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A eletroconvulsoterapia e o paciente psiquiátrico: a história por trás do estigma
Reportagem Seriada

A eletroconvulsoterapia e o paciente psiquiátrico: a história por trás do estigma

No cinema e na literatura, a eletroconvulsoterapia é elemento frequente - muitas das vezes, para punir pacientes. Retrato contribui para perpetuar o estigma da técnica, que hoje tem pouco a ver com o que é visto nos filmes
Episódio 2

A eletroconvulsoterapia e o paciente psiquiátrico: a história por trás do estigma

No cinema e na literatura, a eletroconvulsoterapia é elemento frequente - muitas das vezes, para punir pacientes. Retrato contribui para perpetuar o estigma da técnica, que hoje tem pouco a ver com o que é visto nos filmes
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"Alguma coisa dobrou-se dentro de mim, me dominou e me sacudiu como se o mundo estivesse acabando. Ouvi um guincho, iiii-ii-ii-ii-ii, o ar tomado por uma cintilação azulada, e a cada clarão algo me agitava e moía. Eu achava que meus ossos se quebrariam e a seiva jorraria de mim como uma planta partida ao meio. Fiquei me perguntando o que é que eu tinha feito de tão terrível”.

O trecho acima foi escrito pela poeta e romancista estadunidense Sylvia Plath, um dos principais nomes da literatura norte-americana no século XX, em seu livro A Redoma de Vidro, um clássico lido por milhões. No livro semi-biográfico, Plath usa um pseudônimo para contar sua história e a depressão que a acompanhou por toda a vida.

A escritora norte-americana Sylvia Plath teve, ao longo da vida, várias crises de depressão(Foto: Colorado State University)
Foto: Colorado State University A escritora norte-americana Sylvia Plath teve, ao longo da vida, várias crises de depressão

Plath foi submetida à ECT em julho de 1953. Não recebeu anestesia e o resultado foi o descrito. No entanto, ela foi convencida a passar por um novo procedimento em outubro do mesmo ano. Desta vez, descreveu, no mesmo livro, com outros olhos. “Todo o calor e o medo tinham se expurgado. Eu me senti, para minha surpresa, em paz. A redoma de vidro pairou, suspensa, alguns centímetros acima de minha cabeça. Eu estava permitida a tomar o ar que circulava”.

De fato, nos anos seguintes, Plath retornou ao Smith College, onde se formou com honras, e depois foi à Cambridge. Cerca de oito anos depois, aos 30 anos, cometeu suicídio. A história da autora é uma das tantas que povoam o imaginário popular não só acerca da eletroconvulsoterapia, mas também do arquétipo do “paciente psiquiátrico”. Isto é, “o louco”.

Livro "A Redoma de Vidro", de Sylvia Plath, é uma ficção semi-biográfica em que a autora utilizou uma personagem para contar a história real de sua vida(Foto: Divulgação/Biblioteca Azul)
Foto: Divulgação/Biblioteca Azul Livro "A Redoma de Vidro", de Sylvia Plath, é uma ficção semi-biográfica em que a autora utilizou uma personagem para contar a história real de sua vida

O estereótipo, naturalmente, migrou para o cinema. E deu origem a uma série de produções que quase formam um subgênero cinematográfico, os filmes de psiquiatra. “O psiquiatra americano Irving Schneider escreveu que 'Se a psiquiatria não existisse, os filmes poderiam tê-la inventado. E, de certa forma, o fizeram'. O cinema criou seus próprios métodos de tratamento, teorias e profissionais”, afirma o professor Dirceu Zorzetto, do Departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Zorzetto, ao lado de outros dois colegas, analisou uma lista de filmes dos cinemas estadunidense e brasileiro, desde a década de 1930 até o início dos anos 2000, em que eram retratados pacientes ou profissionais de psiquiatria. São filmes de autores conhecidos, como Alfred Hitchcock, e ganhadores do Oscar, como Um Estranho no Ninho, de Milos Forman. A partir da década de 60, as representações são majoritariamente negativas.

