Embora seja um órgão autônomo, o Conselho Tutelar possui entidades responsáveis por fiscalizar suas atividades em torno do cumprimento da legislação, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em outras normas. Um destes agentes é o Ministério Público, que junto aos conselheiros também atua no papel de fiscalização de entidades de atendimento infantojuvenil.
O trabalho é bastante desafiador e requer o funcionamento de uma ampla rede de atuação. Apenas em Fortaleza, por exemplo, o Ministério Público do Ceará (MPCE) possui 12 Promotorias da Infância e da Juventude (SEPIJ) responsáveis por essa missão.
Quatro destas funcionam em torno do Núcleo de Atendimento Integrado (NAI), com sede no bairro Presidente Kennedy, instituído em Fortaleza no ano de 2016 com a assinatura do Protocolo de Cooperação Interinstitucional. Na capital, a nova sede foi inaugurada em 2022, sendo gerida pela Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas), vinculada à Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS).
Segundo o ECA (Artigo 88, inciso V), o núcleo possui foco no primeiro atendimento ao adolescente que tenha cometido ato infracional, como serviços de acolhida, acompanhamento e direcionamento por meio da atuação de instituições em rede. O espaço conta com uma Delegacia Geral de Polícia Civil, além da presença institucional do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, da Procuradoria Geral de Justiça, da Defensoria Pública Geral, do Comando Geral Polícia Militar e da Perícia Forense.
Além disso, outras três promotorias são responsáveis pela chamada tutela individual, dedicadas a trabalhar com a apuração do ato infracional (processo de conhecimento) e as infrações administrativas, que podem ser praticadas, por exemplo, pelos próprios Conselhos Tutelares, quando não cumprem o seu papel legal. Outras três promotorias de Justiça atuam na seara da proteção, na tutela individual.
Por fim, duas promotorias atuam na tutela coletiva, área de atuação que exige uma postura eminentemente proativa do Ministério Público, responsável pela defesa dos direitos de demandas de grupos sociais, a partir da interlocução com a rede proteção e com todos os demais órgãos.
É no âmbito da tutela coletiva que atua a titular da 7ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude (78ª Promotoria de Justiça de Fortaleza), Antônia Lima Sousa. Em entrevista ao O POVO, ela destaca que as atividades na capital possuem foco em dois eixos.
“Um para o ato infracional, apuração e responsabilização, que é a execução, e tem umas promotorias que trabalham com a seara de proteção em todos os sentidos de criança e adolescente. Todos os direitos humanos. E por que tanta especialidade? Exatamente para dar conta das várias dimensões de direitos humanos de crianças e adolescentes”, afirma.
O objetivo da rede, segundo a promotora, é dar agilidade às demandas que chegam a partir das suas especialidades. Nesse sistema, questões como a perda do poder familiar sobre a criança ou adolescente, a adoção, uma guarda em situação de vulnerabilidade ou um acolhimento, por exemplo, possuem promotorias especializadas em lidar com os diversos casos.
Em Fortaleza, o primeiro conselho tutelar foi inaugurado em maio de 1994, quatro anos após a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), criado logo após a promulgação da Constituição de 1988. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população da capital cearense naquela época era de 1.870.422 pessoas. Em 2023, a cidade já conta com 2.428.678 habitantes (Censo 2022).
Para o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude, Lucas Felipe Azevedo de Brito, o crescimento populacional demanda da rede de proteção um trabalho muito mais amplo e eficiente, onde saúde e educação tornaram-se políticas universais após a Constituição de 1988.
“Nós alargamos um leque de opção, o que está correto para todo mundo ter acesso à saúde e educação, mas daí vem também um desafio muito grande. Para uma demanda maior você precisa absorvê-la de uma forma organizada com governança e gestão. Então, vejam, que de 1988 pra cá nós estamos evoluindo sim, a grande questão é que os desafios são cada vez maiores. A rede, ela vem se estruturando de maneira a dar vazão a isso”, destaca o promotor.
