Carlos Irineu Granja Costa, de 41 anos, é diretor da Wedja Psicologia, conhecida no mercado local como Psicoclínica, que por muitos anos foi a única empresa autorizada no Ceará a comercializar cadernos de testes psicológicos utilizados em clínicas de trânsito. Segundo ele, redes de clínicas locais adquirem muito menos testes em sua empresa do que a movimentação que costumam registrar diariamente. Para Irineu, a situação abre margem para a desconfiança de que algo esteja errado no segmento.
“Olha, os números me deixam, vamos dizer assim, bem intrigado sobre o que acontece nas avaliações dentro das clínicas. Óbvio que a gente não tem o poder de polícia, de investigar, de entrar. Eu não sou fiscal. Mas a gente nota pelo comportamento de compra das clínicas. É muito discrepante com o número de candidatos”, declarou.
Exemplifica: uma empresa de grande porte estaria comprando dele R$ 1 mil por mês em testes, sendo que um único formulário não preenchido custa de R$ 30 a R$ 40. Pela regra, são seis testes obrigatórios para cada motorista que vai tirar de primeira vez ou renovar para atividade remunerada. Por isso a conta não bate. Caso um candidato seja reprovado na perícia psicológica, tendo passado pelos seis testes completos, o profissional credenciado pode aplicar o reteste, o que deveria elevar a bateria para 12 testes, quando de fato realizados.
Os testes comercializados são produzidos por quatro distribuidoras — duas brasileiras, uma inglesa e uma alemã. Essas aplicações são compulsórias também para quem busca registros de porte de arma ou de CAC (colecionador, atirador, caçador). No início de 2023, uma segunda empresa também passou a comercializar os cadernos de testes psicológicos no segmento local. A representação foi aberta há poucos meses. A Psicoclínica atuou com exclusividade até o fim de 2022.
Nesta entrevista, feita no final de outubro do ano passado, Carlos Irineu amplia a denúncia: diz que “essa prática de venda de laudo psicológico não é nova e não é exclusiva do trânsito. Há indícios disso na avaliação de porte de arma”. Também cita que “até nos concursos públicos a gente tinha uma certa estranheza”. Irineu é psicólogo de formação, atua há 17 anos na comercialização de testes psicológicos. A empresa existe há 47 anos no mercado.
O POVO - Sua empresa é a única no Ceará que comercializa os testes psicológicos (entrevista feita no final de outubro)?
Carlos Irineu - É, a gente é a única empresa credenciada como distribuidora no Ceará de testes psicológicos. Era o antigo psicotécnico. Mudou a nomenclatura e virou teste psicológico.
OP - Quantas clínicas vocês atendem aqui, que compram os testes de vocês?
Irineu - Eu não sei te precisar quantas clínicas exatamente [são atendidas] entre pessoas envolvidas no trânsito. Às vezes tem a clínica, tem um psicólogo. A gente tem aí em torno de 50 a 100 pessoas.
OP - Quantos testes vocês chegam a comercializar num mês?
Irineu - Eu não tenho esse dado pra te dar assim de cabeça. Mas o mercado do trânsito, vamos dizer que a gente tem em média umas 5 mil carteiras emitidas por mês. Essa é uma informação objetiva.
OP - Entre novos motoristas e motoristas de renovação para atuação remunerada, que é onde exige o teste.
Irineu - Exatamente. Então assim você tem hoje uma legislação. O Denatran (Departamento Nacional de Trânsito, atual Secretaria Nacional de Trânsito - Senatran), ele diz que tem que ter uma avaliação psicológica. É regra. Todo mundo. Aí como deve ser essa avaliação psicológica? É o Conselho Federal de Psicologia que regula junto com o Denatran. Ele diz “ó, Denatran, eu aconselho que seja assim, a pessoa pega e assina. Ele não questiona porque essa questão técnica é do Conselho.
OP - Quais os testes que vocês oferecem?
Irineu - São seis testes. O teste tem várias partes. Mas tem o crivo, tem o manual. O manual é que ensina onde aplica, onde corrige, o crivo, onde tem as respostas. Mas a parte recorrente é a folha. Então, se você tem 5 mil candidatos e são seis avaliações, a gente está falando de 30 mil provas por mês. Que devem ser utilizadas. Essa é a quantidade ideal.
OP - Como é o formato de um teste psicológico?
