Bordar, tricotar ou crochetar é um fazer que pode tanto ser solitário quanto acompanhado. De uma forma ou de outra, a linha é capaz de se transformar em uma trama, ou desenho, ou palavra, manuseadas sob os dedos ágeis das personagens que escolhemos para contar suas histórias. Tais pessoas fazem questão de dizer que não são figuras representativas da técnica mas apenas operárias, no sentido de compor uma obra. O POVO encerra com esta reportagem o circuito imaginário do fio tendo como pano de fundo a cidade de Fortaleza.
Os primeiros registros de bordado que existem no mundo datam da pré-história, no período paleolítico, iniciado há 2,7 milhões de anos. Pesquisadores encontraram diversos fósseis daquela época vestidos com peles dos animais unidas por costuras rudimentares, mas também adornadas com linhas feitas de fibras vegetais ou de partes do intestino de animais abatidos durante a caça. Lascas de ossos faziam o papel de agulhas e enfeitavam o couro na técnica conhecida hoje como ponto cruz, que consiste no bordado em fios contados na qual os pontos têm formato da letra X. Há registros também de bordados à mão no Egito, durante a Idade do Bronze, um período que foi de 3.000 a 1.200 anos antes de Cristo. Na China, havia bordados em seda já no século IV a.C.
O bordado seria, portanto, uma das primeiras representações da cultura humana, com origem que não era restrita a apenas uma região. Passadas tantas eras, ele se mantém como uma arte universal que tem berço na carestia mas que passeia pela delicadeza, beleza e carinho.
“Parece que o ser humano sempre teve essa necessidade de ter ao seu redor alguma coisa mais arrumada, alegre e bonita”, diz Virgínia Fukuda, uma bordadeira que mora no Parque Manibura, em Fortaleza, e garantiu à reportagem que não sabia dar entrevistas. Em uma conversa agradável e que se passou como se o relógio não tivesse ponteiro das horas, ela falou sobre a origem do sashiko (pronuncia-se com ênfase na última sílaba), uma arte japonesa que ela só tomou conhecimento há alguns anos, já em Fortaleza, apesar de ser filha de pais japoneses e ter nascido em São Paulo, estado com maior presença oriental do que o Ceará.
“O Júlio [Lira, coordenador do Espaço Jornadas Criativas, que oferecia formações variadas de arte para iniciantes e profissionais, dentre elas, o bordado] é um admirador da cultura japonesa e me perguntou se eu conhecia o sashiko, técnica tradicionalmente usada para reforçar ou reparar tecidos. Como eu não tinha conhecimento, fui estudar e, desde então, passei a dar oficinas sobre ela em vários espaços culturais da cidade. Diz-se que a origem foi no século VI, como meio de proporcionar um conforto maior às vestimentas das classes mais populares, que eram feitas principalmente de cânhamo ou rami. O sashiko amenizou a aspereza desses tecidos com a incorporação de forros e acolchoados, e logo passou-se a criar desenhos geométricos ou inspirados na natureza com a linha, como simples forma de enfeite”, explica a consultora aposentada.
Antes do sashiko, Virgínia já tinha contato com o bordado pois “era de uma geração que costumava bordar em casa”, como diz. Perto de completar 76 anos, ela retomou os trabalhos com a linha em um mês de janeiro, o mês universal de resoluções de ano-novo, ocasião na qual se perguntou sobre o que “inventaria de fazer” naquele ano de 2017. Sem querer bordar “florzinhas ou borboletinhas”, foi dando de presente aos amigos itens com alguma personalização: a um antropólogo, decorou o enxoval do bebê com referências indígenas. Até que um dia, ao assistir a uma apresentação musicada de um escrito de Rimbaud, quis bordar o que sentiu neste trecho do poema:
“Bordei, mas não gostei do resultado. Um tempo depois, vi o anúncio de um curso de bordado e desenho, aí aprendi a desenhar e aí vi que tinha jeito pra coisa”, lembra. Hoje Virgínia se dedica ao Café com Bordado, um grupo para conversar, tomar café e bordar, e às exposições e oficinas.
Nascido em uma família tradicionalmente ligada à renda e ao bordado no Aquiraz, Mario Sanders fala que “nasceu entrelinhas”, pois o pai, pescador, também costurava as suas próprias tarrafas. Com 30 anos de arte, sempre trabalhou com desenho, pintura e objetos até que em 2017 foi convidado para dar uma aula de desenho para bordado. “Fiquei muito interessado no processo do bordado das alunas e decidi tentar. Comecei com o outline, que é só o traço do contorno, e só depois passei a preencher, porque até então eu só trabalhava com ponto atrás, que é um tipo de ponto. Aí o bordado foi ganhando uma participação no meu trabalho muito maior, ao ponto de mudar completamente a minha forma de trabalhar. É uma coisa viciante!”.
