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Eletroconvulsoterapia: como o polêmico tratamento mudou
Reportagem Seriada

Eletroconvulsoterapia: como o polêmico tratamento mudou

A ECT, muitas vezes chamada de "eletrochoque", foi aperfeiçoada ao longo do tempo e é recomendada para o tratamento de algumas doenças graves. Ainda assim, o tratamento enfrenta a forte barreira do estigma por seu passado controverso
Episódio 1

Eletroconvulsoterapia: como o polêmico tratamento mudou

A ECT, muitas vezes chamada de "eletrochoque", foi aperfeiçoada ao longo do tempo e é recomendada para o tratamento de algumas doenças graves. Ainda assim, o tratamento enfrenta a forte barreira do estigma por seu passado controverso
Episódio 1
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A cena toda dura cerca de 110 segundos. O personagem interpretado por Jack Nicholson, popularmente conhecido por seu papel como o escritor perturbado no filme O Iluminado (1980), é chamado à sala de enfermaria do manicômio onde foi viver após fingir ser louco. Lá dentro, uma enfermeira, o diretor da instituição e seis homens o aguardam. Ao deitar na maca, mãos e pés amarrados, o mordedor é posto em sua boca para não ferir a língua, o gel é aplicado em suas têmporas e, na sequência, dois eletrodos encostam, um em cada lado, por um breve instante na cabeça do ator. É o bastante para Nicholson explodir em convulsões e assumir um tom avermelhado dos que sofrem.

A cena de cerca de 110 segundos está inserida entre as 2 horas e 13 minutos do filme Um Estranho no Ninho, lançado em 1975. A obra foi um sucesso inconteste. Arrebatou as cinco principais estatuetas do Oscar - melhor filme, melhor roteiro adaptado, melhor diretor para Milos Forman, melhor ator para Jack Nicholson e melhor atriz para Louise Fletcher, que interpreta a enfermeira-chefe do local. O orçamento do filme ficou entre 3 e 4 milhões de dólares. A bilheteria, quase US$ 109 milhões.

O filme e a cena em que Nicholson recebe a corrente elétrica entraram para o imaginário popular, assim como ocorre aos clássicos. O filme, de fato, é considerado pelo American Film Institute, um dos 100 melhores já feitos. E, na memória compartilhada, deixou impressões acerca de institutos psiquiátricos e, especialmente, da eletroconvulsoterapia (ECT), que foram divisores de água na percepção pública sobre os tratamentos providos por esta área da saúde.

Cena do filme "Um Estranho no Ninho" (1975) em que o personagem de Jack Nicholson é submetido a uma sessão de "eletrochoque" após causar uma confusão no hospital psiquiátrico(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Cena do filme "Um Estranho no Ninho" (1975) em que o personagem de Jack Nicholson é submetido a uma sessão de "eletrochoque" após causar uma confusão no hospital psiquiátrico

Na obra, Nicholson não recebe anestesia. Há convulsões por todo o corpo e cabe aos seis homens de branco na sala o papel de segurá-lo. O procedimento aplicado, aliás, foi algo punitivo - veio após uma bagunça generalizada causada pelos internos. Um a um, fizeram fila no corredor ascético da instituição e alguns saíram desmaiados, de maca, da sala. O horror, o horror.

"Quando você lê numa matéria a palavra “eletrochoque”, você imagina uma coisa que era feita no século passado de uma maneira que não existe mais. A ECT é fruto da progressão do conhecimento na saúde mental. E o conhecimento não está estagnado" José Gallucci, diretor de ECT do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Mais de quatro décadas depois, em plena discussão do movimento antimanicomial e após a reforma psiquiátrica no Brasil, a eletroconvulsoterapia (ECT) - conhecida popular e erroneamente por eletrochoque - continua a despertar, a alguns, indignação; a outros, esperança. É, sobretudo, envolto em um estigma bastante difundido, justificado em passado controverso e documentado, embora tenha pouco a ver com a técnica, modernizada, aplicada hoje. E, no país de Jair Bolsonaro, o assunto voltou à tona após um movimento do governo federal.

O psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro foi nomeado na quinta-feira, 18 de fevereiro/2021, para o cargo de coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas do Ministério da Saúde. Bernardon é conhecido por sua defesa do tratamento de eletroconvulsoterapia (ECT). A nomeação, claro, causou polêmica nas redes sociais.