Segundo Lucas, para uma “sociedade mais complexa”, principalmente, na área da infância e juventude, o Ministério Público já possui bastante abertura para disponibilizar serviços e atender melhor à população. No entanto, outros “fatores externos” ainda precisam ser resolvidos para um melhor funcionamento do sistema de proteção.
Segundo o promotor Lucas Azevedo, o primeiro diz respeito ao crime organizado. Ele destaca ser importante que, nos dias atuais, os agentes de segurança pública entendam seu papel na rede protetiva, de forma a promover um constante diálogo com as instituições voltadas à criação de políticas para crianças e adolescentes.
No entanto, levantamentos feitos neste âmbito assustam e revelam que a segurança infantojuvenil está distante de ser uma realidade. De acordo com base estatística de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI) da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), 165 crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos foram assassinadas no Ceará de janeiro a agosto deste ano. O dado equivale a uma morte a cada 48h no Estado para essa população específica.
Outro monitoramento do Comitê de Prevenção e Combate à Violência, da Assembléia Legislativa do Ceará (Alece), observa que 275 crianças e adolescentes foram vítimas de homicídio no Ceará. São 273 casos na faixa etária de 10 a 19 anos e dois até 5 anos. Ao todo, foram 2.240 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) entre 1º de janeiro e 14 de outubro de 2023.
De 2013 a 2022 ocorreram no Ceará 1.229 mortes por intervenção policial, estatísticas da SSPDS sistematizadas pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE). As ocorrências cresceram ano a ano. Ao comparar os dados dos anos de 2013 e 2022, houve um aumento de 270,73% de mortes por intervenção policial.
Em nota, o Cedeca critica a falta, por parte da SSPDS, de um "detalhamento sobre o perfil das vítimas de intervenção policial em relação à idade, raça, gênero ou território". "É de conhecimento público casos em que crianças e adolescentes foram mortas por policiais no Ceará nos últimos anos”, critica a instituição. Um balanço de 2022 da Rede de Observatório de Segurança afirma que pelo menos seis crianças e adolescentes morreram em ações de policiamento que ocorreram nos últimos dois anos no Estado.
Para o professor Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), no Ceará, muitos jovens que vivem na periferia da cidade passaram a integrar o mundo do crime devido à ausência de oportunidades para progredir tanto socialmente como economicamente, de modo lícito.
Ademais, o pesquisador destacou o fato dessas pessoas possuírem, desde suas infâncias, uma relação direta com o mundo do crime, tendo em vista que vivem em um ambiente extremamente violento. Logo, é perceptível que é aproveitando-se desses fatores que as facções criminosas agem, oferecendo a essas pessoas um projeto de vida que, segundo Paiva, pode não ser o mais longo nem o mais feliz, mas é o que corresponde com a realidade vivenciada por esses jovens.
Fontes do Cedeca ouvidas pelo O POVO afirmam que grande parte das denúncias de violação de direitos giram em torno da educação, onde crianças e adolescentes estão fora da escola por dificuldades em vagas escolares, seja por não conseguirem matrícula ou por estarem na fila de espera.
No Ceará, em 2022, um total de 55 mil crianças e adolescentes de 4 a 17 anos estavam fora da escola, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE. No município de Fortaleza, a exclusão escolar atinge 24 mil crianças e adolescentes.
O impacto da evasão escolar prejudica diretamente a identificação dos casos de violações de direitos de crianças e adolescentes, é o que afirma o promotor Lucas Azevedo.
“Nós percebemos que aquelas crianças que estão fora do ambiente escolar, nós temos uma dificuldade muito grande de obter informações de possíveis violações de direito. Porque a escola é a principal porta de entrada que dá vazão às denúncias. A maioria das violações a direitos de crianças e adolescentes que possuem algum tipo de contexto familiar no qual eles estão inseridos acontece dentro de casa”, defende.
Segundo o ECA, também é atribuição do Conselho Tutelar a busca por crianças e adolescentes que estejam fora da escola. Segundo a promotora Antônia Lima, é neste ponto onde os conselheiros devem estar atentos tanto às informações que chegam das escolas quanto das próprias demandas que surgem espontaneamente nos conselhos tutelares.
