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Envelhecer no Brasil entre a conexão, solidão e violência
Reportagem Seriada

Envelhecer no Brasil entre a conexão, solidão e violência

Acompanhando o envelhecimento da população brasileira, novas questões despontam no horizonte das políticas públicas, das relações sociais e das atividades domésticas, revelando os prazeres e os conflitos da "melhor idade"
Episódio 1

Envelhecer no Brasil entre a conexão, solidão e violência

Acompanhando o envelhecimento da população brasileira, novas questões despontam no horizonte das políticas públicas, das relações sociais e das atividades domésticas, revelando os prazeres e os conflitos da "melhor idade"
Episódio 1
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Em 1980, quando o descontentamento com o regime militar começava a empurrar o País em novas direções, o Papa João Paulo II veio ao Brasil pela primeira vez, em visita que se estendeu por 12 dias. O líder máximo da Igreja Católica percorreu um trajeto de aproximadamente 14 mil quilômetros, passando por locais sagrados, como Aparecida do Norte, e por capitais diversas, incluindo Fortaleza, que também recebeu em seu solo o beijo papal.

Estima-se que 12 milhões de pessoas acompanharam a passagem de João Paulo II pelo Brasil. Em Fortaleza, 120 mil fiéis e curiosos lotaram o Castelão, recorde de ocupação da arena até hoje. “Eu e minha família queríamos muito vê-lo, mas o Castelão era muito perigoso. Então, fomos para a avenida José Bastos e ficamos em cima de um prédio em construção. Tinha uma multidão na rua enquanto o papa passava em direção ao aeroporto”, relembra a professora aposentada Marlúcia Barreto Aguiar, com 34 anos à época do evento.

Marlúcia trabalhou por quatro décadas como professora da Casa de Cultura Britânica da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Agora, aos 77 anos, estou aposentada e tento usar o tempo para me divertir e fazer o que nunca fiz, como viajar, fazer exercícios e mudar um pouquinho", conta.

Sua busca por atualização e sua percepção do ócio como oportunidade criativa são características de fatia importante de seu grupo etário no Brasil de 2023. Mas “fatia importante” não representa o todo.

A professora aposentada Marlúcia Barreto assistiu à passagem do papa João Paulo II em Fortaleza, em 1980 (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A professora aposentada Marlúcia Barreto assistiu à passagem do papa João Paulo II em Fortaleza, em 1980 (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 7,2 milhões de pessoas com 60 anos ou mais no Brasil em 1980, quando apenas 6,1% da população brasileira era formada por idosos. Naquela início de década, alguns meses após sua visita ao Brasil, João Paulo II publicou carta na qual listava alguns “graves incômodos que muitas vezes pesam” sobre os mais velhos:

“A indigência mais crua, especialmente nos países que não têm ainda uma previdência social para a velhice; a inatividade forçada dos aposentados, especialmente vindos da indústria ou do setor terciário; a amarga solidão de todos os que se encontram privados de amizades e de um verdadeiro afeto familiar. Com o aumento dos anos, com o declínio das forças e com o advento de alguma doença debilitante, começam a sentir, de maneira sempre mais grave, a fragilidade física e, sobretudo, o peso da vida.”

Pobreza, desocupação, solidão, saúde. Quatro décadas após a publicação desse chamado, muitas das questões levantadas pelo papa foram superadas — ou, pelo menos, reformuladas — , como é o caso da previdência social, que desde a Constituição de 1988 foi alvo de sete grandes reformas no Brasil.

Outras indagações de João Paulo II, como o problema do isolamento, passaram por processos de atualização: em tempos de hiperconectividade, a solidão é ainda mais inquietante.

 

População 60 anos + no Brasil (1980 - 2022)

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Em 2022, a faixa etária dos 60 anos ou mais representava 15,8% da população geral no Brasil. São mais de 32 milhões de idosos. Em comparação com 1980, essa população mais do que dobrou. No Ceará, há nesse grupo 1.453 milhões de pessoas, 17,9% de nossa população.

O incremento nesse número vem gerando mudanças significativas na pirâmide populacional do Estado, que agora se apresenta mais estreita na base, onde estão os jovens, e mais larga no topo, onde ficam os idosos.

“Diversas pesquisas apontam que a população mundial se encontra em um processo de reestruturação demográfica que se caracteriza pela redução das taxas de fecundidade, diminuição da mortalidade e consequente aumento da expectativa de vida”, contextualiza a economista Raquel Sales, que é conselheira do Conselho Regional de Economia do Ceará (Corecon).