Irineu - É uma folha. Tem umas que são papel ofício, outras são no papel A4. Tem vários moldes. Molde de inventário, que é com perguntas e você marca respostas. Tem molde projetivo, que são desenhos ou traços. Tem tipos diferentes. Você tem os de atenção, é um tipo. Você tem o de inteligência, é outro tipo. Você tem o de personalidade, aí abre um leque de outras opções. Mas no caso do Detran, tem que ser um de personalidade que expresse a agressividade. E ele é bem específico. E fora os testes, o candidato tem que ser submetido a uma entrevista psicológica.
OP - E qual é o cenário local sobre os testes? E quanto custa um teste?
Irineu - Olha, um teste, em média, custa cerca de R$ 30 a R$ 40. Tem uns que custam um pouco mais caro ou um pouco mais barato, mas são nessa faixa.
OP - Esse valor é para cada candidato?
Irineu - Não, esse valor é para o bloco.
OP - Mas o bloco aplicado para cada candidato?
Irineu - Não, é porque o candidato é (correspondente a cada) folha. O bloco pode ter 25 folhas, pode ter 50. Aí depende muito da editora, não há padronização.
OP - Mas o custo do teste, do exame para um candidato, quanto é que sai a média?
Irineu - Olha, talvez só de folhas eles saem em média dez reais, nove reais.
OP - Pela tabela do Detran, o preço é R$ 202 (valor à época da entrevista, reajustado para R$ 214,20 em 1º/1/2023).
Irineu - O Detran estabelece o valor das avaliações. Tem o valor da perícia, tem o valor das avaliações. Hoje o valor da avaliação psicológica é R$ 93,55 (Valor à época da entrevista, reajustado para R$ 98,86 em 1º/1/2023).
OP - E a outra conta é o valor da avaliação médica.
Irineu - É, os dois somados dá R$ 202 (R$ 214,20).
Óbvio que a gente não tem o poder de polícia, de investigar, de entrar. Eu não sou fiscal, né? Nem polícia nem fiscalização. Mas a gente nota pelo comportamento de compra das clínicas, né? É muito discrepante com o número de candidatos.
OP - Você tem informação sobre como é a atuação das clínicas aqui em relação aos testes? Há irregularidades cometidas?
Irineu - Olha, os números me deixam, vamos dizer assim, bem intrigado sobre o que acontece nas avaliações dentro das clínicas. Óbvio que a gente não tem o poder de polícia, de investigar, de entrar. Eu não sou fiscal, né? Nem polícia nem fiscalização. Mas a gente nota pelo comportamento de compra das clínicas, né? É muito discrepante com o número de candidatos. Porque se você vê uma clínica, ela tem um número mínimo de candidatos que ela precise atender pra subsistir. Então você pega uma clínica de trânsito, se ela tiver 20 candidatos por dia, se a gente tiver 22 dias úteis no mês, tirando os sábados e domingos, a gente pega aí 20 vezes 22. Dá 440 candidatos. Se a gente for fazer o valor das folhas, que dê em média talvez R$ 10, dá R$ 4.400. E como é que uma clínica compra R$ 1 mil por mês? Isso é uma situação que acontece.
OP - Uma clínica de médio ou grande porte?
Irineu - Aí é uma clínica de grande porte, porque elas às vezes fazem parte de grupos né? Porque a clínica, ela é individual, mas um dono pode ter várias clínicas e a prática é que várias clínicas que compram, é uma clínica só talvez que compre, ou no nome de uma organização e faça essa divisão (entre as filiais).
OP - Um teste ele não pode ser fotocopiado. Ele é numerado.
Irineu - É, o teste é numerado com lote e com número específico para cada um dentro daquele lote.
OP - Cada indivíduo vai ter um número, como uma cédula de identificação, porque o teste tem valor pericial.
Irineu - O teste é considerado um livro, ele tem direitos autorais embutidos nele. A fotocópia dele é um crime federal. Aí é de âmbito federal, de investigação da Polícia Federal. Porque você não pode copiar nenhuma folha do teste, nenhum componente do teste, nem a folha, nem o manual, nem o crivo, você nem pode copiar nem pode confeccionar. Porque o que acontece? As pessoas dizem assim, não, mas esse aqui é um teste que eu fiz (confeccionou). Aí você já fere uma legislação. Do Conselho Federal, porque todo teste pra ele ser aplicado em ambiente de avaliação psicológica, que é o contexto do trânsito, tem que ter o aval do Conselho Federal de Psicologia. E pra ter esse aval ele tem que ter tido uma série de estudos. Que são avaliados em até 24 meses no Conselho Federal. Então não tem como você ter um teste psicológico numa clínica que use e ninguém conheça.
OP - Quem é que produz os testes que você comercializa?
