Em meio à plantação de cana-de-açúcar, a agricultora Meire Mendonça, de 50 anos, se ergue sob o calor do Sol, sentindo o cheiro doce e terroso do ambiente. É hora de colher para preparar a produção da rapadura – produto decorrente da dedicação à terra que a sustenta, no município de Pindoretama, a 43 quilômetros (km) de Fortaleza.
A tradição a acompanha há 25 anos, repassada pelo trabalho de seu pai. O homem teve que fazer uma cirurgia do coração em 1999, e Meire teve que assumir os negócios da família por ser “a mais solta dos irmãos”, os quais já contavam com outras aspirações profissionais. Ela diz ter aprendido “na marra” a como lidar com todos os processos.
“Meu pai, quando estava doente, sempre tinha uma frase que falava muito. Ele dizia: 'Meus filhos, se eles souberem levar meu negócio, vão ganhar dinheiro com a rapadura por muito tempo.' E realmente, ele tinha razão, porque já são 25 anos que eu me sustento no ramo. E tem dois anos que eu entrei em uma cooperativa”, relembrou.
Meire faz parte da Cooperativa da Agricultura Familiar e Economia Solidária do Estado do Ceará (Coopafesp). Ela quis dar este passo para fomentar a venda de produtos em nível local, pois hoje a maior parte das suas rapaduras é levada para a Bahia. “Eu comecei viajando umas nove vezes ao ano e agora viajo até mais, mas com menos mercadoria.”
A situação passou a se tornar difícil na época da pandemia. De lá para cá, as vendas não foram mais as mesmas e os custos continuaram altos. Ao ingressar na cooperativa, ela conseguiu atingir um público mais cearense. “Eu acho que, sozinha, a gente fica fraca. Mas quando se junta todo mundo, a corrente fica mais forte.”
A assessora jurídica da Coopafesp, Rafaelle do Vale, explicou que a cooperativa iniciou em Pindoretama, mas depois se expandiu para outros municípios do Estado. Todos os cooperados detêm o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), trabalhando com frutas, verduras, legumes, pecuária leiteira, floricultura, produtos industrializados, entre outros.
A assessora jurídica destacou, neste sentido, a importância da agricultura familiar na promoção e garantia da diversidade de cultivos, já que o agronegócio – especialmente das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul – costuma focar na monocultura, isto é, em grandes áreas cultivadas com o mesmo tipo de produto.
Todavia, nem sempre foi assim. Antes o Ceará se baseava em um cooperativismo agropecuário voltado ao algodão, mas isso mudou com a disseminação da praga bicudo-do-algodoeiro na década de 1980, de acordo com Nicédio Nogueira, presidente do Sistema OCB-CE – um dos responsáveis por representar e fortalecer as cooperativas locais.
“Hoje estamos vendo um ressurgimento com pequenas produções organizadas em cooperativas, fornecendo produtos para programas governamentais. Porém, a maioria dos negócios dessas cooperativas já são voltados para o mercado convencional e não apenas para programas do governo”, explicou Nicédio.
Algumas das iniciativas que atuam em conjunto com o trabalho das cooperativas no Estado são o Ceará Sem Fome, o Projeto São José e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Este último comercializou R$ 90,5 milhões em 2024 no Estado. O secretário do Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA), Moisés Braz, citou a relevância das entidades para o avanço rural.
Outro ponto de fomento estadual levantado por Moisés é que, até pouco tempo atrás, as cooperativas atuavam, muitas vezes, de forma individualizada, mas hoje já têm, cada vez mais, se organizado em centrais, as quais representam um maior número de cooperativas para auxiliar na obtenção de recursos para custeio e investimentos.
O secretário do Trabalho do Ceará, Vladyson Viana, reforçou que as cooperativas são cruciais para a organização dos trabalhadores e pequenos produtores, levando a maior competitividade e aumentando a capacidade produtiva. A ideia é, assim, fortalecer esta cultura no Estado, já que outras regiões brasileiras têm avançado no cenário.
O futuro do trabalho na agricultura familiar é uma incógnita desde que os jovens passaram a se interessar mais por outras áreas, deixando de lado, por vezes, as tradições culturais do campo. O problema tem ocasionado falta de mão de obra, segundo a agricultora Meire Mendonça.