As mudanças nas estruturas etárias no Brasil, com diminuição relativa na proporção de crianças e jovens e aumento de adultos e idosos, acompanham essa tendência mundial.

“Alguns estudos mostram que a ampla escolarização e a inserção feminina no mercado de trabalho influenciam na mudança do comportamento na escolha de ter filhos”, acrescenta Sales.

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São transformações que vão além dos gráficos e que geram impactos significativos na vida de parcela considerável da população e no trabalho de gestores públicos que precisam, cada vez mais, contemplar e implementar políticas multidisciplinares direcionadas a esse grupo etário. O idoso de 2023 não é o idoso de 1980, assim como são outros seus prazeres e desafios.

 

 

Nordeste, Ceará, Fortaleza

 

O percentual da população com 65 anos ou mais no Nordeste (10,1%) é levemente inferior ao número nacional (10,9%). A proporção também é inferior às registradas no Sudeste (12,2%) e no Sul (12,1%), e superior às do Centro-Oeste (8,9%) e do Norte (7%). Os dados são da edição 2022 do Censo, pesquisa demográfica que, ao contrário de outras bases de dados que estipulam os 60 anos como idade inicial para o grupo etário, adiciona cinco anos a esse limite.

Quando esses dados são filtrados por gênero, as mulheres saem à frente. No Brasil, 12% da população feminina tem 65 anos ou mais, enquanto apenas 9,8% dos homens pertencem a essa faixa etária. A diferença se repete no Nordeste, onde 11% das mulheres e 9,1% dos homens integram o grupo etário. Na região Norte, os valores se aproximam do que era registrado no Brasil da década de 1980: apenas 6,7% dos homens possuem 65 anos ou mais.

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Nenhum dos seis estados com a maior proporção de idosos na população é do Nordeste. Ocupam o topo dessa lista Rio Grande do Sul (14,1%), Rio de Janeiro (13,1%), Minas Gerais (12,4%), São Paulo (11,9%), Paraná (11,35) e Espírito Santo (11,2%). A Paraíba (11%), no sétimo lugar, é o estado do Nordeste mais bem colocado. O Ceará (10,4%) é o décimo segundo, com diferença entre a proporção de mulheres (11,4%) e homens (9,3%) que reflete o padrão nacional.

Quando nos debruçamos sobre o mapa do nosso estado, descobrimos que o município de São João do Jaguaribe, distante 216 km de Fortaleza, é o que concentra, proporcionalmente, o maior número de idosos: 18,5% da população da cidade tem 65 anos ou mais. No outro extremo dessa régua aparece Itaitinga, onde apenas 5,1% da população integra o grupo etário.

“A população de pessoas idosas está distribuída no Brasil, historicamente, de forma desigual. Isso se deve à extensão territorial do País e ao processo histórico de ocupação. Os principais fluxos migratórios foram provocados pelas questões climáticas (como as secas), a falta de emprego, [a ausência] de instituições de ensino, os baixos índices de industrialização, entre outros fatores”, explica a economista Raquel Sales, que além de conselheira do Corecon é técnica do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).

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Frente a um tecido social cada vez mais envelhecido, estar atento a esses fluxos e a essas diferentes composições demográficas, peculiares a cada região, é fundamental para a implementação de políticas públicas específicas para a população idosa — políticas que precisam contemplar estratégias de inclusão social desse grupo etário. “A gente tem que desmistificar a visão de que o idoso só quer estar dentro de casa. Ele quer sair para assistir a um filme, quer participar de um momento cultural, de leitura, de atividades manuais”, argumenta a assistente social Isadora Catunda.

Supervisora dos Programas de Desenvolvimento Comunitário do Sesc Ceará, Catunda dedica parte de seus esforços à consolidação de iniciativas de inserção e interação junto ao público com 60 anos ou mais. Segundo ela, é perceptível a mudança de interesses entre as diferentes gerações de idosos. “Hoje eles procuram atuar ativamente, buscar ser lideranças nos seus espaços de convivência, procuram conhecimentos mais avançados sobre envelhecimento, tecnologia e questões contemporâneas como raça e gênero”, afirma.