“Se hoje nesse sistema nós temos situações de não resgate dessa criança e desse adolescente que está fora de sala de aula, eu penso que há necessidade dessa articulação entre escola, gestão municipal com o conselho tutelar e com as promotorias de educação. Porque esse trabalho é exatamente no sentido de garantir o direito de acesso, permanência e sucesso de crianças e adolescentes no contexto da escola”, afirma.
Em entrevista ao O POVO, a assistente social do CEDECA, Aurislane Abreu, relata que é também no ambiente escolar onde são recebidas denúncias de várias ordens, desde o direito à educação que está sendo violado até casos de abuso e violência sexual.
“Então isso tem sido um problema que a gente recebeu ao longo do ano inteiro, se concentra mais no período das matrículas ali no início do ano. A gente também tem percebido muitas denúncias e a gente também tem recebido de situações de assédio, ou violência também no ambiente escolar. É meio que tem casado um pouco dessas duas demandas. De educação com abuso, com o assédio ali nesse ambiente”, relata a profissional.
Nestes casos, a assistente social afirma que o Cedeca mantém uma boa interlocução com as demais instituições protetivas da área social, como os conselhos tutelares e a gestão municipal. Em caso da ausência de respostas, a solução é buscar apoio do Ministério Público. Dentro das suas diversas atribuições, é o órgão que age quando o conselho tutelar falha em sua atuação. Ele pode atuar tanto prevenindo que conselheiros cometam atos infracionais, como responsabilizando na área administrativa, civil e criminal quando algum erro é cometido.
“A gente recebe um caso de educação aqui de violação, a gente primeiro manda para o conselho tutelar, depois para a Secretaria de Educação responsável e aí a gente precisa aguardar um prazo dentro da lei de acesso à informação. Passado esse prazo legal, se eles não tomarem nenhuma medida e providência, a gente já pode acionar o Ministério Público por entender que aquela ponta que deveria ter atuado inicialmente, não atuou”, explica Aurislane.
Segundo a promotora Antônia Lima, o trabalho do MPCE responde a uma “pactuação de fluxo” entre Secretaria de Educação do município, o Ministério Público através do Centro de Apoio Operacional da Educação (Caoeduc) e os promotores que acompanham os conselhos tutelares. “O passo é esse, acionar a escola para acesso à educação. E aí o município tem se comprometido e tem acontecido de receber essas crianças e adolescentes que estão fora da sala de aula, dessa matrícula", destaca.
“Existe inclusive no campo da socioeducação, dos adolescentes que estão privados de liberdade, que questão tanto em privação de liberdade como cumprindo medidas em meio aberto, de um drive que é o serviço social acessa a já com a própria gestão do município garante a vaga para esse adolescente”, completa a promotora.
O acolhimento de crianças e adolescentes que vivenciam violação de direitos tem sido discutido no âmbito do desenvolvimento de políticas públicas. Porém, segundo Antônia Lima, um fenômeno acaba sendo esquecido nesse debate: o acolhimento e a proteção também aos familiares. De acordo o art. 227 da Constituição Federal e art. 4º do ECA, a proteção e defesa infantojuvenil não é dever apenas de um órgão ou entidade, devendo ser uma atuação conjunta e articulada entre família, sociedade e Poder Público.
“Eu compreendo e recomendo muito que os conselhos tutelares usem, e eles usam, que é a metodologia do estudo de caso. Porque quando você coloca o estudo de caso percebe que o ECA não é só pra proteger criança e adolescente. Porque nenhuma criança, nenhum adolescente existe sem ter um suporte por trás que é a família. Então assim, a centralidade de todo o trabalho da previsão legal é a família. Qualquer modalidade de família”, avalia a promotora.
