No Ceará, motoristas estariam recebendo a licença para dirigir de forma irregular — mesmo que muitos nem saibam que isso está acontecendo. A Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é concedida sem que candidatos sejam submetidos à perícia psicológica completa. Estariam realizando apenas parte dos seis testes obrigatórios que devem constar no exame, feito para aferir se o candidato está apto ao convívio no trânsito e às suas regras.
Desconhecedores da regra, os candidatos pagam pela bateria de testes no valor exigido e acreditam ter sido avaliados dentro do que é definido pelas autoridades de trânsito. A prática está sendo cometida por várias das 112 clínicas até então credenciadas ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) — eram 45 na Capital e 67 no Interior até dezembro 2022. A irregularidade também envolve diretamente os profissionais que assinam os testes como "realizados". O caso está sob investigação da Polícia Civil e do Ministério Público Estadual (MPCE).
As fontes ouvidas como denunciantes — inclusive proprietários de clínicas, psicólogos e motoristas submetidos aos exames incompletos — reconheceram que os danos dessa conduta são incalculáveis ao trânsito. Numa medida referencial, o Conselho Federal de Medicina (CFM), no texto de sua resolução 1636/2002, indica que mais de 90% dos acidentes de trânsito são causados por falha humana. Desde 2019, quando as clínicas credenciadas passaram a realizar exames para o Detran, o Ceará ganhou 308.254 novos motoristas (dados até outubro de 2022).
Para ter a permissão para dirigir, ou alterar a categoria de sua CNH, o candidato precisa ser avaliado em seis aspectos cognitivos e de personalidade: atenção dividida, atenção concentrada, atenção alternada, memória visual, inteligência e traços de personalidade (impulsividade, agressividade e ansiedade). Uma pessoa só estará apta a dirigir se passar pelas seis provas. Se for desaprovada em apenas uma, precisará repetir os exames.
A incompatibilidade para guiar, como ter transtornos de agressividade ou déficit de atenção, pode ser diagnosticada a partir da análise física (médica) e mental (psicológica). A duração indicada para preencher essa bateria de testes psicológicos seria de uma a duas horas, em média, além da entrevista com o candidato. Porém, conforme as denúncias, haveria clínicas locais realizando a perícia em menos de dez minutos.
Tal fraude não seria algo pontual. Não há somente um grupo específico cometendo. A irregularidade seria sabida e tolerada no mercado local, conforme O POVO apurou ao longo dos últimos dois meses. Talvez por isso, praticamente todos que se permitiram falar como vítimas, profissionais ou concorrentes, exigiram a condição de anonimato. Temem represálias ou prejuízo financeiro por denunciarem o assunto.
Os denunciados também terão nomes preservados por conta da investigação em andamento. Não há como saber quantos motoristas foram habilitados ou liberados nestas condições nos últimos três anos. Porque a distorção estaria sendo cometida por vários do segmento. Isso estaria afetando ganhos de estabelecimentos que seguem agindo dentro da legalidade.
O POVO se deparou com vários indícios e confirmações da denúncia, além de outros procedimentos também considerados irregulares no segmento: trocas de mensagens, áudios, vídeos, denúncias formalizadas em boletins de ocorrência, pedidos para "desenrolar" e "ajeitar" os exames, testes não arquivados, aplicação dos exames em tempo muito abaixo do razoável estimado.
A prática denunciada permite a clínicas economizar com os custos dos testes psicológicos. O caderno de testes é comprado e precisa ter numeração individual, por constar como documento pericial. Não pode, ou pelo menos não deve, ser fotocopiado. Um teste sai por R$ 30 a R$ 40, em média, para as clínicas, segundo o empresário Carlos Irineu Costa.
Ele é diretor da Wedja Psicologia (Psicoclínica), que até recentemente era a única empresa credenciada como distribuidora de testes psicológicos no Ceará. Ele detinha a autorização exclusiva para a comercialização local dos cadernos à época de entrevista ao O POVO - uma empresa concorrente está se credenciando para o setor. Tem, portanto, a visão detalhista de como esse mercado se comporta. À reportagem, Irineu se disse “bem intrigado sobre o que acontece nas avaliações dentro das clínicas”.
