fazer os cursos de aprimoramento. Muitas desistiram mas a maioria continuou. Minha mãe foi atrás de várias, batendo de porta em porta. O crochê é mais do que a questão do dinheiro, é a tradição de cada família que trabalha a linha. Hoje inclusive temos homens trabalhando com o crochê. Eu sempre falo para os clientes: ‘olha, você está levando bem mais do que uma peça, é uma história. Nessa peça cabe uma lágrima, um riso ou uma preocupação. Cuide com carinho dela!”, diz, orgulhosa.

As mulheres que fazem tricô e crochê em Jericoacoara se associaram para obter melhores rendimentos (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal As mulheres que fazem tricô e crochê em Jericoacoara se associaram para obter melhores rendimentos

 

 

Benfica: Quem lê um conto, borda um ponto

 

“Quase todo mundo conhece uma avó ou uma tia que bordava. Faz parte da nossa história”, resume Neuma Barreto Cavalcante, professora da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Iluminuras Literatura e Bordado (@iluminurasbordado). O projeto começou em 2014, ilustrando contos do escritor cearense Moreira Campos, homenageado da Bienal do Livro daquele ano. Como a apresentação fez sucesso, a professora foi convidada a transformá-la em curso de extensão da universidade.

“Independentemente de idade, escolaridade e gênero, qualquer um pode participar, tem só que estar interessado e gostar de ler. Se não souber bordar, aprende, não é um critério para ser aceito. Tinha gente que não sabia nem enfiar a linha na agulha! Eu costumava dizer: ‘eu mesmo, que sou a professora, não sei bordar. Então você não precisa se envergonhar por não saber’”, lembra, rindo. “O objetivo do projeto é tomar o gosto pela leitura crítica, além de juntar as paixões pela literatura e pelo bordado”, completa.

No Iluminuras, os matriculados estudam o livro inteiro, não só trechos. Capítulo por capítulo, os alunos fazem a leitura e dão seminários, além de ouvir os estudiosos da obra em palestras. Em vez de apresentar o trabalho final em texto, a tarefa consiste em mostrar o bordado para a turma. “Não é uma transcrição do livro e sim, quais emoções surgiram na leitura, destaca Neuma. Os trabalhos depois são apresentados em colégios, centros culturais e oficinas. Nove obras já foram estudadas, como o Quinze, de Rachel de Queiroz, e Iracema, de José de Alencar. Os encontros ainda estão sendo online e a turma deste ano já está formada — desta vez, com alunos de várias partes do Brasil.

Neuma Cavalcante é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do projeto Iluminuras que une bordado à literatura(Foto: CAMILA DE ALMEIDA)
Foto: CAMILA DE ALMEIDA Neuma Cavalcante é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do projeto Iluminuras que une bordado à literatura

 

 


Lethbridge - Canadá: Crochet in foreign lands (O crochê em terras estrangeiras)

A artista canadense Shanell Papp (@s.b.papp) começou a gostar de costura, tricô e crochê ainda na infância, quando passava tardes inteiras com a avó, que administrava uma loja de antiguidades. “Mexer com têxteis virou meio que uma obsessão ao longo da minha vida. Já criei estamparia e em casa tenho máquinas de tricotar, de fazer tapetes, para trabalhar com cabelos humanos, feltros, macramé…eu simplesmente adoro o processo de aprendizagem”, diz, entusiasmada, em entrevista ao O POVO.

O projeto do corpo humano começou quando a artista, que mora em Lethbridge, no Canadá, passou a fazer pesquisas constantes sobre medicina e anatomia. Uma das obras mais famosas é O Esqueleto Anatômico. “Ele levou cerca de 3 a 4 meses para ser feito e os órgãos, outros 3 a 4 meses. Fui fazendo e refazendo o tempo todo. Troquei peças ao longo dos anos, pois achei que a primeira versão do crânio não ficou muito boa, e experimentei colocar os olhos, mas eles ficaram estranhos e não se encaixavam no trabalho”, relata.

A crocheteira canadense Shanell Papp trabalha com diversos tipos de materiais e gosta de temas góticos(Foto: Acervo pessoal / Reprodução Instagram)
Foto: Acervo pessoal / Reprodução Instagram A crocheteira canadense Shanell Papp trabalha com diversos tipos de materiais e gosta de temas góticos

Questionada sobre qual seria a sua peça favorita, Shanell responde que é sempre a que ela está trabalhando atualmente. “Agora estou construindo um ossuário em tamanho real. Espero fazer ossos de crochê em tamanho natural suficientes para encher uma sala, como um ossuário europeu, sabe? Eu quero fazer nessa proporção para abordar o quão difícil tem sido este período que estamos vivendo. Coisa de 28 pés de comprimento [mais de 8,5 metros]”, descreve.

E assim, nas terras de lá ou nas e cá, o crochê, o tricô ou o bordado permanece vivo nas mãos de homens e mulheres, seja como hobby, bálsamo para a saúde mental, fonte de renda, manifestação de sentimentos despertados pela literatura ou nas galerias de arte. Mas isos a gente conta mais no próximo episódio, que vai ter a cidade de Fortaleza como o pano de fundo de mais narrativas. 


 

 

 José Bonifácio: Bastidores 

 

Primeira entrevistada desta reportagem, a bordadeira Nicinha foi um achado considerado tão raro quanto o de uma agulha em meio a uma caixa bagunçada de linhas. Eu queria conversar com uma autodidata e bordadeira iniciante, e ela foi justo a primeira pessoa com quem falei para esta série de escritos. Isso mesmo, ela foi encontrada a esmo no emaranhado das redes sociais (e a única). Nossa conversa foi no meio de uma manhã atarefada para ela, mas mesmo assim, Nicinha se sentou e começou a contar a sua vida. Alguns minutos depois, estávamos ao telefone como se fôssemos duas comadres a tricotar. 

Como amostra de seu carinho, ela mandou uma lembrança para a redação por meio do Aurélio Alves, o repórter fotográfico que fez o registro dela em casa: um bordado de uma máquina de escrever com o logo do O POVO e que levou cinco horas de trabalho, segundo as palavras dela escritas à mão em um bilhetinho. Uma delicadeza materializada em algodão e madeira.

Nos bastidores da notícia, ou seja, na redação do O POVO, a autora desta reportagem, Flávia Oliveira, segura um bordado feito à mão pela Nicinha(Foto: Flávia Oliveira)
Foto: Flávia Oliveira Nos bastidores da notícia, ou seja, na redação do O POVO, a autora desta reportagem, Flávia Oliveira, segura um bordado feito à mão pela Nicinha

 

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Circuito da agulha e linha em Fortaleza

Reportagem em dois episódios investiga como a arte do bordado, crochê e tricô está disseminando agulha, desenho e linhas nos mais diversos públicos de Fortaleza e tecendo um roteiro particular.