A titular da 7ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude defende ainda que a problemática carece de uma atuação mais permanente do estado. “O que precisa é que a política de assistência de fato atenda a essas famílias. Não dá pra gente, há 12 na cidade de Fortaleza, ter seis CREAS e pouquíssimos CRAS. Só pra dar um auxílio de fralda aqui, que não dá pra nem uma semana. Porque quando uma família não é bem atendida, nós vamos ter crianças vulnerabilizadas, vamos ter crianças vítimas de violências pelas suas próprias famílias e vamos ter crianças em abrigos. Completando 18 anos nos abrigos”, destaca.
Para Antônia Lima, o debate também passa pela diversidade no perfil de crianças e adolescentes em Fortaleza. Enquanto algumas regiões apresentam melhores condições socioeconômicas, segundo a promotora, outras vivem um “bolsão de miséria”. “A juventude e infância que é trabalhada no âmbito Regional IV não é a mesma da Regional II, do Meireles e da Varjota, e muito menos do Bom Jardim”, avalia.
A questão toca, inclusive, o problema da insegurança alimentar. “Como é que a gente vai garantir direito para a família que só come uma vez. Como fazer aquele direito de forma satisfatória com esses bolsões de miséria? Então o que nós precisamos? De mais conselhos tutelares? Sim, precisamos, mas precisamos prioritariamente de renda familiar para essas famílias, de mais apoio financeiro e de assistência à saúde e assistência social às famílias”, reforça a integrante do MPCE.
Para o promotor Lucas Azevedo, a proposta de uma nova política de atendimento voltada à população infantojuvenil também deve estar atenda para a melhoria na atuação dos conselhos municipais de direitos da criança e do adolescente, conhecidos como CMDCA ou COMDICAS. Segundo ele, são estes órgãos que lideram a governança na tomada de decisão em relação às políticas públicas voltadas à concretização de direitos.
No entanto, o despreparo de determinados profissionais ainda impede um melhor funcionamento do sistema protetivo, “para que um número cada vez menor de casos não chegue ao Ministério Público e o número cada vez menor ainda de casos não chegue ao Judiciário", defende Azevedo.
“Eles têm um funcionamento muito interessante na época da eleição para conselheiro tutelar, porque funcionam como juízes administrativos daquele processo, mas fora isso, principalmente nas cidades menores, praticamente não tem o funcionamento. Falta estrutura, faltam pessoas capacitadas para estar inseridas nesse conselho. O Ministério Público também está fazendo um esforço muito grande para tentar capacitar os integrantes desses conselhos e estes passarem a funcionar da maneira mais profícua”, afirma Azevedo.
O promotor sugere que o primeiro passo para solucionar as atuais deficiências no sistema de proteção seria colocar todos esses princípios no orçamento público. “Sem dinheiro você não consegue alargar nada em termos de proteção. Esse é o primeiro ponto, é o principal, porque até hoje ainda não se priorizou no orçamento público de uma maneira geral, aquele mandamento constitucional lá do princípio da prioridade absoluta. Não foi ainda. Nós estamos avançando, mas isso precisa se materializar de uma maneira muito clara. Porque sem dinheiro a oferta de serviços ela não vai existir”, defende.
Fortaleza passou por um novo processo eleitoral para Conselho Tutelar 2023 em 1º de outubro deste ano. Diante do importante papel atribuído ás instituições, a escolha de seus membros merece atenção especial, estabelecendo o artigo 139 do ECA que o processo eleitoral será organizado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Comdica, e fiscalizado pelo Ministério Público.
O processo, no entanto, contou novamente com diversos detalhes e problemáticas. Após erro na contagem de votos para eleger os membros, uma nova apuração foi realizada na manhã do dia 7 de outubro, na Academia do Professor, no Centro. Foram eleitos 60 conselheiros e 60 suplentes, totalizados 173.513 votos válidos, 15 votos brancos e 82 nulos.
Este ano, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, juntamente à Justiça Eleitoral, autorizou, pela primeira vez, a utilização de urnas eletrônicas em todo o território nacional. Foi através desse sistema e do Boletim de Urna (BU) impresso pelo aparelho após a votação que um erro foi verificado.