“Óbvio que a gente não tem poder de Polícia, de investigar. Mas a gente nota pelo comportamento de compra das clínicas. É muito discrepante com o número de candidatos”, explica o empresário. Irineu descreve que há clínicas de grande porte que chegam a ter menos de R$ 1 mil em aquisições de testes, quando esse custo, ele estima, deveria ser pelo menos dez vezes maior até mesmo para uma clínica de porte médio.
“É uma atuação criminosa permitir uma pessoa dirigir nessas condições”, afirmou um psicólogo, que pediu para não ser identificado ao ser consultado sobre o tema. “Eu aplico seis testes, mas meu concorrente só aplica três, ou até nenhum, como já sabemos de casos.Todos sabem disso e quem pode agir não faz nada. A gente não pode aparecer porque tem que se sustentar”, amplia o sócio-proprietário de uma clínica.
Segundo esse empresário denunciante, o setor tem várias grandes redes de clínicas, o que não é ilegal, mas indica que o problema teria proporções ainda maiores entre os que se dispõem à fraude. “Se ele (empresário) deixa (ser aplicado) o exame incompleto em uma das suas (clínicas), pode estar fazendo o mesmo nas demais”, levanta a suspeita.
O que comprova as perícias de trânsito incompletas ou “casadinhas” entre clínicas e autoescolas (*)
(*) Nomes e endereços preservados por conta da investigação policial ainda em andamento
A perícia para a carteira de motorista passou a ser assumida por clínicas especializadas de trânsito em fevereiro de 2019, regulamentada pela portaria estadual nº 182/2019. Antes, o procedimento era de uma única empresa, a Cedetran, que concentrava todos os exames. Os profissionais médicos e psicólogos prestavam serviços a ela.
A ideia das clínicas credenciadas foi descentralizar a oferta do serviço e gerar livre concorrência, mas também estaria ocasionando o direcionamento de candidatos, numa parceria proibida entre autoescolas e clínicas. Essa casadinha é vedada pelo ato regulatório, ainda que tenha virado lei apenas no papel. Uma das precauções seria a de manter a impessoalidade, impedir o favorecimento na perícia de candidatos indicados pela autoescola “parceira”.
O exame de aptidão física e mental para os motoristas pode ser requisitado até para ações judiciais. Para efeito de indenização ou como prova de um crime de trânsito — de alguém que esteja inapto para dirigir. Por isso é obrigatório que a clínica e o profissional arquivem os testes por cinco (impressos) ou 20 anos (digitalizados).
A perícia médica e psicológica é exigida para quem busca a primeira CNH ou ainda para a renovação, adição ou mudança de categoria e reabilitação do documento — como detalha o próprio site do Detran. A taxa definida pelo Detran é de R$ 214,20 - valor atualizado neste início de 2023 para as duas perícias, R$ 98,86 do exame psicológico e R$ 115,34 da consulta médica. Até o mês passado, os dois exames custavam R$ 202,26.
O POVO encaminhou ao Departamento Estadual de Trânsito (Detran) parte das situações denunciadas e indícios levantados, para que o órgão se pronunciasse sobre as irregularidades apontadas na concessão de carteiras de motoristas no Ceará. Mesmo com pedido para entrevista presencial ou por videoconferência, já que havia mais questionamentos a serem feitos além dos repassados, a diretoria optou por responder através de nota.
"O Detran-CE informa que a fiscalização das entidades e dos profissionais credenciados é realizada com a colaboração dos Conselhos Regionais de Medicina e Psicologia. A renovação do credenciamento é feita anualmente e as vistorias às instalações físicas e equipamentos técnicos das entidades e profissionais são realizadas pelo Detran-CE no momento do credenciamento e a cada dois anos, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) nº 927, de 2022. A fiscalização do exercício da atividade do médico ou do psicólogo compete aos respectivos conselhos profissionais regionais".
