3.636 dias separam dois eventos marcantes na história democrática contemporânea do Brasil. Em 30 de outubro de 2014, pela primeira vez após a redemocratização, uma eleição presidencial foi contestada no País.
No dia 13 de novembro de 2024 acontece mais um episódio que se revelaria na teia de ameaças à democracia no Brasil. Naquela noite, Francisco Wanderley Luiz, de 59 anos, morreu após disparar uma série de explosivos em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ter detonado um deles junto ao próprio corpo.
No episódio anterior, narramos a cronologia da ideologia antidemocrática que se instalou no País e como o Estado tem se blindado às investidas golpistas cada vez mais comuns na última década. Um de nossos assinantes, o leitor Vladimir Ayres, notou que finalizamos o episódio antes do fatídico dia e comentou que o ato terrorista não era um fato isolado. Eis o comentário que ele escreveu:
"É isso, queridos. Mas vejam que ainda corremos sérios riscos. Vocês escreveram antes do ato terrorista do 13/11. E quem diria que o "terror clássico", o homem bomba chegaria ao Brasil? Pois chegou e não é um ato bem um fato isolado"
Vladimir Ayres
Ao que parece, Vladimir estava certo. Uma semana depois, mais um fator foi adicionado à equação: o ex-presidente Bolsonaro foi indiciado por tentativa de golpe de Estado.
Ele e outras 36 pessoas ligadas a seu governo são suspeitos de arquitetarem uma trama para mantê-lo no poder, que incluía até um plano de assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.
Com o inquérito que aponta para uma organização criminosa no cerne do Governo Federal, fica o questionamento: quais os próximos passos?
O ministro do STF Alexandre de Moraes enviou, no dia 26 de novembro de 2024, à Procuradoria-Geral da República o inquérito da Polícia Federal que indiciou Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe e abolição do Estado Democrático de Direito.
O ministro também retirou o sigilo dos documentos. No relatório final, Moraes destacou que, segundo a Polícia Federal, os 37 indiciados atuavam como um grupo criminoso para desacreditar o processo eleitoral, planejar e executar o golpe de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito.
A ação foi coordenada com a finalidade de manutenção e permanência no poder e com a característica de interligação entre eles, uma vez que alguns investigados atuaram em mais de uma tarefa, colaborando em diversos núcleos de forma simultânea e coordenada.
Agora, cabe à Procuradoria-Geral da República decidir se oferece denúncia contra os investigados, pede o arquivamento dos casos ou solicita mais investigações à Polícia Federal. Na lista de 37 pessoas estão o ex-presidente Jair Bolsonaro, quatro ministros do governo dele, além de militares de alta patente e políticos. A PF apontou seis núcleos de ação:
Alguns dos indiciados não foram diretamente relacionados aos seis núcleos de ação apontados pela Polícia Federal. É o caso de Bolsonaro e do deputado federal Alexandre Ramagem, que foi diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo anterior.
Ramagem é investigado em outro inquérito pela criação de uma Abin paralela para monitorar ilegalmente autoridades e políticos durante o governo.
De acordo com o inquérito, Bolsonaro atuou de forma proativa como o chefe da Abin, assessorando com estratégias de ataque às instituições e ao sistema eleitoral. Na decisão, Alexandre de Moraes manteve o sigilo das investigações que envolvem o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens que fez delação premiada.
O relatório da Polícia Federal descreve a estratégia dos golpistas para espalhar suspeitas, sem nenhum fundamento, sobre as eleições. Os investigadores apontaram o grupo produziu e espalhou um grande volume de informações falsas em vários canais, especialmente na internet, afirmando, sem provas, que as eleições foram fraudadas.
Os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude eleitoral, disseminada por muito tempo, seria extremamente eficiente em seu público-alvo, já que o endosso de um grande número de usuários aumenta a confiança na informação transmitida. O grupo continuou agindo da mesma forma logo após o fim das eleições de 2022, em que Lula se elegeu presidente.
A Polícia Federal indicou que, mesmo ciente da inexistência de fraudes nas eleições de 2022, o núcleo começou a atuar de forma mais incisiva, utilizando a metodologia desenvolvida pela milícia digital para reverberar a ideia de que as eleições foram fraudadas.
A intenção era estimular os seguidores a resistirem na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado.
Enquanto um grupo tentava garantir apoio popular disseminando mentiras, outro núcleo jurídico atuava na produção de documentos na tentativa de legitimar o golpe de Estado. A PF acolheu provas que evidenciam a participação de Jair Bolsonaro, Felipe Martins, Anderson Torres e Amaury Feres Saade na confecção da minuta de decreto de golpe.