Foi identificado que a plataforma de apuração desconsiderou as casas centesimais dos votos dos candidatos. Por este motivo, uma única pessoa só conseguiria receber até 99 votos em uma urna eleitoral. Na nova apuração, foi utilizado um sistema desenvolvido pelo Ministério Público do Estado do Tocantins (MPTO). Durante o processo, os voluntários receberam os BUs e celulares com acesso ao sistema Integra Voto.
Questionada pelo O POVO sobre o caso, a promotora Antônia Lima, responsável por fiscalizar o processo eleitoral, explicou o procedimento adotado após o caso. “Constatado esse erro na apuração, o Ministério Público de Tocantins nos disponibilizou o sistema desenvolvido por eles que é o Integra Voto e a partir daí firmamos esse TAC exatamente a partir do momento que a Secretaria de Planejamento Orçamento e Gestão admitiu o erro na elaboração do programa. O COMDICA juntamente com a comissão especial firmaram esse TAC para recontagem dos votos e adoção de providências que seriam consequências desse fato”, detalhou.
Aprovada em junho de 2023, por unanimidade, uma Resolução do TSE determinou apenas o apoio da Justiça Eleitoral na escolha dos conselheiros tutelares. Regulado pela Resolução TSE nº 23.719/2023, o apoio previu o empréstimo e a preparação de urnas eletrônicas, o treinamento das pessoas que estiveram nas mesas receptoras de votos, a prestação de suporte técnico ao voto informatizado, a definição dos locais de votação e a cessão das listas de eleitores, mediante solicitação prévia dos municípios.
Segundo a promotora, apesar do suporte, as falhas identificadas revelam a necessidade de reajuste na escolha para conselhos tutelares em todo o Brasil, onde há uma maior atuação da Justiça Eleitoral no processo de votação. Antônia defende que a ação das comissões especiais dos Comdicas ainda não dá suporte para a alta demanda existente, onde o resultado é um processo final em que se acumula irregularidades.
“Eu recebi denúncia de que teve pessoas que entraram na urna, fotografaram voto para comunicar a pessoa que ela votou, isso significa o quê? Significa que esse voto foi comprado. O Ministério Público não vai dar conta disso sozinho não. Não vai dar conta porque é um processo administrativo. Nunca que vai ser apurado. Então o processo de fiscalização não existe. Porque uma comissão especial não dá conta de fazer essa fiscalização. Como é que fiscaliza 89 locais de votação? Com 474 urnas? É um faz de conta. E é isso que tem que ser mudado. Eu acho que eu estou advogando nessa situação com foco no caos”, afirma a promotora.
A ausência do Judiciário no processo eleitoral dos conselhos dificulta até a devida punição das irregularidades a serem identificadas. “Porque vejam só, quem é quem recebe dinheiro para votar em alguém vai chegar para o Ministério Público e dizer: ‘vendi meu voto’. Se a própria comissão chega e diz que não tem condições de apurar as irregularidades do processo de escolha, me diga para que serve condutas vedadas?”, afirma Antônia.
“E acho que a gente precisa avançar e o que a legislação ainda não prevê é a questão criminal, porque hoje, por exemplo, a compra de voto na eleição para conselheiro tutelar não é crime, isso é um absurdo. Precisa ser alterada a legislação para prever os crimes tal como acontece na eleição geral política partidária e também crimes eleitorais para esse processo todo”, completa o promotor Lucas Azevedo.
Em 2023, um estudo de perfil dos novos conselheiros tutelares eleitos revelou um fenômeno que costuma se repetir, a influência religiosa e política no processo de escolha dos profissionais. O papel das igrejas evangélicas, por exemplo, foi destaque no processo eleitoral, onde oito candidatos estão ligados aos templos religiosos. Destes, três conselheiros possuem ligação com a Assembleia de Deus. Além disso, 16 candidatos eleitos possuem vínculos político-partidários.
A conselheira mais bem votada foi Irene Lima, que obteve 4 mil votos. Ela possui ligação com a IURD e com o vereador Ronaldo Martins (Republicanos). Outro caso é Tia Chenot, também da IURD, que totalizou 3.144 votos. Fiscalizadora das eleições, a promotora Antônia Lima confessa que as ações de igrejas e partidos já impactam bastante no pleito.
