Logo O POVO+
BBB no Congresso Nacional: os bastidores das principais votações do 3º governo Lula
Reportagem Seriada

BBB no Congresso Nacional: os bastidores das principais votações do 3º governo Lula

Como as bancadas da bala, do boi e da bíblia votaram nas pautas mais importantes de 2023 e o que está por trás desse diálogo com o executivo

BBB no Congresso Nacional: os bastidores das principais votações do 3º governo Lula

Como as bancadas da bala, do boi e da bíblia votaram nas pautas mais importantes de 2023 e o que está por trás desse diálogo com o executivo
Tipo Notícia Por

 

Um dos principais tópicos de Lula em seu programa de campanha, nas eleições de 2022, era a proposta de, como consta no documento, “uma reforma tributária solidária, justa e sustentável, que simplifique tributos e em que os pobres paguem menos e os ricos paguem mais”. No dia 15 de dezembro do ano passado, quando a pauta foi levada à votação, o presidente teve a prova de fogo do nível de seu crédito junto ao Congresso.

Naquele dia, o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019 foi aprovado em dois turnos no plenário da Câmara dos Deputados. A reforma tributária, que vinha sendo discutida no Brasil há mais de três décadas, foi celebrada em uma fotografia histórica, reunindo sorridentes, lado a lado no plenário, Lula, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, emoldurados pela multidão de parlamentares ao fundo.

Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, encabeçam sessão de sanção da reforma tributária(Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Foto: Ricardo Stuckert/PR Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, encabeçam sessão de sanção da reforma tributária

“Foi um dos maiores feitos legislativos de nossa história. Fernando Henrique Cardoso já havia tentado aprová-la, mas não foi bem sucedido. Nem o Lula nos primeiros mandatos. Até o Temer, que foi muito bem sucedido do ponto de vista legislativo, não conseguiu. O próprio Bolsonaro tentou e não se saiu bem”, avalia o professor de Ciência Política da Universidade Federal do ABC (UFABC) Ricardo Ceneviva.

No dia em que a pauta foi levada a plenário, 74% e 75% dos deputados (respectivamente no primeiro e segundo turno) seguiram a orientação do governo nas votações da reforma tributária. Na bancada do boi, a convergência foi de 65% nos dois casos. A bancada da bala teve percentual de 58% de votos alinhados ao governo em ambos os turnos. A Frente Evangélica foi a que mais divergiu, embora tenha mantido o alinhamento em 53% e 54% dos votos.

 

Percentual de deputados que seguiram a orientação do governo na votação da Reforma Tributária 

 

“O fato de Lula ter conseguido aprovar a reforma é indicativo de que ele tem sido bem sucedido do ponto de vista de sua agenda no legislativo. Mas isso não aconteceu sem custos para o governo, sem barganhas. Lula teve que ceder bastante espaço para o centrão. O próprio Lira conseguiu indicar uma pessoa de sua confiança para a presidência da Caixa”, analisa Ceneviva.

O analista se refere à nomeação, em novembro último, do economista Carlos Antônio Vieira Fernandes, indicação do presidente da Câmara, para a presidência da Caixa Econômica Federal. Para acomodar Fernandes, Lula precisou demitir Rita Serrano, figura ligada ao PT e quarta mulher a presidir a instituição. O movimento consolidou a entrada do centrão na base aliada do presidente no Congresso.

Poucos dias depois, também em dezembro, outro texto importante recebeu, em votação no plenário da casa, votos convergentes da imensa maioria dos deputados federais. O Projeto de Lei (PL) 3626/23, que previa a regulamentação das apostas esportivas online, popularmente conhecidas como bets, teve 72% dos votos alinhados à orientação governista, apesar de ter sido objeto de obstrução por parte de deputados da bancada evangélica.

