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Temos direito de deletar nosso passado dos jornais e das redes sociais?
Reportagem Seriada

Temos direito de deletar nosso passado dos jornais e das redes sociais?

DIREITO AO ESQUECIMENTO | Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal analisa um caso que pode definir as bases do chamado direito ao esquecimento, que permitiria a exclusão, na internet, de conteúdos potencialmente prejudiciais à honra de uma indivíduo
Episódio 1

Temos direito de deletar nosso passado dos jornais e das redes sociais?

DIREITO AO ESQUECIMENTO | Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal analisa um caso que pode definir as bases do chamado direito ao esquecimento, que permitiria a exclusão, na internet, de conteúdos potencialmente prejudiciais à honra de uma indivíduo
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O que aparece como resultado quando você digita seu nome na barra de pesquisas do Google? Se pesquisar o nome do repórter que assina esta matéria, por exemplo, o primeiro resultado é uma página do jornal O POVO reunindo os conteúdos assinados pelo profissional.

Outras pessoas, quando pesquisam por seus próprios nomes, encontram seus perfis nas redes sociais. Outros tantos veem seus nomes relacionados a sites compiladores, como os judiciais. Tantos mais se veem enredados em notícias, entrevistas, memes. Por fim, alguns, ao buscarem seus nomes na web, são lembrados de seus crimes.

Leia também | O direito ao esquecimento na Europa e no Brasil

Os resultados das ferramentas de busca na internet, cujo Google é o maior representante em nível mundial, são o ponto nevrálgico de uma discussão não exatamente nova, porém atualizada, sobre o direito do cidadão de ter suas informações esquecidas, seja pela internet, seja pela imprensa.

O caso de Aida Curi chocou o Brasil em 1958 e voltou aos tribunais em 2004, desta vez pelo direito ao esquecimento
Foto: Wikimedia Commons
O caso de Aida Curi chocou o Brasil em 1958 e voltou aos tribunais em 2004, desta vez pelo direito ao esquecimento
Em 1958, a jovem Aida Curi, de apenas 18 anos, sofreu uma tentativa de estupro por três homens, desmaiou e foi jogada, ainda viva, da cobertura de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro. Quarenta e seis anos depois, o caso foi dramatizado no programa Linha Direta, da TV Globo. A família, alegando “feridas psicológicas” causadas pela dramatização, acionou a Justiça e pediu o direito da tragédia ser esquecida.

Nesta quarta-feira, 10, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento do caso Ainda Curi, com repercussão geral, isto é, servindo de exemplo para outros casos do tipo Brasil afora, o que, acredita-se, deve estabelecer bases mais nítidas para o direito ao esquecimento no Brasil.

Este é o direito que um indivíduo possui de não permitir que um fato do passado seja exposto ou publicado, causando danos ou transtornos. Não se trata apenas de antecedentes criminais: uma variedade de situações que envolvem a quebra da privacidade ou o dano à imagem se encaixam aqui, até mesmo as pessoas que viralizam como memes na internet.

No Brasil, ainda não há uma definição legal do que é este direito ou como aplicá-lo. Contudo, um dos principais efeitos da aplicação do esquecimento, por todo o mundo, tem sido a desindexação dos resultados sobre determinado indivíduo em sites de buscas, como o Google.

Até que ponto este direito pode ser aplicado? Em que situações o interesse particular de um indivíduo em excluir determinadas informações se choca com o interesse coletivo do acesso à informação ou se confunde com a censura?

Caso Aida Curi está há anos parado no STF e tem relatoria do ministro Dias Toffoli(Foto: Fellipe Sampaio/STF)
Foto: Fellipe Sampaio/STF Caso Aida Curi está há anos parado no STF e tem relatoria do ministro Dias Toffoli

A apreciação do caso na Corte começou na última quarta-feira, 3. O relator, ministro Dias Toffoli, defendeu que o chamado 'direito ao esquecimento' é incompatível com a Constituição. Para ele, não se pode conceder a alguém 'o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos' em meios de comunicação.

"É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento assim entendido como o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação análogos ou digitais", afirmou o ministro ao proferir voto. Toffoli foi o primeiro e o único a votar na ação. Na sessão que será retomada hoje, serão feitas as leituras dos votos dos demais ministros.

O entendimento do STF sobre o caso deve embasar decisões futuras no sistema judiciário em todo o País, embora as solicitações de esquecimento não sejam novidades nos tribunais. Casos semelhantes já foram analisados pelos tribunais de justiça dos estados e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Os resultados são um tanto conflitantes, porém, tendem a reconhecer que há sim o direito a ser esquecido - resta saber qual a extensão, o alcance, em que situações.

Qual o alcance do direito
ao esquecimento na web?