“Eu acho que, talvez, eu possa estar enganada, mas vejo que a mentalidade mudou. Agora os jovens não têm mais olhado tanto para essas tradições. Essa parte da agricultura acho que não faz mais tanto sentido para eles”, detalha a produtora de Pindoretama.
Meire, que não tem filhos, acredita que os seus sobrinhos não devem seguir a tradição familiar no cultivo da cana-de-açúcar e na produção da rapadura. Reflexiva, ela prevê que o negócio cearense iniciado pelo seu pai deve parar em suas mãos.
A situação da agricultora é reflexo de um cenário não só estadual, mas brasileiro. Um projeto de lei (PL) – Nº 5.587/2023 –, inclusive, tramita no Congresso Nacional para fomentar a criação de um Programa Nacional de Sucessão Rural para Jovens Agricultores (PNSR-JA).
A iniciativa seria voltada a pessoas de 18 a 35 anos, filhas de agricultores familiares, membros de comunidades quilombolas ou outros grupos tradicionais. O intuito é facilitar a transição de propriedades rurais para os jovens, a fim de que eles se mantenham no campo.
Além disso, o PL deve ofertar linhas de crédito para os jovens agricultores, com juros reduzidos e períodos de carência flexíveis, bem como cursos técnicos e treinamentos na área da agropecuária, gestão de negócios e práticas sustentáveis.
O secretário do Trabalho, Vladyson Viana, afirma que pensar em sucessão rural e familiar é fundamental. “O jovem precisa entender que existem diversas possibilidades de atuação para geração de renda no meio rural”.
Vladyson destaca, no entanto, que não deve-se pensar na produção rural da mesma forma que ocorria no passado. Para ele, não é a agricultura em si que não atrai os jovens, mas o modelo de agricultura que é feito.
“Precisamos ouvir os jovens e incorporar cada vez mais informatização, tecnologia e bases de dados, que são importantes para a tomada de decisão. Tenho certeza de que os jovens podem encontrar oportunidades interessantes nessas novas formas de produzir”, acrescentou.
A zona rural do Ceará ainda mantém laços culturais muito fortes, que precisam ser preservados, na visão do secretário, o qual reforça o papel do Estado, com suas políticas públicas, de garantir os instrumentos necessários para isso.
A Coopafesp também tem olhado para o contexto junto aos filhos dos cooperados, estimulando o acesso à parte educacional, com cursos e treinamentos. A assessora jurídica Rafaelle do Vale vê, ainda, impactos sociais e econômicos por meio desta atuação.
“A agricultura familiar tem essa característica muito especial: a maior parte da mão de obra, do gerenciamento e da gestão do negócio é da própria família. Você não trabalha apenas com um indivíduo, mas com uma família inteira”, disse Rafaelle. (Com Agência Senado)
É praticamente impossível fazer a mesma coisa todos os dias do mesmo jeito e esperar resultados diferentes. Para alcançar as mudanças, é preciso inovar. E não é diferente quando se trata de cooperativas, segundo o presidente do Sistema OCB-CE, Nicédio Nogueira.
“Não tem como ignorar a necessidade de inovação. Aqui no Ceará, criamos recentemente uma gerência de inovação para trabalhar focada em diversos ramos do cooperativismo”, acrescentou o gestor em entrevista ao O POVO.
Em nível nacional, as plataformas CapacitaCoop e InovaCoop – vinculadas ao Sistema OCB – têm atuado nesta área. A primeira por meio do ensino à distância a cooperados no Brasil e a segunda via a divulgação de informações, análises, ferramentas e cursos.
Está sendo desenvolvido, também, uma nova interface para a intercooperação, que vai permitir que as cooperativas comercializem produtos entre si, como transporte ou mão de obra. “Essa plataforma é como um ‘Mercado Livre’ do cooperativismo”, na avaliação de Nicédio.
“A implementação desta novidade pode resolver um problema recorrente: pequenos produtores que não têm condições de acessar o mercado”, explicou. O Sistema OCB-CE não detalhou quando a plataforma vai começar a funcionar.
Neste sentido, o secretário do Desenvolvimento Agrário, Moisés Braz, afirmou que um dos principais desafios para o segmento é, de fato, o acesso ao mercado convencional até hoje, pois o comércio costuma ser exigente, cauteloso e competitivo.