 

Percentual de deputados que seguiram a orientação do governo na votação da regulamentação do mercado de apostas online 

 

A Frente da Agropecuária foi a mais alinhada ao governo na votação da pauta, com um percentual de 66% de votos convergentes. Em seguida aparece a Frente da Segurança Pública, com 57% de alinhamento. A Frente Evangélica manteve-se majoritariamente na oposição, convergindo com a orientação do governo em apenas 46% dos votos em relação ao projeto.

Mas a relação azeitada entre os poderes não é garantia de alinhamento absoluto. Uma das pautas mais polêmicas do ano, a do Marco Temporal (PL 490/2007), que previa a demarcação apenas das terras já ocupadas por indígenas na ocasião da promulgação da Constituição de 1988, recebeu, no plenário da Câmara, votação que rechaçou, com grande margem de deputados, a orientação do governo.

Realizada no fim de maio de 2023, a votação registrou 283 votos a favor e 155 votos contra o estabelecimento do Marco. Apesar dos 100% dos votos do PT alinhados à orientação governista (contrária ao Projeto de Lei), apenas 35% dos deputados deram votos convergentes — os outros 65% votaram pela aprovação do Marco Temporal. O rechaço à orientação governista foi de 86% entre os deputados da bancada do boi e da bala, e de 84% entre os parlamentares da frente evangélica.

 

Percentual de deputados que seguiram a orientação do governo na votação da regulamentação do mercado de apostas online 

 

O embate, que há décadas opõe indígenas e representantes do agronegócio, teve outros desdobramentos após a derrota do governo na Câmara. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Menos de uma semana depois, o Senado aprovou com 43 votos, contrariando o STF, a fixação do marco. Em outubro, Lula sancionou o projeto, mas vetou seus pontos principais. Em dezembro, o Congresso derrubou parte dos vetos.

A disputa deve continuar em 2024. Diversos representantes dos povos indígenas afirmaram que seus direitos foram violados e anunciaram que pretendem entrar com recurso no Supremo contra a tese do marco temporal para demarcação dos territórios. A derrota de Lula nas votações do Congresso sinaliza para uma dedução importante: o alinhamento das bancadas custa caro e nem sempre é compulsório.

Autoridades indígenas retornarão em 2024 as mobilizações contra a tese do marco temporal(Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)
Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil Autoridades indígenas retornarão em 2024 as mobilizações contra a tese do marco temporal

 

  

Composição das bancadas

 

A leitura das estatísticas que indicam o alinhamento dos votos oriundos das bancadas da bala, da bíblia e do boi com as orientações do governo ganha uma nova dimensão quando essas frentes parlamentares são destrinchadas em partidos: nas três bancadas, o partido com presença mais destacada de deputados é o PL, que encabeça oposição radical ao atual executivo federal.

São 77 deputados do PL na Frente Parlamentar da Agropecuária, 87 na da Segurança Pública e 80 na Evangélica. Apesar disso, o percentual de convergência dos votos oriundos dessas bancadas com as orientações do governo, como mostrado no primeiro episódio desta série de reportagens, é, respectivamente, de 65%, 60% e 58%.

 

Composição partidária das bancadas BBB 

 

Essa aparente divergência — a forte presença de integrantes do PL nas bancadas e o alto índice de alinhamento ao governo — pode ser explicada pela ampliação da base aliada de Lula no Congresso Nacional ao longo dos primeiros doze meses de mandato. “A despeito das diferenças, fizemos um trabalho muito intenso de articulação política. É um resultado a se comemorar”, afirma o deputado federal José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Câmara.

O resultado positivo a que se refere Guimarães pode ser observado nas configurações de alinhamento partidário deste início de ano. 2024 começa com dez partidos firmes da base aliada do presidente: PT, PCdoB, PV, PDT, PSB, Psol, Rede, Podemos, Avante e Solidariedade. Aqueles que apoiam em parte as pautas do governo são seis: União Brasil, PP, MDB, PSD, Republicanos e Patriota. Na oposição estão quatro: PL, PSDB, Cidadania e Novo.