Irineu - Todo mundo pode produzir um teste e submeter ao Conselho, mas hoje a gente tem quatro grandes editoras no Brasil. A gente trabalha com elas aqui, que produzem testes e esses testes são usados no trânsito. Tem a Vetor, tem a Pearson, tem a Hogrefe, e tem também a Edites. Todas fazem teste que são utilizados no trânsito. A Hogrefe é alemã, sede em Munique, e a Pearson é inglesa, sede em Londres. As outras duas são exclusivamente brasileiras. Não têm atuação externa. E todas elas atuam no trânsito, têm um ou mais materiais utilizados por psicólogos de trânsito no Brasil.
OP - Você tinha falado que há uma empresa que tem um porte grande e comprou de você apenas R$ 1 mil num mês. Não foram nem mil testes, mas R$ 1 mil.
Irineu - Isso, que a gente já viu que é um quarto, vamos dizer assim, de uma demanda pequena de 20 testes por dia. Você tem clínica que chega a fazer muito mais do que isso.
OP - Você tem cliente menor que compra muito mais?
Irineu – Tenho. A gente trabalha com a referência de mais ou menos mil candidatos por clínica. É um número razoável de média. Mil candidatos por R$ 30 por mês. Entendeu? Talvez um pouco menos.
OP - Dá 12 mil testes por empresa por ano.
Irineu - Isso. Por unidade. Isso é uma conta por baixo. Aí tem gente que vai ter mais, bem mais. E vai ter gente com menos. Comparando que você estabeleceu média comercial aqui. Mas mesmo que a clínica tenha 500 candidatos — tô falando de candidatos, porque às vezes o cara não passa. Tem 5 mil carteiras. Ah, então são 5 mil pessoas? Não. Porque tem gente aí que vai ficar inapto, que vai ter que fazer outra vez? Então, se você pegar 500 candidatos vezes 22 dá 11 mil candidatos, né? Se você botar aqui vezes seis (número de testes obrigatórios por candidato), é para ser 66 mil folhas de teste.
OP – Hoje ninguém compra isso?
Irineu - Nessa quantidade, não. Agora, o que é importante, que eu queria deixar aqui registrado, essa prática de venda de laudo psicológico não é nova e não é exclusiva do trânsito. Há indícios disso na avaliação de porte de arma. Se você ligar para um psicólogo sobre porte de arma... como já houve o caso aqui, não menciono o nome, né? De ligar e a pessoa perguntar ‘e aí como é que eu faço avaliação no porte de arma?’. ‘O que que você quer?’ ‘Como é seu nome?’ Fulano. ‘O que é que você faz?’ Faço isso, tal e tal. ‘Por que você quer a arma?’. Sou colecionador, quero isso e tal. ‘Beleza, o valor é tanto’. E como é que a gente faz? ‘Não, aí você deposita o valor, certo?’ A gente marca aqui um Facetime e aí eu te passo o laudo.
OP - Tudo apenas online?
Irineu - E eu disse ok. Mas não tem teste. É só o Facetime. Quando não sai pelo telefone mesmo. Já me disseram que já saiu pelo telefone. E deveria ter a folhinha preenchida. E tem um procedimento, você tem que ter uma entrevista estruturada.
OP - Essa entrevista deve ser numa sala, ambiente adequado, tamanho (da sala definido por portaria).
Irineu - Depois da entrevista tem a aplicação dos testes, que também tem na Polícia Federal, tem uma quantidade de testes, você faz devolutiva, aí você pega o laudo. Na verdade é um laudo específico. Esse laudo aí é só para dizer que é apto ou inapto. Aí você pega esse laudo e entrega pra pessoa, para ela apresentar na Polícia Federal e poder dar continuidade no processo. Mas hoje em dia o que tem de causa? Pessoas que vendem o laudo. Por que vender o laudo? Porque não aplicou teste, a entrevista foi pelo telefone, entendeu? O cliente depositou o dinheiro e a pessoa enviou o laudo por e-mail. A pessoa mandou ir buscar.
OP - Você sabe da informação de clínicas que aplicam testes fotocopiados?
Irineu - Também tem essa prática. É uma prática muito comum.
Então não adianta dizer que a fiscalização é baixa. Na verdade não se tem uma mobilização pra fiscalizar. Por que não tem essa mobilização se o conselho recebe verba federal? Se o conselho tem orçamento aprovado em assembleia? Esse credenciamento (das clínicas de trânsito) tem uma taxa. Por que não tem a fiscalização então?
OP - Eu tô perguntando o que parece óbvio, mas é para tentar essa confirmação.