 

Percentual de idosos por município cearense (2022)

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Melhor idade, maior conexão

 

A fala de Catunda sobre o ímpeto de atualização e inserção nos debates contemporâneos demonstrados pelos mais velhos vai ao encontro de um dado interessante: os idosos estão cada vez mais conectados. Em todo o País, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais que possuem acesso à Internet saltou de 25%, em 2016, para 62%, em 2022. No Ceará, no mesmo período de tempo, o número foi de 12% para 49%, crescimento que chama atenção mas que ainda coloca o Estado consideravelmente abaixo da média nacional.

A crescente busca por inclusão digital desse grupo etário vem movida, segundo o professor de tecnologia digital Carlos Wagner, pelo reconhecimento de que a tecnologia tornou-se elemento indissociável das relações sociais e procedimentos burocráticos. “Eles percebem que a cultura digital moldou as nossas relações em vários aspectos e que muitos deles são ‘analfabetos’ digitais nesse contexto”, explica Wagner, que divide suas aulas em dois eixos: operação de computadores e operação de smartphones.

O número de idosos que possuem telefone celular também cresceu consideravelmente. No Brasil, em 2016, 61% das pessoas com 60 anos ou mais tinham um aparelho. Em 2022, o número era de 74%. No Ceará, embora mais tímido, o crescimento também foi percebido: de 52% para 60%.

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Os dados relativos a esses dois recortes colocam o Ceará nas últimas posições do ranking de estados. Em relação ao acesso à Internet pela população idosa, o Ceará está à frente apenas de Paraíba (49%), Maranhão (46%) e Piauí (46%). O Distrito Federal é a unidade federativa mais bem colocada, com 82% de seus idosos conectados. O estado do Nordeste mais bem posicionado é a Bahia, com 56%.

A situação do Ceará em relação à porcentagem de idosos que possuem aparelho celular chama ainda mais atenção. Somos o antepenúltimo estado na lista geral, com 60%, à frente apenas do Piauí (59%) e do Maranhão (54%). O Distrito Federal aparece outra vez no topo do ranking, com 88%, e Sergipe é o estado do Nordeste mais bem colocado, com 68%.

Segundo Wagner, os idosos que chegam aos seus cursos (oferecidos como parte dos trabalhos sociais do Sesc) vêm em busca de autonomia: “É o ponto principal da tomada de decisão deles. Alguns chegam com questões específicas, querem aprender como pedir Uber, adicionar amigos, usar o WhatsApp. Outros, mais curiosos, querem saber sobre inteligência artificial e outras tendências tecnológicas”.

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A facilidade de conexão e o acesso desacompanhado podem oferecer riscos que vão da desinformação aos golpes financeiros. “Orientamos muito sobre segurança, sobre o que fazer e o que não fazer. O medo de levar golpes monetários inibe alguns de usar o PIX, por exemplo. Já as fake news são mais difíceis de combater, pois muitas vezes envolvem valores que eles já carregam consigo e querem propagar”, explica o professor.

 

 

O oposto da conexão

 

Wagner defende que a orientação é elemento fundamental nas estratégias e nos esforços de inclusão digital da população idosa. Muitos dos alunos que chegam aos seus cursos buscam instruções que, por motivos variados, não encontraram em casa: “A maioria relata que os filhos têm as obrigações e não conseguem tirar um tempo para ajudá-los, e que os netos não têm paciência”. O professor fala de “conflito geracional” para se referir a esse descompasso.

A incapacidade de superar esse conflito gera desconforto, desorientação e, não raro, solidão. Falamos aqui do outro lado da moeda da hiperconexão. “Os idosos estão, sim, nas redes sociais, mas lá passam a ter contato com discussões que muitas vezes não conseguem entender”, explica a assistente social Isadora Catunda, que procura incluir, nas iniciativas do Sesc, atividades que contemplem essa centelha de atualização.

O "conflito geracional" leva os idosos, muitas vezes, a situações de isolamento e solidão(Foto: Danie Franco / Unplash)
Foto: Danie Franco / Unplash O "conflito geracional" leva os idosos, muitas vezes, a situações de isolamento e solidão

“É preciso trazer essas pautas e assuntos complexos [questões de gênero e raça, por exemplo] para não cair no estereótipo de que a pessoa idosa não aprende mais, que tem preconceitos enraizados. Ela tem plena capacidade de se modificar e de mudar comportamentos, só precisa das ferramentas. Por mais que elas nunca tenham tido contato com essas discussões, quando passam a ter, se interessam muito, passam a questionar suas próprias atitudes. Cabe a nós elucidar essas questões”, afirma.