Então, mesmo que na bancada do boi, por exemplo, o PL seja o partido de maior representatividade, com 77 deputados, as demais siglas integrantes da frente, embora menores, estão alinhadas ou parcialmente alinhadas ao governo. No caso da Frente Agropecuária aparecem, depois do PL, partidos como União (com 49 deputados), PP (43), PSD (32) e MDB (28).

O atual ministro do turismo, Celso Sabino, foi eleito deputado federal pelo União, partido que não se coloca nem na base, nem na oposição do atual governo(Foto: MyKe Sena/Câmara dos Deputados)
Foto: MyKe Sena/Câmara dos Deputados O atual ministro do turismo, Celso Sabino, foi eleito deputado federal pelo União, partido que não se coloca nem na base, nem na oposição do atual governo

No caso da bancada da bala, os 87 deputados do PL, de oposição marcada, são seguidos por 37 do União, 34 do PP, 30 do Republicanos e 19 do MDB. Na Frente Parlamentar Evangélica são 80 do PL, 38 do Republicanos, 23 do União, 19 do PSD e 15 do PT.

Na avaliação do analista político Vladimir Feijó, doutor em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais,o posicionamento de muitos desses deputados nas votações do legislativo precisa ser analisado a partir da lógica de atuação do Centrão. “Apesar de eleitos com determinada pauta, uma vez que se inicia a legislatura, pode haver uma mudança de orientação”, explica.

Feijó cita o caso de partidos que, outrora alinhados predominantemente ao governo Bolsonaro (como o PP e o Republicanos), foram sendo, ao longo do ano passado, “incorporados ao novo governo”, seja com a conquista de ministérios ou cargos prestigiados de gestão, seja com a obtenção de valores polpudos por meio da destinação de emendas parlamentares que, no ponto final da linha, acabam servindo como elementos de fortalecimento da base eleitoral dos deputados e de seus aliados no nível municipal.

Lula posa para foto com o ministro dos esportes, André Fufuca (PP-MA), o ministro de portos e aeroportos, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), e o ministro do empreendedorismo, da microempresa e da empresa de pequeno porte, Márcio França (PSB-SP)(Foto: Ricardo Stukert/PR)
Foto: Ricardo Stukert/PR Lula posa para foto com o ministro dos esportes, André Fufuca (PP-MA), o ministro de portos e aeroportos, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), e o ministro do empreendedorismo, da microempresa e da empresa de pequeno porte, Márcio França (PSB-SP)

 

 

As emendas e o futuro

 

Transformadas em assunto controverso durante o governo de Jair Bolsonaro, quando foram capturadas para compor um esquema furtivo de “orçamento secreto”, as emendas parlamentares são elemento essencial para a construção de uma relação minimamente pacífica entre os poderes executivo e legislativo. Em 2023, o empenho de emendas foi maior do que o dobro do que foi feito no ano anterior.

Quem anunciou esse salto foi o ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Alexandre Padilha. Na última semana de 2023, ele divulgou que haviam sido empenhados naquele ano R$ 34,681 bilhões em emendas, 106% a mais do que os R$ 16,824 bilhões de 2022. Segundo o professor Ricardo Ceneviva, a diferença fundamental entre a utilização das emendas feita pelos dois governos está na transparência.

“No Brasil, o presidente sempre usou a questão orçamentária como barganha política. E o fortalecimento do Congresso não é necessariamente ruim. Os parlamentares muitas vezes têm mais capilaridade, são muito mais próximos dos seus dutos, têm mais informações sobre projetos que precisam de recursos. O problema é a falta de transparência na barganha e na execução das emendas, a ausência de mecanismos de prestação de contas”, explica.

O ministro Alexandre Padilha anunciou crescimento de 106% no valor de emendas empenhadas em 2023 em relação ao ano anterior(Foto: Gil Ferreira/Ascom/SRI)
Foto: Gil Ferreira/Ascom/SRI O ministro Alexandre Padilha anunciou crescimento de 106% no valor de emendas empenhadas em 2023 em relação ao ano anterior

Quando fala de fortalecimento do Congresso, Ceneviva se refere a um movimento na correlação de forças entre os poderes que, segundo ele, começou a se operar nos anos 2010. “Hoje em dia, o Congresso Nacional é, do ponto de vista político, mais forte. E a gente está vendo isso no poder de barganha que ele tem. O executivo agora precisa se envolver em negociações corpo a corpo com os partidos políticos”, argumenta.