Irineu - Dizem assim, ‘ah só tem dois fiscais no conselho’, mas de fato, de fato, a legislação diz que cada membro do conselho eleito é um fiscal. Então, se hoje temos 26 psicólogos dentro do Conselho Regional de Psicologia, temos 26 fiscais. Fora os outros dois que são concursados pra serem exclusivamente fiscais.
OP - E agora são três fiscais porque tem um [na sub-sede] no Cariri.
Irineu - Então não adianta dizer que a fiscalização é baixa. Na verdade não se tem uma mobilização pra fiscalizar. Por que não tem essa mobilização se o conselho recebe verba federal? Se o conselho tem orçamento aprovado em assembleia? Esse credenciamento (das clínicas de trânsito) tem uma taxa. Por que não tem a fiscalização então?
OP - E tem a atitude da clínica de aplicar esse formato irregular. Tem o olho do fiscal que é curto, e tem a clínica que erra no procedimento.
Irineu - É porque é assim, Cláudio, a fiscalização não é para pegar o ilegal, é para inibir o ilegal. Porque aí você não tá fazendo uma fiscalização, aí é a Polícia. Porque muitas vezes o profissional pode estar incorreto por motivos circunstanciais.
OP - Por uma atecnia, algo assim?
Irineu - É uma coisa circunstancial que uma orientação resolve. Que inclusive essa é a primeira parte do conselho. É orientar.
OP - As comissões do CRP são de Orientação e Fiscalização (COF), de Orientação e Ética (COE) (que atuam nesses casos).
Irineu - Exatamente. Tem esse viés orientativo. Mas você tem também o cara que já está abraçado com a contravenção, com a ilegalidade. Que é aquele cara que o fiscal chega lá, o cara não recebe, entendeu? Ou diz que volte outro dia ou diz que é porque não tem ninguém na clínica. Tem N fatores. Mas o fato é: tem ilegalidade? Tem.
OP - Tem outras situações que não perguntei? Fora fotocópia, o teste não ser aplicado. Que outras situações você sabe que são cometidas?
Irineu - Já tivemos até uma situação bem bizarra. De o psicólogo comprar o teste e não aplicar o teste. Ele compra o teste, não aplica o teste, mas ainda assim ele emite o laudo. Ele não usa o teste.
OP - E como fica em relação à obrigação de ele guardar aquilo por cinco anos? Como é que ele faz quando for exigido sobre o documento (que deve ser mantido arquivado)? Tem um acidente, esse laudo vai ser exigido como perícia. Como é que esse psicólogo faz?
Irineu - Aí é onde está o caso. Se ele já comprou o teste, se esse teste está lá no arquivo dele e deu um problema, ele faz o teste lá na hora.
OP - Preenche?
Irineu - É.
OP - Ele guarda a folha pra não ter essa despesa de comprar o teste?
Irineu - Isso.
OP - E qual a situação? O Detran está pedindo, a Pefoce (Perícia Forense) está pedindo o teste como laudo pericial. Aí ele vai lá, preenche e diz “está aqui, eu tenho”. É isso?
Irineu - É. Isso é feito.
OP - E a responsabilidade de inibir isso, de quem é? Do Detran ou do Conselho?
Irineu - Olha, o Detran não tem muita força nessa situação. Quem tem é o Conselho. Nessa atuação aí, né?
OP - Mas o Detran tem o poder de descredenciar, de punir administrativamente?
Irineu - Tem. Inclusive o Detran dispõe de um corpo de psicólogos. Concursados, psicólogos próprios para perícia. Esses psicólogos têm total autonomia de fiscalizar a nível de credenciamento do Detran. Não de punição do profissional que tá agindo de forma ilegal, mas sim, de descredenciamento da clínica. Porque a clínica descredenciada do Detran, ela sai fora do sistema do Detran, não tem mais como botar laudo lá dentro.
Tem duas coisas seríssimas: segurança pública e saúde pública. Segurança pública no sentido de que o veículo é uma arma. Então, no momento em que a gente tem pessoas que são analfabetas, que tirou uma carteira de habilitação quando a legislação diz que não pode ser analfabeto pra tirar a carteira...
OP - Qual o risco dessa situação para o trânsito local? Qual é o risco de esse motorista estar circulando na cidade?
