O Brasil encarou mais uma ameaçadora turbulência em sua história recente, com a revelação de uma tentativa de golpe de Estado, desvendada pela Polícia Federal (PF). O esquema, atribuído ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados próximos, incluía planos para assassinar Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. Utilizando inteligência artificial para examinar detalhadamente as mais de 880 páginas do relatório da PF, O POVO+ apresenta como dois cearenses teriam atuado nesse ataque à democracia.
O documento da PF indiciou 37 pessoas – incluindo Bolsonaro, militares da ativa e da reserva, entre eles os cearenses Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Os dois aparecem em diversos trechos do relatório, ligados as ações que envolviam a morte de autoridades e tentativas de pressionar o alto comando das Forças Armadas.
Durante o governo Bolsonaro, Estevam Theophilo ocupou o cargo de comandante de Operações Terrestres (Coter) do Exército, enquanto Paulo Sérgio foi ministro da Defesa no último ano de gestão. O relatório da PF aponta que ambos participaram de momentos decisivos do plano golpista, articulando apoio para uma ruptura institucional.
De acordo com a Polícia Federal, a tentativa de golpe de Estado foi frustrada graças à resistência dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, o general Marco Antônio Freire Gomes e o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, respectivamente. “A resistência dos comandantes impediu a consumação do ato", diz o relatório produzido pelos policiais federais e posto público pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
Para chegar às suas conclusões, que já levou pelo menos oito suspeitos de envolvimento à prisão, a Polícia Federal elaborou um levantamento robusto, que conta com a coleta de uma vasta gama de provas. Nele estão incluídos mensagens, áudios, documentos apreendidos, registros de entrada e saída de órgãos oficiais e depoimentos de testemunhas e investigados.
Vale lembrar que todos os nomes envolvidos no documento têm o direito de defesa e podem ou não serem levados a julgamento. O POVO+ buscou contato com ambos, mas não obteve sucesso para saber de seus posicionamentos e defesas a cerca dos indiciamentos da PF.
Ex-responsável pelo Comando Militar do Sul
Ex-ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro
Liderada por Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, e pelo coronel Bernardo Romão Correa Netto, então responsável pelo Comando Militar do Sul, segundo o relatório da PF, a trama envolvia articulações com outros colegas de farda a apoiar o plano golpista. Além disso, estavam no radar as tentativas de manipulação da opinião pública por meio de divulgação de notícias falsas e a pressão sobre o alto escalão das Forças Armadas do Brasil a aderir ao golpe.
Entre os alvos a serem cooptados estava o cearense e então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. Tendo desempenhado um importante papel na articulação da trama golpista, conforme diz a PF, ele tinha uma posição estratégica para impedir a posse do governo eleito e derrubar o regime democrático brasileiro. Para isso, Paulo Sérgio atuava em três frentes principais, conforme revela o documento elaborado pela Polícia Federal.
Na linha da disseminação de desinformação sobre o sistema eleitoral, ainda em 18 de julho de 2022, o relatório mostra que Paulo Sérgio participou de uma reunião com outros ministros e com o próprio presidente Jair Bolsonaro que, na ocasião, apresentou a embaixadores estrangeiros uma narrativa fraudulenta sobre o sistema eleitoral. Em 9 de novembro, porém, um relatório das Forças Armadas sobre as eleições de 2022 confirmou que não havia indícios de fraude.
Por outro lado, Paulo Sérgio emitiu no dia seguinte uma nota em nome do Ministério da Defesa contemporizando o relatório, dizendo que “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”.
Para a PF, essas e outras ações tiveram como objetivo descredibilizar o processo eleitoral brasileiro, manter acesa a chama da desconfiança e alimentar as narrativas golpistas que se desenrolava.
O então ministro cearense também teria atuado para pressionar as Forças Armadas. Tanto é que ele convocou em 14 de dezembro de 2022 uma reunião com os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, aos quais teria apresentado uma minuta de decreto que visava a instaurar um Estado de Defesa e garantir a permanência de Bolsonaro no poder.
Em depoimento à Polícia Federal, o comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, disse que durante a apresentação de Paulo Sérgio chegou a questionar: “Esse documento (a minuta) prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito?” Ele narra que o ministro cearense ficou calado e, diante disso, compreendeu a intenção golpista presente no relatório.
“Em seguida, o depoente relatou que disse ao ministro da Defesa que não admitiria sequer receber o documento e que a Aeronáutica não admitiria um golpe de Estado. Em seguida, retirou-se da sala”, diz o relatório.
Ainda de acordo com o brigadeiro Baptista Junior, o então comandante do Exército, general Freire Gomes, também expressou descontentamento e “não concordaria com a possibilidade de analisar o conteúdo da minuta”, que estava sobre a mesa do então ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira.
Mais: o ministro cearense teria atuação direta na articulação com o “núcleo duro do golpe”, conforme indica a Polícia Federal. Além de participação de reuniões estratégias para delinear a trama, Paulo Sérgio discutia estratégia e coordenava ações junto com Bolsonaro e outros membros, como Braga Netto, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência), Anderson Torres (Ministério da Justiça e Segurança Pública) e Mário Fernandes (Secretaria-Geral da Presidência).
Entre os planos que Paulo Sérgio tinha conhecimento estava o “Punhal Verde Amarelo”, revela a PF, elaborado por Mário Fernandes, o qual tinha como meta prender ou assassinar Alexandre de Moraes e outras autoridades.
Segundo a PF, Paulo Sérgio também utilizou de sua posição privilegiada no governo para ter acesso a informações confidenciais sobre o processo eleitoral e compartilhá-las com o grupo golpista. Em uma conversa com outros ministros, ele demonstrou desconfiança em relação ao TSE e afirmou que o tribunal controlava o processo eleitoral para favorecer seus próprios interesses.