O psiquiatra Rafael Bernardon, indicado para assumir a área de saúde mental do Ministério da Saúde(Foto: Reprodução/YouTube)
Foto: Reprodução/YouTube O psiquiatra Rafael Bernardon, indicado para assumir a área de saúde mental do Ministério da Saúde

Em entrevistas para o Canal da Psiquiatria, no YouTube, em 2013, o médico defendeu o tratamento, que passou a ser utilizado na década de 1930. Segundo ele, a eletroconvulsoterapia é recomendada para casos mais graves. Quando questionado se recomendaria o procedimento para um membro da sua família, não hesita: “Claro, ela pode salvar vidas”.

Nas redes sociais, muitos usuários fizeram referências ao uso do chamado eletrochoque como método de tortura na ditadura militar ou como demonstração do passado obscuro do tratamento de transtornos mentais no Brasil e pelo mundo, que utilizavam descargas elétricas abusivas e descontroladas.

Ainda que suscite polêmica, o ECT não ocorre da mesma forma que retratado em séries e filmes do século passado, com pacientes sendo “punidos” ou sentindo dor - hoje, ela é feita com anestesia, aplicada por um anestesista, sedação muscular, e é indolor. Também não há convulsões pelo corpo do paciente. Todo o procedimento é feito em ambiente hospitalar, com monitoramento cardíaco e oximetria.

A convulsoterapia foi criada na década de 1930 - e, aqui, note, não está escrito eletroconvulsoterapia. Quando foi criada, a técnica não utilizava eletricidade, mas tinha o mesmo objetivo de causar convulsões no paciente, pois nestas residiria o segredo terapêutico do procedimento. Antes causadas por um medicamento, as convulsões passaram a ser estimuladas por uma corrente elétrica a partir do final da década de 1930 e início da década de 1940.

À época, o procedimento era aplicado maiormente em pacientes esquizofrênicos. Hoje, seus maiores trunfos são para pacientes em depressão grave, estado de catatonia, ideação suicida, bipolaridade grave com episódios de mania, por exemplo, ou quando não há resposta ou está impedido o tratamento medicamentoso.

 

O declínio da ECT foi longo. Na década de 1950, surgiram os primeiros psicofármacos, remédios utilizados no tratamento dos problemas da mente, o que inseriu uma alternativa terapêutica ao uso da ECT.

Seja pelos escândalos que denunciaram o tratamento dispensado nas instituições psiquiátricas a pacientes com transtorno mental, seja pela aplicação por vezes indiscriminada, dolorosa e até punitiva do tratamento, a eletroconvulsoterapia sofreu uma gradativa piora na imagem e chegou ao pior momento nos anos 1980 e 90 com uma série de produções televisivas e cinematográficas que abordam o tema.

Também foi o período de florescimento dos movimentos antimanicomiais e, na sequência, da luta por melhor tratamento de pacientes com transtornos mentais. Nos Estados Unidos, a ECT chegou a ser proibida em 32 estados. Hoje, foi reabilitada.

No entanto, cresceu em torno do tratamento um estigma persistente, ainda hoje, não superado. Um estigma que, conforme o psiquiatra cearense André Luís Gadelha, especializado na técnica, encontra justificativa no passado controverso da ECT.

“Não brotou do nada. Foi muito mal utilizado no passado, não como tratamento, mas com outras finalidades. É retratado de forma muito estigmatizante, pitoresca. Aquilo que se acaba retratando nos filmes e novelas era o que faziam até o final dos anos 80, início dos anos 90. Os dispositivos utilizados nos anos 80 e 90, hoje em dia seriam ilegais. A gente tem máquinas hoje que usam bem menos carga do que entregavam naquela época. Também não existia assistência anestésica. Não há nenhum daqueles espasmos que existem nos filmes. A grande diferença é que o tratamento ficou muito mais técnico, com muito mais cuidado, em ambiente hospitalar, o que acaba encarecendo também”, explica.

A eletroconvulsoterapia hoje
e a saúde mental no Brasil

No Brasil, a eletroconvulsoterapia é regulada por uma série de resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), iniciadas pela Nº 1.640/2002. Hoje, é exigido que o paciente ou a família assinem um termo de consentimento para a realização do procedimento. O paciente também precisa realizar uma série de exames pré-anestésicos, exame de sangue, eletrocardiograma. Ninguém é amarrado.