Irineu - Tem duas coisas seríssimas: segurança pública e saúde pública. Segurança pública no sentido de que o veículo é uma arma. Então, no momento em que a gente tem pessoas que são analfabetas, que tirou uma carteira de habilitação quando a legislação diz que não pode ser analfabeto pra tirar a carteira... Ah vai mudar? Sim, vai mudar, é outra história, mas hoje está assim. A regra de hoje é que tem que ser alfabetizado. No momento em que as pessoas analfabetas tiram, no momento em que as pessoas não fazem o psicotécnico ou a avaliação psicológica de forma adequada... E se ele vai para o trânsito, pode, num momento de forte emoção, transformar o veículo numa arma. Que vai atentar contra a vida de terceiros. E aí é onde a gente entra na saúde pública. No momento que você tem essa pessoa que pega um automóvel e inescrupulosamente começa a dirigir, ela pode afetar um motoqueiro, um pedestre, um ciclista. Que são todos personagens do trânsito. A gente pega casos: motorista passou por uma manifestação de ciclistas, acelerou e atropelou 30. Cadê a avaliação psicológica desse motorista? Talvez ela não exista. Aí você começa a ter recorrentes acidentes de trânsito e isso pesa na saúde pública. Porque esse pessoal vai pro hospital. Politraumatismo de motoqueiro, custo bem alto. Motorista de ônibus já são mais adequados, mas às vezes caminhoneiros também (incorrem na irregularidade).
OP - Se o motorista é avaliado, ele omite a informação de um quadro epilético, o responsável é só o paciente ou também o psicólogo?
Irineu - O profissional também é responsável.
OP - Ele assume uma responsabilização quando libera esse motorista?
Irineu - Sim.
OP - Mesmo se for omissão do motorista, de não passar aquela informação? O psicólogo teria que ter captado aquele diagnóstico de alguma forma?
Irineu - A avaliação psicológica tem dois aspectos. Ela tem uma avaliação que a pessoa vai porque ela quer avaliar pra ver alguma doença ou para melhorar em algo. E tem a outra que é para ela ter direito à concessão pública. A carteira de habilitação e para o CAC (Licença para Colecionador, Atirador e Caçador) não é um direito. Ela conseguiu. Ninguém tem direito. É uma concessão, uma permissão. O poder público diz assim: "olha, se você atingir determinados critérios, vou te conceder por dez anos a permissão pra você fazer isso ou aquilo". Então você tem a concessão pública que é a carteira de habilitação. Então, no momento que você tem as regras da concessão pública e essas regras não são seguidas, e a concessão é dada, os danos podem ser graves. Primeiro, de anulação da concessão. O cara comprou o laudo. Tem teste? Não tem teste. E aí, posso perder a carteira? Pode. Porque não tem nada que prove que você seguiu os parâmetros da concessão do Estado. Dois: o profissional, quando ele entra, faz um curso de avaliação de especialização do trânsito. É um curso de 240 horas. Depois disso ele tem as normativas para seguir. Ele não pode chegar e dizer assim, “ah, pois é, o candidato não falou, eu esqueci de perguntar”. Não, ele foi treinado para seguir todas as exigências da concessão. Então, (o psicólogo) é solidariamente responsável nesse papel. E a clínica também vai. Porque o profissional está dentro das suas dependências. Você avalia o profissional na hora de botar na sua empresa. Então, se avaliou equivocado é problema seu.
OP - O candidato é avaliado em atenção, dispersão, personalidade… São seis testes de avaliação.
Irineu - Ele é avaliado em três atenções: concentrada, dividida e alternada. É avaliado em inteligência. Avaliado em memória. Ele é avaliado em personalidade. Que é essa questão de agressividade, impulsividade (e ansiedade).
OP - Obrigatório passar nessas seis avaliações.
Irineu - É obrigatório.
OP - Tem algum dado que você ache relevante, a partir do que a sua empresa comercializa, que mostre que há quem não aplique os testes? Tem alguma coisa mais que ajude a aferir essa prática ilegal?
Irineu - Se a gente tiver uma clínica com duas turmas de avaliação, seriam 40 candidatos no dia. Por que 20? Porque a maioria dos testes limita que você só pode aplicar os testes coletivos numa turma de até 20 pessoas. Se a gente pegar turmas de 20, o que é totalmente impraticável, o cara não vai ter uma clínica com toda uma estrutura montada pra atender só 40 pessoas por dia. Tem que ter mais. Vai ter que ter pelo menos 80 pessoas por dia. Mas se ele atender 40 pessoas por dia, em média, o custo dele com insumos, com testes, com os acessórios para teste… Lápis, papel, caneta, cronômetro, (a clínica) vai ter que ter aí um custo de pelo menos R$ 10 mil. E hoje eu te digo, acho que 5% talvez tenham esse custo.
OP - Você está falando com base em quê, esses 5%?
Irineu - Com base em clínicas atendidas hoje, né?
OP - E quantos testes você comercializa por mês?