Embora não seja possível processar criminalmente alguém que já morreu, a definição de qual crime foi cometido é importante por vários motivos, entre eles a possibilidade de haver outras pessoas ou grupos envolvidos.
É isso que está em jogo nas investigações do ataque perpetrado à sede do Supremo Tribunal Federal por Tiü França, ex-candidato a vereador e filiado ao Partido Liberal (PL).
A discussão sobre se o ato foi ou não terrorismo é algo que vai muito além do direito: se tornou uma disputa política. A apuração conduzida pela Polícia Federal apontou que Francisco Wanderley Luiz tinha o objetivo de desencadear uma série de eventos futuros com o atentado.
Segundo o laudo necroscópico, produzido pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal, Wanderley queria gerar um “efeito dominó” com a sua morte.
Márcio Moretto Ribeiro, doutor em ciências da computação, professor do curso de sistemas de informação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP) e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, afirma que ainda não há evidências que conectem, diretamente, Wanderley a um grupo coordenado de ação.
"Mas, sem nenhuma dúvida, a gente vive um momento de altíssimo engajamento dos setores da direita conservadora e autoritária. E o Tiü França é, como tudo leva a crer, fruto desse clima social", afirma.
Na investigação, os peritos destacaram a camisa que ele vestia por baixo do terno verde que vestia durante o atentado. A vestimenta mostra um homem empurrando uma fila de peças de dominó. De acordo com as investigações, o homem-bomba se enxergava como alguém "cujo papel seria servir como gatilho e, através da própria morte, deflagrar uma reação em cadeia”.
“Podemos interpretar na escolha dessa camisa a intenção de passar uma mensagem, a de que a vítima não considerava a própria morte como um ato isolado, mas sim dentro de um contexto e conectada a uma série de eventos futuros. Mais precisamente, desencadeando essa série de eventos", diz o relatório.
A perícia confirmou que o homem morreu por traumatismo cranioencefálico depois de segurar uma bomba caseira contra a cabeça. Os técnicos apontaram que não existiam vestígios de tiros contra Wanderley, desmentindo uma teoria espalhada por bolsonaristas nas redes sociais de que ele teria sido alvejado.
O passado recente revela a existência de grupos organizados e dispostos a recorrer à violência e ao terrorismo para alcançar seus objetivos. Um exemplo foi o plano de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília após a eleição de Lula.
Antes disso, em 2020, ocorreu o episódio do “Acampamento dos 300”, uma organização paramilitar liderada por Sarah Winter que se estabeleceu em Brasília e chegou a marchar em direção ao STF carregando tochas acesas.
Após ser presa, Sarah confessou que as ameaças ao Tribunal tinham o respaldo de membros do Planalto. Além disso, houve relatos de conspirações para emboscar e sequestrar Alexandre de Moraes, bem como o plano de golpistas em 8 de janeiro de enforcá-lo na praça dos Três Poderes.
Jorge Hélio Chaves, advogado, professor de direito constitucional e membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por dois mandatos, reforça que há uma ligação entre todos os fatos.
"Esse cidadão vinha anunciando que praticaria o atentado, anunciou nas redes sociais que entre os dias 13 e 16 aconteceria um fato que as instituição não iriam esquecer. O ato praticado por ele não é isolado, ele tem repercussão", disse.
"Eu descartaria a pressa em categoriza-lo como um lobo solitário. Há um modus operandi, uma conexão entre todos os atentados fracassados, em especial o de 8 de janeiro", conclui.
Para algumas figuras do campo político, o momento parece o mais oportuno para pressionar Bolsonaro pelos atos que têm sido registrados, demonstrados e, em grande medida, comprovados pelas instituições.
As dúvidas políticas — como, por exemplo, se Bolsonaro continuaria ou não sendo uma possibilidade viável para a eleição de 2026 — parecem estar sendo dissipadas.
Não só pela gravidade do teor que já era conhecido em relação à sua tentativa de influenciar ou participar do golpe de Estado, mas também por essa escalada grave que envolve um plano de assassinato.
Ao comentar o caso, a deputada Gleisi Hoffman (PT-PR), presidente do PT, ressaltou que o ex-presidente tinha conhecimento da suposta tentativa de golpe de Estado. "Tem focinho de porco, orelhinha de porco, rabinho de porco e não é porco? Claro que é. Bolsonaro sabia, foi o grande mentor desse plano todo", disse.