“O psiquiatra era visto como um agente repressor da sociedade, cujo objetivo seria o de controlar e limitar desvios de normas sociais. Filmes dessa época tendem a apresentar a Psiquiatria como uma especialidade que não hesita em utilizar tratamentos violentos, ECT, lobotomia, para punir seus transgressores. Já os pacientes com transtornos mentais passam a ser representados por alguns estereótipos que só conseguem perpetuar seu estigma”, analisa o médico.

No artigo, este processo de estereotipação dos pacientes foi dividido em cinco tipos, que você pode conferir:


No caso dos profissionais de psiquiatria, a representação nas películas é pouco lisonjeira. “Muitos psiquiatras do cinema são loucos ou maus. Em cerca de metade de todos filmes em que são representados, os psiquiatras são incompetentes, e muitos outros cometem violações éticas importantes”, constata Zorzetto.

A eletroconvulsoterapia, em particular, recebe atenção especial - e negativa - quando está captada pelas câmeras. Segundo o docente, “a ECT teve um tratamento particularmente prejudicial no cinema, muitas vezes sendo usada como punição ou sem consentimento por psiquiatras malévolos com resultados prejudiciais ou ineficazes”.

Mas não foram apenas sobre os personagens da ficção que as histórias do cinema agiram. Décadas de obras do gênero contribuíram - embora, importante ressaltar, não sejam as únicas responsáveis - para criar uma sensação de desconfiança em relação aos tratamentos e instituições psiquiátricas.

Dirceu Zorzetto, professor de medicina da UFPR, estudou a representação dos psiquiatras e pacientes psiquiátricos no cinema(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Dirceu Zorzetto, professor de medicina da UFPR, estudou a representação dos psiquiatras e pacientes psiquiátricos no cinema

“A imagem é estigmatizada, mas não é só a ECT, é a saúde mental. Quando se fala em paciente com doença mental, você tem uma imagem violenta. Se imputa ao paciente de doença mental a ideia de que é mais violento que a população em geral. Não é. Em geral, ele é mais vítima. Se criou um viés de saúde mental e o ECT ser carregado de uma carga agressiva, que não corresponde à realidade. E é difícil de combater, porque aparece em filmes que as pessoas querem ver, como Coringa (2019)”, avalia o diretor de ECT do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), José Gallucci.

“O que nós temos, por exemplo, é que quando você se depara com uma pessoa que faz um acompanhamento psiquiátrico, ela vem acompanhada de um estigma de incapacidade, de agressividade. Quem precisa de tratamento mental, acaba sendo chamado de louco, e o louco vem com seu duplo de agressividade e periculosidade”, descreve Ana Paula Guljor, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Saúde Mental (Lasp) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

E prossegue: “Não é à toa que observamos aqui no Brasil alguns desvarios, crimes, as pessoas vão logo dizendo ‘ah, ele é louco’. Não. A loucura não é sinônimo de agressividade, de periculosidade”.

 

Apesar do impacto da produção cultural na construção de um imaginário popular persistente e constantemente atualizado - não na evolução da técnica, mas na lembrança dos malfeitos anteriores -, a ECT possui, de fato, um passado controverso que inspira a muitos, se não um receio, pelo menos antipatia. Um dos exemplos mais obscuros ocorreu na Áustria, em 1944, quando às vésperas do fim do Segunda Guerra Mundial, o médico nazista Emil Gelny modificou a máquina de ECT para potencializar a voltagem e matou, eletrocutados, 149 pacientes.

Em determinado momento, seu uso era tão recorrente que era aplicado em regime ambulatorial, isto é, para casos de baixa complexidade, sem agendamento prévio. Hoje, por exemplo, para realizar a eletroconvulsoterapia é necessário um verdadeiro aparato hospitalar, agendamento, exames prévios, recomendação médica, entre outros requisitos.

A aplicação, além de recorrente, também era feita em casos nada relacionados a transtornos mentais. É o caso da homossexualidade. Em 1952, a primeira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, trazia o “homossexualismo” como doença. Os pacientes homossexuais, assim, podiam ser tratados como doentes.