O acesso a iniciativas de crédito tem sido um outro empecilho para o crescimento dos negócios, conforme Moisés. “O Governo do Estado tem se mostrado muito preocupado com isso, e tem incentivado as cooperativas a apresentarem projetos para editais.”
A linha de microcrédito Ceará Credi tem buscado fortalecer o setor e capacitar microempreendedores. Até dezembro de 2024, o programa havia financiado R$ 9,2 milhões em 18 operações. Foram 12 cooperativas agraciadas, com três delas na segunda operação.
O Banco do Nordeste (BNB) dispõe, também, do programa de microcrédito rural orientado Agroamigo, que busca melhorar o perfil socioeconômico de famílias no campo. A iniciativa contratou R$ 8,6 bilhões em 2024 no Nordeste e em parte de Minas Gerais e do Espírito Santo. No Ceará, R$ 1,04 bilhão.
O crescimento anual foi de 52% no volume de crédito e de 48% no Estado em comparação ao último ano. O presidente do BNB, Paulo Câmara, reforçou que a ampliação proporciona maior inclusão social consequentemente, o que reforça o papel da entidade de desenvolvimento regional.
“São famílias que nunca tinham tido acesso a esse crédito e agora estão recebendo recursos para aplicar na sua plantação, criação de animais ou beneficiando sua produção. O presidente Lula nos deu essa missão de levar oportunidades a todos os lugares, atendendo principalmente os pequenos”, segundo Paulo Câmara.
Já o secretário do Trabalho, Vladyson Viana, pontuou que o governo estadual tem promovido debates sobre a introdução de novas tecnologias, especialmente na agropecuária, não apenas na mecanização, mas na parte sustentável, como a própria energia renovável.
“Pensar a zona rural de forma sustentável e economicamente produtiva requer mais habilidades. Isso tudo deve ser feito de forma a preservar o meio ambiente e garantir renda para as famílias que optem por trabalhar no campo”, acrescentou.
As mulheres representam mais da metade das pessoas vinculadas ao cooperativismo cearense, isto é, 63%, de acordo com o AnuárioCoop 2024, o qual reúne as informações mais recentes sobre o setor, referentes a 2023, repassadas pelo Sistema OCB-CE.
O cenário do Ceará supera, ainda, o do Brasil, com 41% de mulheres. No Estado, eram 86.129 mulheres contra 51.175 homens (37%) de um total de 137.304 cooperados que declararam seu gênero. O número feminino local representa uma alta de 71,6% em relação ao último ano.
Antes elas eram vistas como “esposas de alguém”, mas hoje elas têm identidade própria, segundo a diretora da Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários no Ceará (Unisol Ceará) e de economia solidária na Central Única dos Trabalhadores no Ceará (CUT-CE), Lúcia Silveira.
“Elas não tinham dinheiro para plantar nem para comer. Agora, além de plantar e ter alimento, elas conseguem vender o excedente e investir em suas famílias. Elas podem sustentar suas casas, comprar o que desejam e realizar sonhos, como conhecer a praia”, disse.
As cooperativas têm trabalhado, ainda, para mudar a visão do homem como “provedor”, conscientizando sobre a importância feminina entre os diferentes entes da sociedade e as pessoas cooperadas, segundo a assessora jurídica da Coopafesp, Rafaelle do Vale.
Os impactos, assim, não têm sido apenas econômicos, mas sociais. Todavia, a diretora de economia popular e solidária da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), Silvana Parente, ressalta a necessidade de olhar para as mulheres nos cargos de gestão.
Isso porque somente 24% das dirigentes de cooperativas são mulheres no Ceará. O presidente do Sistema OCB-CE, Nicédio Nogueira, afirmou que a entidade está trabalhando, cada vez mais, para incentivar as mulheres a assumirem esses papéis.
“Em cooperativas geridas por mulheres, há menos problemas relacionados a desvios de recursos ou finalidades. As mulheres tendem a ser mais efetivas e fiéis ao propósito cooperativista. Para mim, isso não é surpresa”, acrescentou Nicédio.
Série de reportagens mostra o impacto do cooperativismo (agropecuária, consumo, crédito, saúde, infraestrutura, transporte...) no desenvolvimento do Estado