Mario costuma trabalhar o bordado da mesma forma como faz com a pintura, a escultura e a fotografia. “Tudo começa com o desenho. Eu não começo a trabalhar sem saber o que fazer. O bordado eu faço direto na tela, que é feita só de algodão puro, sem estar preparada para a pintura. E preciso de muita luz, porque o bordado não dá pra fazer com claridade pouca — pelo menos o trabalho que eu faço — e por isso acordo cedo pra bordar, deitado na minha rede, que é o único canto que eu me sinto à vontade para trabalhar a linha. Desenhar ou pintar, faço em qualquer lugar”, explica, rindo. Mario diz que sentir o atrito da agulha contra o tecido firme da tela o faz pensar em como se pode alinhavar sentimento, seja ele uma dor física ou emocional. “Foi assim que nasceu uma exposição, a Retratos da Dor, que mostrava detalhes das minhas mãos, rosto, pés. Meu trabalho é uma crônica visual da minha vida. Fala das relações que tive, das ex-mulheres, da minha namorada, filha. Até da gata que crio. Técnica? Acho que não tenho. Técnica, para mim, é apenas o material que utilizo”, resume.
Apesar de ser escritora, a gaúcha-fortalezense Clarisse Ilgenfritz não consegue achar nas palavras uma descrição sobre o que sente quando borda. “Tá mais para a matemática. O crochê e o tricô têm uma matemática dentro deles que nos diz sempre, ao fazer uma peça, que ela não tem como não dar certo. Não há variações nem confusões: os pontos que você tira para fazer uma cava de manga, por exemplo, são X. Já os necessários para se fazer uma curva, Y. É um resultado invariável, nunca dá um número diferente”, raciocina. Fã da Sequência de Fibonacci e da Proporção Áurea, ela tem o famoso desenho do Retângulo de Ouro tatuado no corpo e confessa uma série de prazeres ao trabalhar as linhas, seja na feitura das mandalas ou na lembrança do toque e calor da lã quando ainda morava em Porto Alegre e varava as madrugadas assistindo filmes e tricotando.
“Era uma delícia. Tenho boas recordações de passar noites fazendo colchas de cama, algo que eu fazia por prazer, usando as sobras do que minha mãe descartava. Quando o [presidente] Collor sequestrou as poupanças, fiquei um tempo sem receber dinheiro, aí passei a fazer tricô por sobrevivência. Hoje eu, já aposentada, faço para presentear as pessoas que gosto. Não tem mais a lã, que é incompatível com o calor de Fortaleza, mas tem outras linhas leves e coloridas”, relata.
E é com elas que ela faz os quadradinhos que viram colchas, mantas, bolsas e souplats (peça que se coloca à mesa, debaixo do prato da refeição). “Lembro de já ter dado uma colcha de cama e a pessoa gostar, mas de ter dado um simples sousplat e a pessoa quase morrer de felicidade. Ou uma bolsinha que a pessoa usa todo dia. Um presente feito com as próprias mãos ultrapassa a medida do afeto. Também é uma medida do tempo, no sentido do que se levou para fazer aquela peça”, destaca.
De viagem em São Paulo à época da entrevista, Clarisse se derrete pela cria, uma moça que trocou Fortaleza pela capital paulista para cursar uma graduação na Universidade de São Paulo. “Quando perguntei se ela queria que eu levasse alguma coisa de casa, ela pediu uma manta para sofá que eu havia feito há um tempo e dado para ela de presente. Nessa hora, meu coração de mãe se desmanchou de felicidade”.
Durante a realização das fotografias para a série especial sobre bordadeiras, enquanto conversava com Clarisse Ingenfrid sobre como as atividades manuais têm um poder de perpassar pelas gerações, acabei por me lembrar de minha avó Nelly, que faleceu recentemente. Recordei-me do tempo em que passava as manhãs em sua casa, enquanto ela me ensinava alguns poucos pontos de crochê. Na época, custei a aprender e por um tempo até esqueci de como fazê-los. Depois de sua passagem, alguns meses depois, percebi que aos poucos a imagem de minha avó ia se aglutinando em mim. Peguei os trejeitos dela, suas manias, comecei a gostar das mesmas comidas que ela. Numa tarde resolvi que iria aprender crochê, já que toda família sabia, ela havia ensinado todos nós. Para minha surpresa, após o primeiro nó que fiz, comecei a lembrar de como se fazia todas as correntes e carreiras. Foi ali que percebi que minha avó se encontrava dentro de mim. A partir daí, percebi que eu e minha avó nos encontramos através das linhas: linhas imaginárias, linhas cartográficas, linhas do tempo, linhas de costura, linhas de crochê.
Reportagem em dois episódios investiga como a arte do bordado, crochê e tricô está disseminando agulha, desenho e linhas nos mais diversos públicos de Fortaleza e tecendo um roteiro particular.