Capa obra Diário do Hospício, de Lima Barreto(Foto: COMPANHIA DAS LETRAS)
Foto: COMPANHIA DAS LETRAS Capa obra Diário do Hospício, de Lima Barreto

A homossexualidade só deixaria o catálogo de doenças mentais da Associação em 1973. Na Organização Mundial da Saúde, só deixou de ser doença em 1990. Neste ínterim, o eletrochoque era um dos meios de “tratar” pacientes. “Dentro dos procedimentos realizados nos grandes hospitais psiquiátricos, nos grandes depósitos humanos, havia sim uso de ECT como punitivo”, afirma Ana Paula Guljor sobre os “manicômios brasileiros”.

Para além da ECT, as próprias instituições psiquiátricas já gozavam, à época, de uma imagem profundamente estigmatizada. O Hospício Nacional dos Alienados, fundado em 1852 no Rio de Janeiro, foi o primeiro hospital psiquiátrico da América Latina e o segundo das Américas. Ali, tudo o que se convencionou a assistir em filmes acontecia: pacientes presos a camisas de forças, grades nas janelas e nos quartos, e até mesmo - incomum até nas produções de Hollywood - pacientes crianças e adultos dividindo os mesmos espaços.

Lima Barreto, autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, clássico da literatura nacional, foi internado ali duas vezes, em 1914 e 1919, por alcoolismo. Na segunda internação, descreveu, “tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. [...] Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria”.

Escritor Lima Barreto(Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO Escritor Lima Barreto

A experiência ali vivida daria origem ao livro de relatos Diário do Hospício, hoje disponível em uma edição junto à obra de ficção Cemitério dos Vivos, na qual Barreto utiliza um personagem fictício para contar suas vivências no hospício. Apesar de lúcido e já conhecido por seu trabalho jornalístico e literário, Barreto relata, em várias passagens, situações de degradação moral, maus-tratos por parte dos guardas e pouco tato da instituição para com os pacientes: “Digo com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderá apagar-me da memória essas humilhações que sofri”.

Aqui, no Brasil, a imagem ruim do tratamento e das instituições psiquiátricas encontra longo eco nas produções nacionais de não-ficção. No livro Holocausto Brasileiro, lançadado em 2006 pela jornalista Daniela Arbex, é contada a história real dos maus-tratos e extermínio de dezenas de milhares pacientes com transtornos mentais no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Aliás, não foi o primeiro livro do gênero feito sobre a instituição fundada em 1903. Vinte anos anos, o jornalista Hiram Firmino também denunciou os tratamentos violentos aplicados no hospital do município mineiro. Estimativas de ambos os livros falam de 60 mil pacientes mortos lá.

Cena do filme "Bicho de Sete Cabeças", protagonizado por Rodrigo Santoro (meio)(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Cena do filme "Bicho de Sete Cabeças", protagonizado por Rodrigo Santoro (meio)

Após a retomada do cinema nacional, na década de 1990, o longa “Bicho de Sete Cabeças”, dirigido por Laís Bodanzky, tornou-se um dos filmes mais emblemáticos do fim do milênio. No filme protagonizado por Rodrigo Santoro, o chamado ‘eletrochoque’ é utilizado como forma de punição e “tratamento” da personagem.

"Se a gente pensar, ainda hoje nas novelas, para onde vai o vilão? Ou ele morre ou vai pro hospício. É o respaldo da loucura, é o respaldo do sofrimento psíquico" Ana Paula Guljor, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Saúde Mental (Laps) da Fiocruz

O filme é baseado no livro Canto dos Malditos de Austregésilo Carrano, que conta a história real de sua internação na década de 1970. A produção audiovisual foi uma das estudadas por Zorzetto e os colegas. O único médico psiquiatra que aparece no longa é retratado como alcoólatra. A diretora Laís Bodanzky, conforme analisado, “apenas transpõe a ação e a realidade daquela época para os dias atuais”, isto é, início dos anos 2000, “sem considerar as devidas mudanças na assistência psiquiátrica ao longo das décadas”