O tratamento é reconhecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não é remunerado pela tabela do SUS, um mecanismo federal que descreve e remunera mais de 4 mil procedimentos médicos. Quase todas as unidades hospitalares públicas que realizam a ECT hoje no Brasil são centros universitários ou de financiamento municipal.

José Gallucci, diretor de ECT do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal José Gallucci, diretor de ECT do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

“A ECT é a transmissão de uma corrente elétrica para o tecido cerebral, é uma corrente elétrica calculada de acordo com parâmetros do paciente. Não se usa uma carga elétrica para todo mundo. Existe uma técnica para você calcular qual corrente elétrica o paciente vai receber. Essa corrente elétrica gera uma crise convulsiva que na prática você não vê porque o paciente está em anestesia geral”, detalha o professor José Gallucci, diretor de ECT do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

“Essa convulsão dura mais ou menos 20 a 40 segundos. O estímulo elétrico dura 3 a 5 segundos, quer dizer, menos de um minuto o procedimento terminou. O que demora mais é você induzir anestesia e retirar anestesia”, explica o profissional. O IPq, onde Gallucci atua, é, atualmente, a principal referência do Brasil na pesquisa e aplicação de eletroconvulsoterapia.

O psiquiatra reclama das dificuldades sofridas pelo setor pela falta de financiamento público, o que complica não só o atendimento a pacientes, mas a própria pesquisa na técnica que, ao fim e ao cabo, não é de todo compreendida. “Se precisar trocar a máquina, a máquina tem uma vida útil, vem dos Estados Unidos, eu não tenho recurso. Precisa o hospital [das Clínicas] ceder recursos de outra área para manter a estrutura do ECT”, exemplifica.

 

O Brasil aplica a ECT desde 1941 e começou a utilizar a convulsoterapia praticamente no mesmo ano em que foi criada. O tratamento é usado pelo mundo todo há mais de 80 anos, e ainda assim várias questões, como em outras áreas da ciência, permanecem cobertas de uma penumbra: quais as verdadeiras implicações do uso desta técnica?

De pronto, é possível responder que os efeitos colaterais imediatos são uma ligeira dor de cabeça, a ser tratada com analgésicos comuns. Há também chances de náusea. O efeito mais destacado é a perda da memória breve, isto é, de eventos recentes - o momento antes da sessão, o almoço de ontem, e não a memória biográfica, o passado.

Ana Paula Guljor, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Saúde Mental (LAPS) da Fiocruz(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Ana Paula Guljor, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Saúde Mental (LAPS) da Fiocruz

“Aqueles que dizem ‘ah ,não existe efeito, é tranquilo’, isso é uma irresponsabilidade. É não ter um olhar atento, de escuta, de muitos usuários que ao longo do tempo relatam suas experiências de perda de memória”, critica Ana Paula Guljor, vice-presidente Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Saúde Mental (LASP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

“Quando você faz isso dentro de um espaço como de um centro cirúrgico e utiliza a anestesia, você vai minimizar alguns efeitos que são muito graves, que eram comuns no passado, como morder a língua ou até fratura. Isso não quer dizer que você não vai correr um risco, os riscos do efeito a curto-médio prazo, existe essa lacuna mnêmica, de memória”, afirma.

“A gente não conhece todo efeito e isso vale para os remédios. A gente sabe todo efeito que os remédios têm no cérebro? Não, e a gente usa os remédios. O ECT é um procedimento difundido no mundo todo e esse tipo de argumento não justifica o não uso, porque o uso está baseado na eficácia terapêutica. Esse argumento provavelmente vem impresso de algum preconceito”, contrapõe José Gallucci.

A eficácia é uma das vitrines
da eletroconvulsoterapia

Os números variam, mas ficam sempre entre nas mesmas casas decimais: em artigos publicados em revistas científicas e períodos conceituados, os resultados sempre indicam uma taxa de eficácia da ECT entre 70 e 90% nos casos de depressão e catatonia. É uma resposta superior, por exemplo, aos tratamentos medicamentosos.

“Em medicina, qualquer procedimento para casos graves pode ter efeito colateral. Então, vamos lá, um familiar com câncer. Você vai fazer quimioterapia. É o tratamento que tem maior chance. O paciente que faz quimioterapia pode ter inúmeros efeitos colaterais e o paciente pode até morrer de quimioterapia. Mas o paciente não deixa de fazer quimioterapia. Quando tem a gravidade, você assume os riscos”, pondera Galluci.

