O direito do indivíduo de não permitir que um fato do passado, ainda que verídico, seja exposto ou publicado, causando danos ou transtornos, é reconhecido em vários países, com diferentes abrangências. Em maio de 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia, cujos poderes se estendem ao território dos 27 integrantes do bloco, considerou que os indivíduos têm direito de solicitar a remoção de resultados "inadequados, irrelevantes, não mais relevantes ou excessivos" sobre eles em mecanismos de pesquisa, como o Google ou o Yahoo.
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Quando se sentir prejudicado, o indivíduo abre uma solicitação direto na plataforma, que deve analisar cada caso manualmente. Caso seja avaliada como verdadeira a existência de links com dados "inadequados, irrelevantes, não mais relevantes ou excessivos", as páginas serão removidas dos resultados de busca.
O entendimento diz respeito ao direito ao esquecimento, uma noção que permitiria ao indivíduo solicitar a remoção ou exclusão de conteúdos da web relacionados a fatos do passado que possam causar danos ou transtornos. Não se trata apenas de antecedentes criminais: uma variedade de situações que envolvem a quebra da privacidade ou o dano à imagem se encaixam aqui. É sobre este direito, não descrito na legislação brasileira, que o Supremo Tribunal Federal (STF) deve dar os contornos em julgamento nesta quarta-feira, 3.
A decisão da justiça europeia foi a primeira no mundo a se debruçar tão detalhadamente sobre o tema, e, sem dúvida, levando em conta os 447 milhões de habitantes do bloco, a mais abrangente. Desde então, conforme o próprio Google, foram feitas mais de 3,9 milhões de solicitações de retirada de conteúdo das pesquisas. Ao todo, pouco mais de um milhão de links foram desindexados.
A despeito da restrição geográfica, a jurisprudência do caso estabeleceu as diretrizes para a remoção de tais conteúdos. “Dados sensíveis” como posicionamento político ou os antecedentes criminais são de interesse público, segundo o tribunal, e não podem ser removidos por solicitação do indivíduo.
Um dos magistrados também sugeriu que, ao analisar a retirada do link, o Google avaliasse se o solicitante é uma pessoa pública - famosos, políticos, empresários - e, em se tratando de processos criminais, mantivesse sempre atualizado o andamento, isto é, se foi condenado, inocentado.
“O direito à informação é um direito da coletividade, é uma conquista fundamental. Acho que se estiver efetivamente demonstrando dano a uma pessoa, eles (os links) podem sim ser retirados, excluídos, os que geram dano sem ter retorno à sociedade. Por exemplo, declarações públicas não entram aí (nos que podem ser excluídos). Um crime que ele cometeu é puramente interesse social”, pondera o advogado especialista em direito digital.
Por outro lado, o profissional elenca tipos de conteúdo que, acredita, poderiam ser excluídos em favor do indivíduo sem prejuízo ao coletivo, como “conteúdos que foram publicizados sem a autorização ou mesmo conteúdos que faziam parte de um determinado contexto que está no passado”, isto é, cujas informações estão desatualizadas, o que teria especial relevância em casos relacionados a problemas judiciais.
Em sua página, o Google também alude a esta distinção: “Determinar se o conteúdo é ou não de interesse público é algo complexo e pode levar vários fatores em consideração, incluindo, entre outros aspectos, se o conteúdo é relacionado à vida profissional do solicitante, a crimes cometidos no passado ou a cargos políticos e públicos, além de se o material é de autoria do próprio solicitante ou consiste em documentos governamentais ou jornalísticos”, aponta em sua página voltada para a solicitação de remoção de conteúdos.
No levantamento da gigante das pesquisas, sites de redes sociais são alvo de apenas 12,3% dos pedidos de remoção. Sites de notícias, 19,3%. Cerca de 52% dos pedidos de desindexação dizem respeito a sites diversos e 16,3% a outros. O próprio poder do Google na ambição do esquecimento tem limites. O que a empresa faz é retirar os links dos resultados de busca, e não excluir o conteúdo da web - o que está além de suas atribuições.
Um dos casos mais emblemáticos do entendimento europeu sobre o direito ao esquecimento é o do espanhol Mario Costeja González. Em 1998, por dívidas, seu apartamento foi levado a leilão judicial pelo governo. O anúncio do leilão foi posto na versão impressa do jornal La Vanguardia e, mais tarde, na versão online. Portanto, ao alcance do Google.