Mesmo que obtenha uma decisão favorável ao esquecimento, um indivíduo deve enfrentar uma série de dificuldades relacionadas à perseguição do conteúdo na infinidade da internet. Quando se quer remover algo, é possível entrar em contato direto com o autor, ou seja, com quem publicou. Se o autor não quiser remover, é possível entrar em contato direto com a publicadora.

Por exemplo, no caso de um jornal, o autor seria o repórter, e a publicadora, o próprio jornal. No caso de uma rede social, o usuário é o autor, a rede social a publicadora. E assim por diante. Em caso de blogs ou sites, a lógica é a mesma. Se com esses níveis diretos de contato o conteúdo não for retirado, é possível entrar com pedido de remoção contra o Google - que não é autor, nem publicador, apenas um buscador.

Na Europa, desde a jurisprudência de 2014, é possível entrar com o pedido apresentando justificativas direto ao site, sem recorrer ao tribunal. Os casos só chegam à Justiça se a remoção for recusada, e o solicitante insistir. No caso brasileiro, é preciso ter um caso legal, acionar a Justiça, já que não há um parâmetro semelhante ao europeu.

Mesmo que consiga um resultado favorável, aqui ou na Europa, não há garantias de que o conteúdo vá ser esquecido de fato. “O Google é uma ferramenta de pesquisa, uma ferramenta que indexa tags, palavras-chave, e a partir das palavras que você insere na busca, ele traz ali os resultados que considera mais importantes. Ele não consegue remover o conteúdo de um site, aquilo é privado para o criador do conteúdo. O Google como ferramenta de pesquisa só consegue desindexar o resultado da página”, explica o desenvolvedor de software Rafael Fróes, formado em Ciências da Computação. 

Com a decisão da justiça europeia, o Google criou um canal para solicitação de remoção de conteúdos de seus resultados. Contudo, espaço é válido somente para o bloco europeu(Foto: Robyn Beck/AFP)
Foto: Robyn Beck/AFP Com a decisão da justiça europeia, o Google criou um canal para solicitação de remoção de conteúdos de seus resultados. Contudo, espaço é válido somente para o bloco europeu

A questão é ainda mais delicada quando se trata de conteúdos como vídeos e imagens. “Existem diversas maneiras de se salvar um vídeo, uma imagem, em diferentes bancos de dados. Cada pessoa que posta é como se fosse um conteúdo privado dessa pessoa. O Google não consegue remover o conteúdo desse banco de dados dessa pessoa”, detalha o especialista.

Já para redes sociais, o tratamento é outro. Isso porque o usuário, ao postar lá, está utilizando o próprio banco de dados da rede. Assim, quando o indivíduo aciona a remoção da rede, é possível não só desindexar, mas removê-lo de fato. Contudo, mesmo neste caso, não é uma certeza o esquecimento daquela história, vídeo ou foto.

“Depende do nível de alcance de quem conseguiu postar. Tirando a questão tecnológica, depende do fator humano. Vamos supor que você posta em uma página com milhões de seguidores, daqui que ela seja removida você bate print, grava vídeo… Até que consiga remover, ela não acaba no mundo, multiplica diversas vezes”, avalia Rafael Fróes.

O Google concentra mais de 90% das pesquisas realizadas por brasileiros (Foto: Marcos Santos/Jornal da USP)
Foto: Marcos Santos/Jornal da USP O Google concentra mais de 90% das pesquisas realizadas por brasileiros

Não obstante, a remoção do conteúdo não é a mesma coisa que o direito ao esquecimento, como pontua Melina Ferracini, professora de pós-graduação em direito digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie: “Direito ao esquecimento é o apagamento em todos os âmbitos, de imprensa, de empresas que detenham determinados dados e vídeos. Quando você diz remoção, está falando especificamente de conteúdos na rede, no ciberespaço, e essa é uma grande noção que o STF vai ter que se debruçar. Dentro do que eu enxergo, temos direito ao esquecimento de forma ampla, que é o apagamento de fotos, de dados. E a remoção de conteúdos é um braço do direito ao esquecimento”.

Por ser o Google o maior buscador em uso no Brasil, concentrando mais de 90% das pesquisas realizadas por brasileiros, é sobre a empresa que recai boa parte dos pedidos de esquecimento, mesmo que não signifique o completo olvido da história. Ainda que o conteúdo não seja excluído por terceiros, saindo do topo de resultados, a tendência é que o assunto realmente esfrie ou caia em progressivo esquecimento. Segundo a própria plataforma, 75% dos usuários raramente saem da primeira página de resultados.

“O alcance do Google é, pelo menos até a Europa e Américas, indiscutivelmente o maior que tem. Eu, como ser humano, se tivesse um conteúdo que quisesse remover, se conseguisse remover do Google, já ficaria satisfeito”, considera Fróes.


 

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