Prova dessa reconfiguração no jogo de forças entre os poderes é o atual imbróglio envolvendo o veto de R$ 5,6 bilhões anunciado pelo presidente Lula no valor das emendas parlamentares de 2024. A reação ao corte do presidente foi imediata entre os parlamentares e culminou com o discurso firme de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, na abertura do ano legislativo, no último dia 5.

Na ocasião, Lira destacou que “o Orçamento da União pertence a todos, e não apenas ao Executivo”, exigiu o “fiel cumprimento aos acordos firmados com o Parlamento” e afirmou que nenhum dos deputados havia sido eleito para atuar como “carimbador” das decisões do Executivo. Entre analistas políticos, a fala de Lira foi vista como um “duro recado” direcionado ao presidente e ao ministro Padilha.

Na abertura do ano legislativo de 2024, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, enviou "duro recado" ao executivo(Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados)
Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados Na abertura do ano legislativo de 2024, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, enviou "duro recado" ao executivo

Perguntado se o veto de Lula poderia gerar desgastes na relação entre os poderes, o deputado José Guimarães respondeu que nada seria prejudicado: “Vamos buscar uma solução. A discussão está evoluindo. Essa taxa (de convergência de votos, levantada por O POVO+), que já é muito positiva, altíssima, deve melhorar”. Questionado sobre a possibilidade de reversão do veto pelo presidente, afirmou que “isso vai ser com os líderes (partidários)” e que, embora ainda não haja uma posição definida, iria “recompor e manter o acordo que foi feito”.

Ponderando o otimismo de Guimarães, o cientista político Rodrigo Prando avalia como real a possibilidade de que o veto gere desgastes no diálogo entre os poderes. “Se houver um braço de ferro entre executivo e legislativo, especialmente estimulado pelo (Arthur) Lira, pode ser que essas bancadas comecem a votar menos com o governo”, cogitou.

Com as eleições municipais de 2024 no radar do governo e dos parlamentares, as discussões em torno das emendas parlamentares devem se tornar cada vez mais intensas. “Cada deputado quer voltar para o seu município, fazer força política e campanha para os prefeitos e vereadores. Os recursos oriundos do executivo fazem parte dessa chancela. Hoje temos essa tensão. Mas, como cada deputado tem seu interesse regional, é provável que o governo Lula tenha que abrir os cofres”, concluiu.

Segundo o deputado José Guimarães, lider do governo Lula na Câmara, a saia justa em torno da questão das emendas parlamentares será resolvida pelo executivo(Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima Segundo o deputado José Guimarães, lider do governo Lula na Câmara, a saia justa em torno da questão das emendas parlamentares será resolvida pelo executivo

 

 

Metodologia

 

Para este material foram coletadas e analisadas todas as votações nominais que ocorreram no Plenário da Câmara dos Deputados durante o ano de 2023 através do serviço de dados abertos da casa.

Para garantir a integridade e completude dos dados, um script foi desenvolvido para coletar os registros diários, entre 01/02 e 24/12 de 2023, de todas as votações registradas pelo serviço de dados abertos da Câmara. Em seguida foram selecionadas as votações em plenário, com registros de votos nominais dos deputados e deputadas. Por fim, foram destacadas as votações dos membros de três frentes parlamentares no congresso: Frente Parlamentar Evangélica, Frente Parlamentar da Agropecuária e Frente Parlamentar da Segurança Pública.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.


O que você achou desse conteúdo?

Bancada BBB no Congresso Nacional

Reportagem especial mostra o perfil e bastidores da bancada BBB (boi, bala e bíblia) no Cengresso Nacional