A solidão é, muitas vezes, reflexo dessa incapacidade de atualização. Uma incapacidade que nem sempre tem origem na resistência da pessoa com mais de sessenta anos, mas na ausência (ou insuficiência) de políticas de inclusão e na falta de interesse demonstrado pelo círculo familiar do próprio idoso.

“Muitos idosos buscam o Sesc para fugir de uma solidão que vivem, muitas vezes, dentro de casa. Mesmo com os familiares, o convívio às vezes é difícil. E às vezes é uma questão de falta de atenção da própria família, que não se esforça para compreender essa fase da vida”, explica Catunda.

A psicóloga Josiane de Araújo reforça o impacto psicológico desse isolamento e destaca que é preciso “olhar para as necessidades emocionais, cognitivas e físicas” da população mais velha. “Do ponto de vista emocional, o idoso, pela falta de uma agenda diária depois que ele se aposenta, tem a necessidade de uma socialização, já que ela, com o tempo, vai diminuindo. Isso debilita seu estado emocional e é preciso oferecer algum suporte”, explica.

Araújo, que é sócia-fundadora do Clube de Terapia, espaço de socialização, bem estar e saúde para idosos em Fortaleza, relaciona a esse isolamento social uma série de problemas patológicos, como a ansiedade e a depressão. “São efeitos colaterais de quando o ambiente familiar não promove para o idoso essa qualidade de vida que nasce a partir do respeito”, argumenta.

A pandemia parece ter intensificado o sentimento de isolamento de parcela considerável dos idosos no Brasil e no mundo(Foto: Alex Boyd / Unplash)
Foto: Alex Boyd / Unplash A pandemia parece ter intensificado o sentimento de isolamento de parcela considerável dos idosos no Brasil e no mundo

De acordo com a observação da assistente social Isadora Catunda no Sesc, alguns casos demandam atenção extra. “Quando a gente percebe algo mais sintomático, um comportamento mais depressivo, algum tipo de isolamento extremo, ou sinais de uma violência que não é necessariamente física, nós direcionamos esse idoso para um atendimento específico. Isso se intensificou muito durante a pandemia, muitos deles ainda não se recuperaram”, explica.

 

 

Violência não tem idade

 

Cada vez mais conectados, os idosos acabam encontrando formas de denunciar violências sofridas e antes caladas. De acordo com dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, também conhecida como Disque 100, o número de protocolos de atendimento relacionados à violência contra pessoas idosas cresceu entre 2020 e 2023, após apresentar queda nos anos intermediários de 2021 e 2022.

Segundo os dados do primeiro semestre desses anos, a quantidade de protocolos saltou de 40.360, em 2020, para 44.864 em 2023. Cada um desses atendimentos pode incluir uma ou mais denúncias, e esse número também cresceu. Nos primeiros seis meses de 2020 foram registradas 47.270 denúncias em todo o Brasil. No mesmo período de 2023, foram 65.331, um crescimento de 38%.

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Cada denúncia pode indicar violações diversas. No primeiro semestre de 2020, foram registradas 267.867 violações em todo o País. O crescimento de 2023 em relação a esse ano, de 44%, é ainda mais alarmante: os seis primeiros meses do ano corrente registraram 386.642 violações.

“São muitas violências: físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais. A gente também fala da autonegligência e da violência institucional, que acontece naqueles locais que abrigam as pessoas idosas, as chamadas ILPI (Instituições de Longa Permanência para Idosos). Qualquer ato ou omissão que vá contra os direitos da pessoa idosa é crime”, afirma a advogada Patrícia Viana, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da seccional cearense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Acompanhando a tendência nacional, os dados oriundos do Ceará também indicam aumento nos indicadores do Disque 100. As 1.813 denúncias do primeiro semestre de 2020 saltaram para 2.205 em 2023. As violações, 10.805 no primeiro período, foram 13.634 agora.

No primeiro semestre de 2023 foram registradas 13.634 violações contra pessoas idosas no Ceará(Foto: Jorge Lopez / Unplash)
Foto: Jorge Lopez / Unplash No primeiro semestre de 2023 foram registradas 13.634 violações contra pessoas idosas no Ceará

Para compor o quadro dessas violências é importante se debruçar ainda sobre dois recortes específicos: o cenário e a frequência das violações. Tanto no Brasil quanto no Ceará há uma concentração de casos na “casa em que reside a vítima e o suspeito” e na “casa da vítima”. As duas opções representam, juntas, 89% dos registros no Brasil e 93% dos casos no Ceará.