O órgão estadual de trânsito considerou que "o conteúdo dos arquivos encaminhados pela reportagem não levam a qualquer conclusão". Entre eles estava o recibo feito por uma autoescola, em papel timbrado, confirmando o pagamento dos exames médico e psicológico de uma clínica, parceria que é proibida pela legislação do setor. Também seguiram documentos de reclamações que já haviam sido encaminhadas diretamente ao Detran por denunciantes. Após esse contato com o órgão, O POVO juntou mais situações, em vídeos e depoimentos, que comprovariam irregularidades.
Na nota, o Detran recomenda que as denúncias "com base em elementos concretos" devem ser formalmente encaminhadas ao órgão para a devida apuração. O registro deve ser feito na Ouvidoria, por email ou telefone.
O Detran afirma que trabalha continuamente no aperfeiçoamento do sistema de credenciamento de clínicas e profissionais médicos e psicólogos. "Em setembro, foi implantado o sistema Credencia, ferramenta virtual que permite maior transparência, celeridade, integridade e segurança do processo de credenciamento, que é regulamentado pela Portaria nº 182/2019 do Departamento", destaca a nota.
A adoção do sistema de distribuição equitativa, uma das cobranças feitas por profissionais e clínicas ouvidas sobre as irregularidades na concessão de CNHs, "encontra-se em análise pelas unidades técnicas do Detran-CE". O órgão diz que hoje o candidato tem autonomia para escolher data, hora e local para ser atendido. E reafirma que "o agendamento dos serviços é feito unicamente pelo site oficial do Departamento".
Segundo o Conselho Regional de Psicologia (CRP), que fiscaliza e regula a atuação profissional, 116 clínicas são credenciadas no Ceará para atuarem em exames psicológicos de trânsito, de acordo com dados do final de outubro. "Não temos nenhuma dessas denúncias feitas à Comissão de Ética nem na Comissão de Fiscalização do CRP. Pedimos para rastrear em nossos canais e não encontramos até o momento", afirmou ao O POVO a presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) da entidade, Georgiana Portela, sobre a aplicação incompleta em baterias de testes psicológicos para motoristas no Ceará.
Segundo ela, chegam "muitas acusações incompletas" ao setor. Ela explica que as denúncias precisam ser formalizadas por email e estarem "materializadas de fatos veementes". Com o conteúdo analisado, são definidas as visitas in loco. O artigo 25 da Resolução 927/2022, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), exige que a fiscalização seja feita “no mínimo uma vez por ano ou quando for necessário”.
Uma denúncia confirmada contra um profissional, dependendo do caso, prevê punições desde suspensão até a cassação do registro por juízo de direito. "Mas precisa ter toda uma apuração, a gente não pode apontar sem um indício. Tem todo um trâmite", esclarece Georgiana Portela.
O POVO também contatou o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que não deu retorno até o fechamento desta matéria.
O CRP tem atualmente três fiscais para realizar, em todo o Estado, operações e autuações de rotina sobre o exercício da categoria, sem distinção quanto à especialidade em psicologia de trânsito. Duas dessas fiscais, segundo a chefe da COF, são lotadas na Capital. A terceira delas atua na subsede do CRP na região do Cariri e tomou posse na entidade apenas em setembro deste ano. Ela acrescenta que membros da diretoria do CRP e uma psicóloga convidada também podem ser acionados para operações de fiscalização.
"O Conselho de Psicologia quer garantir a melhoria dos serviços de psicologia para a sociedade. A gente tem total interesse em fazer com que a coisa seja do jeito que é pra ser. Nosso papel é de orientação e fiscalização", destaca a chefe da Comissão. Sobre a denúncia de casadinhas entre clínicas e autoescolas, proibidas em resoluções e portarias do setor, o CRP informa que essa fiscalização não compete à entidade.
Ao Conselho Regional de Medicina, O POVO solicitou a lista e quantidade de clínicas de trânsito credenciadas junto à entidade no Ceará. A Assessoria Jurídica do Cremec informou ao O POVO que não teria como disponibilizar a relação de forma aberta, nome a nome. Justificou que haveria “informações sensíveis”. A procura dos estabelecimentos pode ser feita individualizada pela página eletrônica da entidade — nas abas “Serviços” + “Cidadãos”, com dados a preencher no campo “Busca por estabelecimentos de saúde”.