Sobre um ponto, Gallucci e Guljor concordam: a ECT é um tratamento para casos graves. Isto é, sua aplicação não deve ser corriqueira, não é uma primeira saída. “A ECT é um tratamento usado para tirar um paciente de uma crise. Ela é um tratamento de resgate”, resume o psiquiatra cearense André Luís Gadelha.

 

“[ECT] É um procedimento extremo, um procedimento de exceção, não pode ser a prioridade política. A gente fica discutindo como investir em um procedimento que é uma exceção, que exige um investimento robusto, porque precisa de um espaço, enquanto precisamos de uma expansão dos espaços de saúde mental, a compra de medicamentos”, aponta Ana Paula Guljor.

A pesquisadora é crítica ferrenha das nomeações que o governo federal tem feito na área de saúde desde 2015, mas que, segundo ela, têm piorado a partir de 2016. O investimento do Ministério da Saúde também tem tomado um viés que privilegia, segundo Guljor, as instituições fechadas, para internação de pacientes. Em especial, as comunidades terapêuticas, muitas geridas por organizações religiosas.

“A política de saúde mental não existe sozinha. São os direitos básicos, direito à moradia, direito à renda mínima”, explica. “A política pública é isso. Você age a partir da hierarquização dos pontos prioritários. Então o prioritário é a ampliação da rede de atenção básica e dos CAPS. Como você chega a um estupor catatônico, depressivo (tratados com ECT)? Quando não há suporte básico”, conclui.

Sobre a polêmica em torno de Rafael Bernardon para o Ministério da Saúde, André Luís Gadelha vê uma politização do tema influenciada pelo contexto político do país. “Ele é mais uma figura da política na medicina que um técnico conhecido na área, não é um destacado na área. Até eu próprio como médico desconhecia ele. O tratamento não é um pacote político”, afirma.

E apela: “Acho muito importante a gente tentar esclarecer, não deixar essa politização e a polarização extrema que o Brasil vive hoje contaminar a ciência. As pessoas fazerem essa estigmatização em torno da ECT não é nada diferente, bebe da mesma fonte da ignorância, em relação às pessoas contrárias às vacinas”.

A ECT no Ceará

Hoje, André Luís Gadelha é o único profissional a realizar a eletroconvulsoterapia em todo o estado do Ceará. O tratamento não é ofertado em nenhuma unidade hospitalar pública cearense, diferente de outros estados do Nordeste, como Pernambuco e Bahia, que têm a ECT nos hospitais universitários.

“No Ceará, só tem eu realizando [a eletroconvulsoterapia]. Há anos. Desde 2014, somente eu realizo esse tratamento aqui. Antes de mim havia outro, que passou para mim a bola, mas nos últimos anos não houve outro psiquiatra”, revela. Ele realiza o tratamento apenas em clínicas particulares em Fortaleza e chega a receber pacientes de outros estados.

Psiquiatra André Luís Gadelha, o único a aplicar a ECT no Ceará(Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Psiquiatra André Luís Gadelha, o único a aplicar a ECT no Ceará

A recomendação do tratamento, além da dificuldade de oferta e estrutura, também esbarra no estigma enraizado. “Eu já ouvi colegas dizendo que têm receio de indicar porque as famílias tendem a ficar assustadas e eles ficam com medo de indicar esse tratamento que é estigmatizado”, conta o psiquiatra. O que, para o psiquiatra, é uma pena, pois “mesmo com todo avanço da psiquiatria no século XXI, a gente não tem nada que se equipare à eletroconvulsoterapia”.

Em 2012, um grupo de psiquiatras da Universidade de São Paulo, entre eles Sérgio Paulo Rigonatti, atualmente a maior referência da ECT no Brasil, e o próprio Rafael Bernardon, indicado do Ministério da Saúde, publicaram um levantamento no País acerca da realização do tratamento, por consequência, a quantidade de unidades hospitalares que oferecerem a ECT, entre os anos de 2009 e 2010.

À época, foram mapeadas catorze unidades hospitalares no Brasil realizando o ECT. Mais de dez anos depois, O POVO buscou as instituições para saber se ainda oferecem o tratamento. Das catorze, três deixaram de realizá-lo, todas de São Paulo, que continua sendo o estado com o maior número de estabelecimentos de referência do tratamento no Brasil.

Durante a atualização, O POVO também encontrou o Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizando o ECT, que não constava na listagem de 2012. Assim, com Hupes, hoje são doze hospitais públicos oferecendo o procedimento.


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