“Recebi excelentes candidatos, excelentes conselheiros tutelares que não foram reconduzidos. Eles acreditaram que com mil votos conseguiriam entrar, ou que com 900 votos conseguiriam entrar, mas não conseguiram. E não conseguiram por quê? Porque o trabalho por eles executado, embora reconhecido pela sociedade e pelas pessoas, não foi suficiente o volume de votos porque houve um desequilíbrio em razão do abuso do poder político e do abuso do poder religioso”, avalia a promotora.
O abuso do poder político-partidário e religioso nas eleições para conselho tutelar é considerado uma conduta vedada em todo o Brasil em resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda). Segundo a legislação, é de competência dos Comdicas processar e decidir sobre as denúncias referentes à propaganda eleitoral e demais irregularidades, podendo, inclusive, determinar a retirada ou a suspensão da propaganda, o recolhimento do material e a cassação da candidatura.
Segundo a promotora, uma preocupação recorrente do MPCE é também a mistura da moral religiosa com políticas públicas voltadas a crianças e a adolescentes, a mobilização das igrejas gera questionamentos sobre como fiéis evangélicos e católicos conservadores, uma vez eleitos conselheiros, agem em casos que envolvem temas sensíveis para suas religiões, como o aborto.
A Constituição Brasileira qualifica a prática de abortamento como crime, mas assegura que ela seja realizada em casos específicos de violência e de riscos à saúde da gestante. Em 2020, em caso de grande repercussão envolveu uma garota capixaba de 10 anos que passou por um aborto, em Recife, Pernambuco, após ter sido estuprada quatro anos pelo tio. Porem, ela só conseguiu interromper a gestação de 22 semanas com autorização da justiça e fora do seu estad.
A então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para impedir que a criança fosse submetida ao procedimento. Ela enviou à cidade capixaba representantes do ministério e aliados políticos que tentaram retardar a interrupção da gravidez e, em uma série de reuniões, pressionaram os responsáveis por conduzir os procedimentos, inclusive oferecendo benfeitorias ao conselho tutelar local.
“Se a lei autoriza o aborto não há o que discutir, há que se proteger essa criança. É a mesma questão da vacinação na época da Covid. Ora, se a vacinação é impedir que as pessoas morram de uma doença que não tem cura, como é que nós vamos negar a vacina para essas crianças? Porque não tem ainda o seu poder de discernimento para optar se quer ou não”, avalia a promotora Antônia Lima.
No Ceará, “Eu pretendo trabalhar no próximo ano com o viés de que o estado é laico. Eu penso que assim como nós, cada ser humano ao assumir um cargo ele traz em si todas as suas vivências anteriores. Inclusive na sua fé, na sua na sua forma de pensar. Agora esse indivíduo enquanto pessoa, que assumiu um cargo de conselheiro tutelar e é ferrenhamente cristão e poderosamente evangélico, ele tem que abdicar desta sua convicção religiosa para atuar em defesa de uma coletividade que é a infância e juventude”, completou.
O promotor Lucas Azevedo defende ser necessário que os conselheiros não misturem ideologias filosóficas e religiosas com sua atividade funcional, “principalmente se essa crença religiosa ou convicção filosófica ou ideológica está diminuindo ou retirando, excluindo direitos fundamentais de uma parcela da população, direitos garantidos pela Constituição”.
“É simplesmente o fato que crianças e adolescentes no Brasil desde 1988 são detentores de direitos fundamentais. Então eu não posso utilizar uma uma ideologia que eu detenha, uma crença religiosa ou um ideal filosófico para afastar de criança e adolescente direitos fundamentais que elas possuem. É basicamente isso né? Isso todo mundo aprende quem faz direito dos primeiros anos da faculdade”, afirma Azevedo.
Reportagem em dois episódios aborda os mecanismos de atuação dos Conselhos Tutelares e do Ministério Público na rede de proteção das crianças e adolescentes