Irineu - Número de testes para esse público? Olha, não vou saber te precisar. Eu sei o geral, mas o geral vai ter muitas áreas dentro. Tem empresa, tem o psicólogo com a clínica dele de trânsito. De trânsito, separado, não tenho esse número específico. Mas, fazendo de cabeça, se a gente pegar de folha de teste, não sei se chega aí talvez a umas 30 mil folhas de teste vendidas.
OP - Um cliente que compre bem de você, ele compra quantas folhas de teste?
Irineu - É nessa faixa que eu te falei, de R$ 8 mil a R$ 10 mil.
OP - Você saberia transformar esse valor em número de testes? Só pra ter uma média, dos que compram bem e os que compram bem menos.
Irineu - R$ 10 mil não é muito pequeno. É um tamanho médio. R$ 10 mil é aquele tamanho que orbita. Aí você tem R$ 4 mil… Se o cara comprar abaixo disso eu tenho certeza que ele está fotocopiando. Ou então está vendendo laudo.
OP - Quatro mil reais?
Irineu - É. Não tem como ele subsistir. É a mesma coisa de você ter uma casa e gastar R$ 100 de feira todo mês. Alguém está passando fome lá dentro, não tem como.
OP - Se a clínica está cheia de gente, não teria como. Seria impossível estar aplicando esse teste de forma regular. E não há outro fornecedor (dos testes) no Ceará.
Irineu - Não. E eu sou credenciado. A pessoa pode procurar fora, mas não vai fornecer. Aí ele compra fora e traz...
OP - E pode?
Irineu - Ele pode tudo, né? Agora, por exemplo, se eu souber, aí tem multa contratual, é muito melhor pra mim.
OP - Mas isso não é feito?
Irineu - Não tem como. Porque a estrutura de mercado já funciona assim.
OP - Mas pergunto de ele comprar em outro lugar e trazer. Nos Estados Unidos ou Maranhão ou São Paulo ou Paraíba, como hipóteses.
Irineu - O caso de ele ir comprar e trazer não é viável. Porque tem as regulamentações contratuais.
OP - Isso fere o credenciamento com o Detran?
Irineu - Nesse caso aí não teria nada a ver com o credenciamento do Detran Ceará. Mas você tem o Conselho Regional de Psicologia. Por exemplo, se você é psicólogo aqui no Ceará e você cometeu alguma ilegalidade com o teste psicológico, a gente tem a numeração dos testes aqui. O Conselho pede e a gente fornece. E se não tiver numeração? Aí está com problema.
OP – Tem alguma cópia de teste que eu possa ver? É permitido?
Irineu – Eu posso até lhe mostrar, não posso é lhe ensinar como fazer. (Ao final da entrevista mostrou algumas folhas de testes, aplicados tanto para trânsito como para outros fins, mas sem deixar que o enunciado das perguntas fosse lido pelo repórter.)
OP – O que mais pode ser pontuado que você ache relevante nesse contexto?
Irineu - Tem uma coisa super relevante pra gente colocar: a estruturação do trânsito aqui no Ceará. Essa questão (a operação das clínicas credenciadas) começou em 2019. E ela foi muito bem elaborada. Preciso salientar isso, fazer justiça. Foi bem elaborada. Teve uma boa troca entre o Detran e o Conselho de Psicologia. Mas o que acontece? Parece que foi mais uma daquelas coisas do Brasil, que é a de uma lei que ninguém cumpre. A regra está bem feita, dá garantias tanto ao condutor como aos demais personagens do trânsito. Só que na hora da execução ela foi atropelada. Sendo desvirtuada. A gente tinha um sistema de agendamento equitativo do Detran que é esplendoroso. Isso dá muita possibilidade pro psicólogo, pro médico do trânsito, botar sua clínica e atender o pessoal. E democratizar. Mas isso não funciona. Desde 2019 não funciona. Na pandemia ainda teve (a preocupação) para não aglomerar, mas hoje em dia a pessoa chega em qualquer local, já faz o teste e sai. Não tem agendamento, aí é difícil a gente controlar isso.
OP - Ou vai na casadinha com a clínica. "Vamos ali na clínica que eu te indico", que é o que não pode.
Irineu - O que acontece: a autoescola acaba dando um recibo do exame, o que não pode. Porque segundo o Detran são coisas diferentes. Não pode ser. Pagou a autoescola, recibo da autoescola. Pagou a clínica justamente pra ter o livre comércio.
OP – A relação pode induzir a clínica a aprovar?
Irineu - É. Os conflitos de agente, né? É aquela coisa: "olha, se eu te encaminho tu tem que passar".
OP - É um lá e cá?