Para a deputada Maria do Rosário (PT-RS), houve uma "trama ardilosa, violenta, inconstitucional, criminosa, para tentar matar Lula, Alckmin e Moraes". Segundo ela, não é possível pensar em anistia para esse tipo de atitude, em referência ao Projeto de Lei 2858/22, que prevê anistia aos envolvidos nos atos de vandalismo nas sedes do Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
O deputado Pastor Henrique Vieira (Psol-RJ), vice-líder do governo na Câmara dos Deputados, também se disse contra a aprovação da proposta de anistia. "Não podemos passar pano, reduzir a intensidade, e não faz sentido nenhum esta Casa passar pano e levar adiante um projeto de anistia para quem atentou contra a própria democracia e, no fundo, contra o próprio Parlamento brasileiro."
Para a cientista política Carolina Botelho, a base de apoio de Bolsonaro não deve sofrer um grande impacto com as denúncias. "Mesmo durante o governo Bolsonaro, diante de situações como a pandemia e ameaças às instituições democráticas, a adesão a ele se manteve forte. Acredito que, para parte desse grupo, essas denúncias mais recentes podem gerar alguma reversão de apoio. Mas não acho que isso será predominante", disse.
A pesquisadora ressalta, porém, que caso Bolsonaro seja definitivamente excluído do jogo político, haverá uma lacuna a ser preenchida. Não à toa, já vemos alguns atores políticos se movimentando para assumir esse espaço. Ela cita o governador Ronaldo Caiado (União Brasil), bem como Tarcísio de Freitas (Republicanos), Romeu Zema (Novo) e até figuras como Pablo Marçal, que buscam captar esse eleitorado.
"O que preocupa, no entanto, é que nenhum desses nomes, até agora, se opôs de maneira firme às práticas mais graves de Bolsonaro. Pelo contrário, em muitos casos, eles endossaram ou silenciaram diante de suas atitudes antidemocráticas", pontua.
A saída parece, então, apontar para a cooperação entre os poderes e os mecanismos de responsabilização dos agentes. Jesus Rosa, doutor em direito e professor da graduação na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) aponta que a complexidade dos casos exige respostas igualmente elaboradas.
"É preciso estabelecer uma saída, por meio da conversa contínua entre os Poderes, o que pode conferir maior dinamismo para resoluções em todas as possíveis instâncias, evitando assim a concentração de autoridade e a aparência de abuso de poder".
Já Luiz Henrique Antunes Alochio, doutor em Direito e membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB, afirma que o essencial nas democracias é o sistema de responsabilização dos agentes públicos. Para o magistrado, os mecanismos de responsabilização de funcionários públicos, eleitos ou não eleitos devem estar presentes desde o processo de recrutamento, seleção e formação, e também na perspectiva da disciplina e do afastamento dos cargos.
"Já não se trata de Lula da Silva ou Bolsonaro. Não se trata mais de governos de direita ou de esquerda. Temos de considerar valores democráticos que não podem depender de comportamentos quase monárquicos", afirma.
Élio Gasda, filósofo e professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia é preciso compreender a dimensão das ameaças, que na visão dele, incluem a instrumentalização da imagem do deus cristão como estratégia política.
O professor, que também é padre, aponta que o slogan “Deus, pátria e família” é "um fenômeno global operado por políticos nada interessados nos ensinamentos cristãos".
"Aliança entre militares, neoliberais e pentecostais, conectam-se em uma mesma gramática. Puritanismo religioso e capitalismo se fundem ao passo que as notícias falsas deterioram a qualidade da democracia e produzem um cenário falso que interfere no processo de escolha dos eleitores, representando um risco à democracia", avalia.
O filósofo prossegue, dizendo que a democracia pode não ser o melhor dos governos. "Mas é o único regime aceitável ou o melhor dos piores regimes de governo, dizia Winston Churchill", relembra.
"E não se pode relutar ou desanimar na procura de outro regime melhor. Cabe sempre abrir novos horizontes em busca de uma sociedade mais justa", afirma antes de concluir com uma frase que pegamos emprestada para fechar, também esta reportagem.
"A maior ameaça à democracia é pensar que não há ameaças".
"Olá, eu sou Mateus Mota, aqui do O POVO+! Deixa eu te perguntar: o que você achou desse conteúdo? Me conta sua opinião aqui embaixo, nos comentários. Até a próxima! :)"
Série de reportagens mostra como, na última década, avançaram tramas golpistas e antidemocráticas no Brasil e a resistência a esses movimentos por parte da sociedade e das instituições