Também chama atenção que 80% das denúncias no Brasil e 82% no Ceará indicam violações que ocorrem com frequência diária. Apenas 3% desses relatos são de ocorrências únicas. “São casos cometidos dentro da própria residência da pessoa idosa e praticados por aqueles que deveriam protegê-la: o filho, o cuidador, o companheiro”, explica Viana.

Ocorridas em ambientes domésticos, distantes do escrutínio público, o combate a essas violações é um desafio para as autoridades. “Nosso trabalho, que é coletivo, é o de criar uma cultura de respeito, dignidade e cuidado. Quanto menos a pessoa idosa tiver o entendimento de que a violência não é só aquela visível aos olhos — do puxão de cabelo, do beliscão que deixa marcas no corpo —, mais vulnerável ela vai ser e menos ela vai conseguir reagir”, argumenta a advogada.

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Outro elemento importante nessa equação de abusos é, como destaca Viana, o medo. “A pessoa idosa, muitas vezes, tem medo de denunciar. Primeiro, porque ela está como refém, ela convive com o agressor. Segundo, porque ela pode achar que a agressão só está sendo cometida porque ela está fazendo alguma coisa errada, então ela precisa ficar quieta”, explica a advogada, destacando que o grande desafio da Comissão é “disseminar”, entre os idosos, o conhecimento de que eles são sujeitos de direito.

 

 

Sujeito de direitos prioritários

 

O principal dispositivo legal de proteção dos direitos desse grupo etário é o Estatuto da Pessoa Idosa, antes conhecido como Estatuto do Idoso, que completou, no último mês de outubro, duas décadas desde sua implementação. Trata-se da lei nº 10.741, sancionada em 2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Já em seu artigo 2º, o documento prevê que “a pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. Também estabelece que devem ser asseguradas “todas as oportunidades e facilidades para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

 

A secretária dos direitos humanos do Ceará, Socorro França(Foto: Fábio Lima )
Foto: Fábio Lima A secretária dos direitos humanos do Ceará, Socorro França

Em entrevista a O POVO+ sobre o quadro de violações aos idosos no Ceará, a atual titular da Secretaria dos Direitos Humanos (Sedih) do Ceará, Socorro França, foi categórica em relação ao que é previsto: “A lei diz que é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público tratar da pessoa idosa com absoluta prioridade, mas nunca tivemos, no País, tantas violações de direito da pessoa idosa como agora”, afirma.

Segundo França, as violências que mais se registram no Ceará são a da negligência e a da violação patrimonial . “É o filho que abandona o pai e se evade, o neto que tira o dinheiro do avô e deixa ele sem comida”, exemplifica. Por ocorrer, na maioria das vezes, em espaços familiares e íntimos, as violações são de difícil identificação e dependem de denúncias realizadas pela própria vítima.

Combater esse problema passa necessariamente, como avalia França, pelo fortalecimento dos Conselhos Municipais dos Direitos da Pessoa Idosa. “Dos 184 municípios cearenses, temos conselhos funcionando em 151. Precisamos que essa cobertura seja de 100%, e esses conselhos precisam trabalhar”, explica.

Para fomentar essa implementação, a secretária anuncia que será lançado, no início de Dezembro, um selo a ser concedido pelo Estado aos municípios que tenham, instalados e ativos, conselhos para pessoas idosas e para pessoas com deficiência. “O selo será o indicativo de que o governo pode destinar mais benefícios para aquele município, porque ele está cumprindo o que diz a legislação”, adianta França.

A secretária também adiantou que está em fase de implementação em Fortaleza, pela Sedih, um Centro de Referência em Envelhecimento Ativo e Saudável, que deve funcionar “como um local de combate à violação de direitos, bem como para que as pessoas idosas permaneçam durante o dia, com atendimento especializado e direcionado a essa população”.

Por fim, França argumenta que é necessário e urgente um trabalho de conscientização, junto aos mais jovens, a respeito das fragilidades da população idosa. “As escolas são um laboratório de conhecimento do ser humano, e essa questão precisa ser explorada desde a mais tenra idade, para a criança crescer entendendo a condição dos idosos. Precisamos começar a incluir políticas públicas como essa a partir das evidências que nos chegam”, resume.

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