Irineu – Exato, por isso que eles não podem ser casados. É a mesma coisa do ordenador de despesa e do auditor da despesa. Se for a mesma pessoa, eu digo vou gastar 20, gasto 50 mas eu mesmo vou autorizar. Então tem esse aspecto. A regulamentação é bem feita. Ela foi feita séria, só que nós estamos com um problema, que a gente não consegue fazer ela funcionar.
OP - Alguém tá cego aí nesse jogo, né? Alguém tá se fazendo de cego.
Irineu - Tem algum nevoeiro aí. E acho que isso é importante deixar registrado.
OP - E o dano ao trânsito, que você tinha falado antes, que é bem relevante?
Irineu - Isso aqui serve como um alerta, porque estamos falando do trânsito. Mas o do porte de arma também tinha isso. E vou dizer outra coisa. Agora até ficou um pouco parado na pandemia, as mudanças de prioridade de governo. Mas até nos concursos públicos a gente tinha uma certa estranheza. Porque a pessoa tem que passar. Só pra você ter uma ideia, eu vou lhe dar um dado. Um estudo, de 2005, de um coronel e um sargento da Polícia Militar de Minas Gerais. Eles pegaram todos os policiais que estavam afastados por eventualidades. Por depressão, tiro em via pública, tudo.
OP - E ainda na ativa?
Irineu – É, na ativa, mas que estavam afastados. Aí eles fizeram esse corte e depois cruzaram. E 90% dos policiais afastados tinham entrado na corporação por medida judicial, porque não tinham passado no psicotécnico. E hoje o estado do Ceará está sendo referência na Secretaria da Segurança Pública, porque eles fizeram um trabalho preventivo com toda a corporação. Não só policial, mas também bombeiro. Quando notam que tem alguma coisa, o policial nem é avaliado, já vai entrar em contato com um time de psicólogo da Secretaria da Segurança Pública.
OP - Mas ele como candidato?
Irineu - Não, ele já dentro da corporação.
OP - Você falou aí da condição de gente que era candidato e entrou judicialmente…
Irineu - E depois virou um problema. Mesmo que ele entre sub-judice e se começar a dar defeito lá na frente, já tem um time de psicólogos. E quem quiser ser atendido, pode? Podia também. Solicitava, mas quem começava "a dar defeito", se chegasse atrasado várias vezes, aí preventivamente já encaminhava. Aí elas (psicólogas) decidiam se só conversavam ou se faziam uma avaliação global. Esses três pilares, Cláudio, são muito importantes. Eu sei que a gente tá falando do trânsito, mas esse do porte de arma e o do concurso público. São as três formas de avaliação que a gente chama de avaliação psicológica compulsória, obrigatória. Trânsito, concurso público e porte de arma. A gente tem muito o que avançar, muito mesmo.
Outro fio da denúncia puxa para a falta de arquivamento dos exames. Como os testes não são realizados integralmente entre os que cometem a fraude, não estariam sendo guardados como pede a regra — obrigatoriamente por cinco anos. Num dos casos, ocorrido em Fortaleza, a suspeita é de que mais de 100 mil testes, no mínimo, não teriam sido arquivados num período de dois anos. O caso reforça indícios de que a perícia psicológica foi feita apenas parcialmente, apontada como prática no segmento.
A história virou uma rixa entre o dono da clínica e a profissional. Os dois mantiveram parceria comercial e dividiram despesas do estabelecimento. Cada parte fez um boletim de ocorrência contando sua versão dos fatos. Ao O POVO, ele deu detalhes de que os testes poderiam nem estar sendo realizados por ela e, no BO, denunciou que só havia recebido “554 testes, número aproximado de testes psicológicos realizados mensalmente” e que os demais não existiam. A situação teria sido comunicada ao Detran. O POVO não conseguiu confirmação sobre isso.
Já ela afirmou, num outro BO, que uma infiltração de água na sala e mofo teria danificado os testes guardados em caixas de papelão e que “não teve nenhuma intenção de danificar ou perder esse material”. Ela teria pedido desligamento da parceria para abrir uma clínica própria. E foi cobrada pelo proprietário sobre os testes que deveriam ter sido arquivados e devolvidos integralmente.
O volume de testes reposto seria irrisório, não condizente com os 24 meses em que a profissional atuou na clínica, entre outubro de 2019 e outubro de 2021. Nem com a movimentação diária do estabelecimento, que teria média de 700 a 800 exames/mês, com pico acima de 1 mil num dos meses após o fim da primeira onda da pandemia.