Laís Bodanzky, diretora do filme "Bicho de Sete Cabeças"(Foto: Antônio Brasiliano/SPCine)
Foto: Antônio Brasiliano/SPCine Laís Bodanzky, diretora do filme "Bicho de Sete Cabeças"

“As cenas com ECT contribuem para a manutenção do preconceito quanto a esse tratamento”, pontua o artigo. Com efeito, há, entre o tratamento retratado na e a eletroconvulsoterapia, várias diferenças. Uma delas, o espaço de aplicação. Enquanto no filme o enredo é desenvolvido em um manicômio, a ECT hoje é aplicada em ambientes hospitalares. A carga elétrica é outra destoante. A corrente elétrica utilizada pelas máquinas fica na média de 0,8 ampere. Em termos comparativos, a porta de entrada USB 3.0 de computadores tem a corrente elétrica de 0,9 ampere.

A eletroconvulsoterapia é recomendada para casos específicos em que o paciente desenvolve resistência ao tratamento medicamentoso. É feita por profissionais de saúde em sessões que duram entre 20 e 30 minutos, com paciente monitorado em máquinas. Como os músculos estão relaxados pela anestesia, não há espasmos.

Embora o estudo de Dirceu Zorzetto encerre no início dos anos 2000, não é difícil encontrar, na última década, obras de grande apelo popular e que retratam a ECT, psiquiatras ou pacientes com estereótipos, a esta altura, já octogenários. O problema da representação, no entanto, não está preso ao passado.

"A instituição mental é ainda como uma casa mal-assombrada, e o psiquiatra malvado ainda conduz experimentos bárbaros e tem um passado oculto no regime nazista. Essas representações continuam persistindo em narrativas sobre psiquiatria" Dirceu Zorzetto, professor do Departamento Medicina Forense e Psiquiatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Asylum, a segunda temporada da franquia American Horror Story, é uma das preferidas dos fãs. O enredo inteiro é dentro de um hospício. Por ali, passam desde nazistas até aliens(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Asylum, a segunda temporada da franquia American Horror Story, é uma das preferidas dos fãs. O enredo inteiro é dentro de um hospício. Por ali, passam desde nazistas até aliens

É o caso de Asylum, segunda temporada da série de terror American Horror Story, de Brian Murphy. A temporada, uma das mais populares, se passa inteira em um manicômio liderado por um freira cruel, invadido, literalmente, pelo Demônio, e cujo único psiquiatra, sem surpresas, é um nazista fugitivo.

Mais recente, em 2019, um dos vilões mais famosos do mundo, o Coringa, ganhou nova roupagem no cinema com um filme solo em que o seu antípoda, o Batman, não aparece. O Coringa, originário dos quadrinhos, é um personagem louco. Paciente psiquiátrico fugido de uma manicômio. A interpretação ficou a cargo de Joaquin Phoenix; a direção, Todd Philipps.

O Coringa de 2019 tomava psicofármacos. Comparecia melancolicamente à assistência social. Após uma série de reviravoltas violenta, emerge como o vilão macabro que é conhecido e causa distúrbios pela cidade. Um paciente psiquiátrico maníaco homicida. Com orçamento de cerca de US$ 50 milhões, o filme arrecadou mais de US$ 1 bilhão por todo o mundo. Rendeu Oscar de Melhor Ator para Phoenix.

O Coringa da DC Comics é possivelmente o paciente psiquiátrico mais conhecido do mundo. Isto por sua vilania, sagacidade e inimizada com o herói Batman. O filme Joker (2019), sobre sua história, ganhou Oscar e arrecadou mais de 1 bilhão(Foto: Reprodução/Joker)
Foto: Reprodução/Joker O Coringa da DC Comics é possivelmente o paciente psiquiátrico mais conhecido do mundo. Isto por sua vilania, sagacidade e inimizada com o herói Batman. O filme Joker (2019), sobre sua história, ganhou Oscar e arrecadou mais de 1 bilhão



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