Mais de 15 anos depois, quando já havia regularizado os débitos, o nome de González continuava a aparecer no Google, com o link do jornal, vinculado ao débito. Isto é, 15 anos depois, ele ainda era “caloteiro” para a internet. O homem acionou a justiça europeia, e seu caso faz parte das decisões que estabeleceram as regras de 2014 do bloco para o esquecimento.
Em 2013, Paula Nogueira Peixoto acionou a Justiça para solicitar que a revista IstoÉ parasse de citar seu nome em conteúdos envolvendo o assassinato, em 1992, da atriz Daniella Perez, filha da roteirista global Glória Perez. Paula Nogueira Peixoto era, anteriormente, Paula Thomaz, esposa de Guilherme de Pádua, colega de elenco de Daniella na novela “De corpo e alma” da TV Globo, com quem desferiu 18 punhadas na vítima.
O trecho destacado no voto do relator é relevante para entender como o direito ao esquecimento é abordado no que se refere ao direito do indivíduo de controlar informações relacionadas a um passado potencialmente danoso no presente. Em junho de 2020, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu o direito de esquecimento a um homem que foi preso, em 2004, com 110 micropontos de LSD.
Em sua decisão, a desembargadora Thania Pereira Teixeira de Carvalho Cardin ordenou ao Google a desindexação em suas páginas de pesquisa dos conteúdos relacionados ao crime. Segundo a magistrada, “permitir que o delito praticado pelo autor seja lembrado em uma simples busca por seu nome(...), em nada auxilia à formação do contexto histórico social e representa ofensa à imagem e honra do autor”. E continua: “perpetuar as notícias do crime cometido pelo autor em 2004 é estigmatizá-lo eternamente”.
As abordagens diferentes mostram a delicadeza do tema que o STF deve tentar padronizar na quarta-feira, 3. “No Brasil nós ainda não temos uma definição ou um conceito de um direito ao esquecimento, não temos isso legalmente definido. Até agora o que nós temos? Julgamentos do STJ, julgamentos em primeira instância, usando e importando esse conceito da Europa”, analisa Melina Ferracini, professora de pós-graduação em direito digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autora do livro “Direito ao esquecimento na internet: Das decisões judiciais no Brasil”.
E continua: “A gente tem que analisar questões importantes também como a referência de pessoa pública ou de pessoas privadas, cidadãos comuns. Justamente pelo destaque. No caso da Daniella Perez, você também tem que levar o elemento da repercussão pública no caso do esquecimento. Temos que analisar caso a caso como a privacidade da pessoa foi atingida, qual o tamanho do estrago, da proporção que a privacidade da pessoa pública ou do cidadão comum foi atingida”.
"Eu acredito que os ministros vão decidir o que é direito ao esquecimento, eles vão conseguir conceituar, dizer como é sua aplicação, critérios, o objetivo é que eles tragam critérios. Mas acredito que vai faltar a regulamentação desse direito ao esquecimento no ciberespaço"
Outro critério seria o tempo passado. De modo geral, para aplicar o direito ao esquecimento, é necessário um tempo decorrido, ser um fato do passado, “porque aquele fato lembrado vai trazer alguma dor psicológica, pode te prejudicar no emprego, prejudicar socialmente, você não quer que seja lembrado para que você possa seguir normalmente”.
Ainda assim, mesmo a configuração de fato histórico e de pessoa pública não significa um ponto final do debate. “Uma pessoa pública que tenha cometido um crime que tenha sido amplamente divulgado na imprensa, quer dizer que essa pessoa nunca vai ter direito a ser esquecida, mesmo tendo cumprido a pena?”, questiona Melina.
André Peixoto, presidente da comissão de direito da tecnologia da informação da OAB-CE, também aponta a necessidade de avaliar, caso a caso, se aquela informação é útil à sociedade ou simplesmente danosa ao indivíduo.
“Antes do advento da internet, quando a pessoa passava por um fato verdadeiro, que era constrangedor, as pessoas acabavam esquecendo. O problema é que com a internet ela fica sempre evidente. Às vezes uma informação de 3, 4, 5 anos atrás fica aparecendo como se fosse atual. Isso faz com que haja uma exposição sempre atual de uma coisa do passado”, reflete.
Ainda assim, ele pondera que o indivíduo “não precisa ter o domínio total sobre todas as informações relacionadas à sua biografia”. “E se cada pessoa tiver o direito de moldar a sua biografia? Será que não estamos moldando a verdade?”, reflete.
"Eu acho que o STF vai privilegiar o direito à informação e estabelecer parâmetros nos quais o exercício do direito ao esquecimento possa ser utilizado"
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