Como a média era de 700 a 800 exames por mês, se multiplicados pelos seis testes de cada candidato (4.200 a 4.800) pelo dois anos de atuação na clínica, a conta omitida alcançaria de 100 mil a 115 mil testes sem arquivamento. O POVO apurou que o caso estaria no radar da investigação da Delegacia de Defraudações e Falsificações (DDF), em Fortaleza. Então titular da DDF, o delegado Carlos Teófilo não quis dar detalhes da apuração policial. Na segunda semana de janeiro, Teófilo foi informado que deixaria a DDF. Um novo delegado deverá assumir o caso, depois de se inteirar do andamento da investigação.
O POVO falou com os proprietários da clínica, que confirmaram a história dos testes não conservados. A reportagem opta por não publicar o nome dos personagens porque a investigação ainda está em andamento. Mas as versões divergem nos dois BOs registrados.
No BO registrado em 30/11/2021, a psicóloga admitiu ter devolvido à clínica apenas parte dos exames arquivados. Alegou, porém, que o material teria sido estragado pela suposta infiltração de água na sala onde as folhas dos exames eram mantidas. “Nesse local havia várias caixas de testes psicológicos já utilizados e não utilizados que foram deteriorados por questão de infiltração de água e mofo”, descreveu a profissional à Polícia. Mencionou que o local permaneceu fechado durante a pandemia, o que teria contribuído para a situação.
Dois dias depois, em 2/12/2021, o proprietário da clínica também correu para registrar seu BO para contar o seu lado da mesma história. “Tais fatos (infiltração e mofo) não condizem com a verdade, pois nunca houve deterioração de documentos na clínica, como qualquer funcionário pode comprovar”, afirmou sobre a ocorrência.
Pela resolução do Conselho Federal de Psicologia, o profissional de psicologia e a clínica dividem a responsabilidade pela guarda dos testes periciais. Ao O POVO, o Conselho Regional de Psicologia disse não ter conhecimento desses fatos. “Não há denúncia deste caso em nossas comissões”, afirmou Georgiana Portela, presidente da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) da entidade.
Um ano atrás, a diretoria do Detran já havia sido avisada sobre as parcerias comerciais, silenciosas, firmadas entre as autoescolas e as clínicas. Indicam clientes em troca de comissões e para manter a margem de lucro. Isso está entre as proibições, mas é amplamente sabido e praticado no mercado. Apesar desse alerta, a irregularidade não foi contida. Um ofício com o mesmo teor foi formatado para envio à então governadora Izolda Cela (sem partido).
A comunicação ao Detran, mais em tom de queixa que como denúncia, foi feita num e-mail enviado em 11 de novembro de 2021. Foi apresentada por “um grupo de clínicas médicas e psicológicas credenciadas”. Entre os trechos, a mensagem fala de “acordos ilegais e informais” dos estabelecimentos e cobra que o serviço credenciado "deve ser pautado nos valores éticos, técnicos, científicos, sem nenhum outro beneficiamento e intervenção".
Um dos que assinaram e encabeçaram o alerta ao Detran foi o presidente da Associação de Psicólogos de Trânsito do Ceará (Apsitran), José Wagner Queiroz Paiva — também representante da entidade nacional (Associação Brasileira de Psicólogos de Trânsito - Abrapsit). O POVO chegou a conversar com ele na condição de psicólogo proprietário de clínica ainda em funcionamento. No fim de outubro, numa carta escrita a colegas empresários do segmento de perícia psicológica, ele anunciou que está desistindo do ramo.
Entre os motivos, Paiva alegou que há “corrupção institucionalizada no processo de credenciamento das clínicas credenciadas junto ao Detran”. “O que eu classifico como corrupção é a intervenção indevida, injusta, exploradora dos centros de formação junto às Clínicas Médicas e Psicológicas exigindo delas altos percentuais para direcionar seus alunos candidatos à CNH”, descreve.
Paiva diz que o órgão estadual “'fez vista grossa’ e ‘deu carta branca’ para que as clínicas iniciantes fizessem ‘todo tipo de acordos’ com os centros de formação (as autoescolas)”. Menciona num trecho da carta que as autoescolas “passaram a exigir das clínicas valores exorbitantes iguais e superiores a 50% das avaliações médicas e psicológicas”. “Razão porque desistimos”, escreve, ao final de uma das mensagens que disparou em grupos de WhatsApp avisando de sua decisão.
No fim de dezembro, Paiva atualizou que, a partir de 2023, "passará a prestar consultoria na área de psicologia e medicina de tráfego". O trabalho incluirá palestras, cursos, treinamentos e assessoria administrativa, mas não mais como credenciada ao Detran.