O então comandante de Operações Terrestres (Coter) do Exército, Estevam Theophilo, foi outro cearense apontado pela PF como envolvido na tentativa de golpe de Estado. Devido à sua posição de autoridade diante de um grande contingente de tropas, ele seria responsável por tentar induzir o comandante do Exército, o general Freire Gomes, a apoiar o projeto antidemocrático.
Para isso, Correa Netto organizou uma reunião com a participação de militares formados em Forças Especiais, os chamados “Kids Pretos”. Na ocasião, Cid e Correa teriam acesso ao coronel Cleverson Ney Magalhães, o qual era assistente de Theophilo.
Essa proximidade era vista como essencial, pois Mauro Cid acreditava que Cleverson poderia influenciar Theophilo a entrar no esquema. Nas páginas 235 e 236 do relatório da PF, estão destacadas mensagens entre Cid e Correa durante o planejamento da reunião, prevista para acontecer em 28 de novembro de 2022, em Brasília.
“O do Estevão (sic) vai estar? Ele é o mais importante”, questiona Mauro Cid a Correa, que confirma, mencionando que Cleverson representaria Theophilo no encontro. O trabalho de convencimento foi bem sucedido e o cearense embarcou no plano.
Aquele dia tem sido considerado pela Polícia Federal como o marco inicial da fase de execução das ações para pressionar o alto comando do Exército. Depois disso, inclusive, militares começaram uma mobilização para disseminar a narrativa de fraude eleitoral e confundir a opinião pública.
Vale lembrar que, em paralelo a essas ações, um grupo de "Kids Pretos" intensificou o monitoramento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Entre 21 e 23 de novembro, Rafael de Oliveira e Hélio Ferreira Lima, membros da força, realizaram atividades de reconhecimento na região da residência funcional de Moraes em Brasília, diz o relatório. Esses atos faziam parte da operação clandestina "Copa 2022", que tinha como objetivo prender ou executar o ministro no dia 15 de dezembro daquele ano.
Mas voltemos a atenção para o comandante cearense, o qual era considerado por Mauro Cid como alguém disposto a "cumprir uma ordem". Em 9 de dezembro, Estevam Theophilo se encontrou com Jair Bolsonaro, por 1 hora, no Palácio da Alvorada para discutir um decreto golpista. O encontro foi registrado na tabela de “Controle de entradas e saídas de pessoas ao Palácio da Alvorada pelo portão principal”.
Durante a reunião entre Theophilo e Bolsonaro, Correa Netto e Mauro Cid trocaram mensagens em que o ajudante de ordens afirma que o coronel cearense “concordou em executar as medidas”. “Desde que o PR (Presidente da República) assine.”
A data de 9 de dezembro também simboliza o retorno de Bolsonaro à vida pública pós um período de reclusão depois da sua derrota nas Eleições 2022, quando não conseguiu a reeleição. Na ocasião, ele fez um pronunciamento no Palácio da Alvorada reforçando uma narrativa golpista de fraude – sem obviamente mencionar o plano criminoso em andamento.
“O discurso seguiu a narrativa da organização criminosa, no sentido de manter a esperança dos manifestantes de que o então presidente, juntamente com as Forças Armadas iriam tomar uma atitude para reverter o resultado das eleições presidenciais, fato que efetivamente estava em curso naquele momento. Jair Bolsonaro, em várias oportunidades em sua fala, vinculou uma ação a ser desencadeada pelos militares para atender aos anseios dos seus seguidores”, diz o relatório da PF.
A ideia do plano era dar o golpe de estado ainda em 2022, para impedir que o governo eleito de Lula assumisse. Os militares também tinham em mente restringir exercício do Poder Judiciário. O empecilho continuava sendo a não adesão de Freire Gomes. Ainda assim, após o encontro com Bolsonaro, Theophilo teria concordado em comandar as tropas terrestres caso o decreto golpista fosse assinado pelo então presidente.
No planejamento golpista, havia a proposta de criação de um “gabinete de crise” que ficaria sob a responsabilidade de Theophilo no Comando de Operações Terrestres (Coter). O plano, no entanto, não se concretizou devido à resistência do general Freire Gomes e outros membros do alto comando do Exército.
Essa recusa, a propósito, gerou insatisfação entre os golpistas, como o general Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro. Braga Netto, inclusive, chegou a dar ordens para que seus apoiadores atacassem Freire Gomes, o qual passou a ser visto como “traidor da pátria”.
Para produção desta reportagem, O POVO+ utilizou a ferramenta Notebook LM, inteligência artificial do Google, para fazer pesquisas mais aprofundadas no relatório produzido pela Polícia Federal que investiga a organização criminosa que atuou com intuito de realizar um golpe de estado no Brasil.
A reportagem carregou o relatório na plataforma de IA e a partir disso foi possível fazer buscas por determinados assuntos no documento de 885 páginas.
Os termos pesquisados e que deram base para esta reportagem foram os nomes dos cearenses “Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira” e “Paulo Sérgio Nogueira”, questionando como estes participaram do plano de ruptura democrática no Brasil. A partir dessas palavras-chave, a ferramenta busca esses termos no documento e apresenta um resumo dos achados.
Toda informação apresentada pela ferramenta é acompanhada de uma citação, que indica onde aquele conteúdo está no texto original. Após receber as respostas, houve um trabalho de conferência e apuração das informações.
Vale lembrar que diferentemente de algumas ferramentas de IA, o Notebook LM não gera memória das conversas.
Série de reportagens mostra como, na última década, avançaram tramas golpistas e antidemocráticas no Brasil e a resistência a esses movimentos por parte da sociedade e das instituições