Não ter um banheiro em casa, para muitos, é uma situação impensável. Para alguns moradores da comunidade do Gengibre, em Fortaleza, tal direito básico não é acessível.
A favela que se formou no entorno de uma lagoa no bairro Manoel Dias Branco não tem esgotamento sanitário e convive com condições sanitárias precárias.
O lixo visível e o odor emanado do corpo d’água deixam explícita a poluição do local que recebe os dejetos de cerca de 500 famílias, segundo a associação dos moradores da comunidade.
“É o jeito”, resume Marcos Antônio da Silva, 57, morador de uma das casas mais próximas à lagoa. Todo período chuvoso, quando o nível de água sobe, a casa alaga. E assim continua por meses.
Mesmo em junho, a água ainda cobre seus pés toda vez que entra. Sem outro local para ficar, Manoel levantou a geladeira e a cama em uma plataforma improvisada com tijolos e madeira.
O banheiro, cômodo separado apenas por uma parede, está inutilizável. Manoel diz que precisa tomar banho e fazer necessidades fisiológicas nas casas de amigos. A saúde é afetada pela situação.
Neste ano, já teve leptospirose e ficou em estado grave. A vontade de sair do local é grande. “A vida toda numa condição dessa não tem como”, diz.
Conforme o Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 92.204 domicílios de Fortaleza jogam esgoto em fossas rudimentares ou buracos (72.361), valas (6.851), rios, lagos, córregos ou mar (12.727) ou nem sequer têm banheiro ou sanitário (265).
Em uma das casas vizinhas, a bicicleta de rodinhas e os brinquedos pendurados para não terem contato com a água suja demonstram que ali mora uma criança.
Francisco de Assis, 58, e a filha de 4 anos também precisaram sair da residência e se abrigar em outro local enquanto esperavam a "maré" baixar.
A encanação do vaso sanitário, que leva os dejetos para a lagoa, ficou entupida.
Francisco relata que muitas crianças tomam banho na lagoa, mas não deixa que a filha faça o mesmo.
“Não tem nem perigo”, assegura. O pai conta que a criança já teve muitos problemas respiratórios e fica frequentemente gripada.
“Ela tinha muito cansaço e catarro no peito. O médico disse que se não tratasse logo virava pneumonia. Comprei um monte de remédio sem poder (arcar).”
“A gente vai escapando”, sentencia José Jociano Gomes, 67, morador de uma das casas que ficam mais em cima do morro. As doenças são constantes.
“Tive um bocado de dia doente, com dor no corpo, faltava morrer, mas não sei o que foi”, conta. Apesar de ainda ter um banheiro funcional conectado a uma fossa, não sabe até quando ele terá condições de uso.
Devido ao local ser de difícil acesso com passagens estreitas, quando a fossa chegar à capacidade máxima, José acredita que não terá como esgotá-la.
“O jeito vai ser parar de usar (o banheiro)”, lamenta. A solução drástica, segundo ele, é fazer as necessidades fisiológicas em um buraco cavado no chão e depois enterrá-las.
Além de não ter esgotamento sanitário, o local tem risco de desabamento, conforme a Defesa Civil de Fortaleza.
O presidente da associação de moradores da região, Messias Garcia, conhecido como Gereba, diz que o Ministério Público do Ceará (MPCE) já orientou que a Prefeitura de Fortaleza retire as famílias da região.
A Prefeitura afirma que contemplou 150 famílias com unidades habitacionais no Residencial Alto da Paz, no bairro Cais do Porto, em 2020.
O POVO perguntou se há novos prazos para a retirada de mais famílias do local, ao que o Município não deu uma data.
A reportagem também questionou sobre planos de urbanização para o entorno da lagoa com o intuito de evitar novas ocupações, mas a pergunta também não foi respondida.
Em nota, o Poder Municipal diz que 47 famílias são acompanhadas pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), com visitas domiciliares de assistentes sociais.
Elas também recebem sopa diariamente no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) Praia do Futuro.
Em relação à limpeza da lagoa, a Prefeitura afirma que irá programar nova limpeza para retirada de resíduos e vegetação.
“No entanto, é necessário reforçar a colaboração de todos no sentido do descarte correto do lixo para manter a lagoa limpa. A comunidade do Gengibre possui coleta domiciliar feita às segundas, quartas e sextas no período diurno, realizada por meio de gari comunitário e disposição de contêineres”, diz a nota.
A cerca de um quilômetro da Lagoa do Jangurussu, uma comunidade recebe obras de esgotamento pela primeira vez.
Na esquina das ruas C e Suellen Silva, a dona de casa Maria das Graças Rodrigues, 62, assistia aos funcionários da obra trabalhando. Ela reclama do mau cheiro na rua e das muriçocas, presentes devido à falta de esgotamento.
A construção da rede de esgoto no local é feita pela Ambiental Ceará, empresa da Aegea. A iniciativa faz parte de uma Parceria Público-Privada (PPP) com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e planeja universalizar o sistema de esgotamento em 24 municípios até 2033, incluindo Fortaleza.
Apesar de Maria desejar que a obra seja feita de forma satisfatória, ela admite que não pretende ligar a residência à rede de esgoto quando esta estiver ativa.
“A fossa é embaixo do piso do quarto, seria muito difícil fazer a reforma”, diz. A realidade é a mesma para diversas pessoas da comunidade e um desafio para a universalização do esgotamento.
Claudemir Alves Aguiar, 43, morador da rua Suellen Silva, precisa esgotar a fossa uma vez ao ano. A água da pia e dos ralos da casa vai toda para a rua, sem tratamento.
Mesmo assim, acredita que não ligaria o encanamento todo à nova rede que é instalada.
“A água da pia e do banho acharia interessante, não precisaria quebrar muito, porque já está vindo para a rua. Mas a do sanitário vai para a fossa do quintal”, explica.
André Facó, diretor-presidente da Ambiental Ceará, explica que a maioria das pessoas desconhece o que é esgoto e os malefícios de não se ligar à rede.
“Normalmente a pessoa está anestesiada, não sabe que a fossa é inadequada. Só é adequada em áreas rurais onde não tem adensamento urbano muito grande. Entre rede coletora e fossa, é totalmente inadequada”, afirma.
Segundo ele, a instalação da rede coletora e de tratamento de esgoto é responsabilidade do Poder Público, mas a ligação da encanação residencial à rede precisa ser feita por cada morador.
No entanto, famílias cadastradas na tarifa social da Cagece serão beneficiadas com o serviço de ligação intradomiciliar.
Uma “rede de esgoto” improvisada no bairro Lagoa Redonda, em Fortaleza, desemboca em um riacho há mais de 20 anos.
Essa situação é vivenciada de perto pela diarista Maria Aparecida*, de 49 anos, que contou que ela e todos os seus vizinhos fizeram uma ligação de suas moradias para o riacho sem nenhum tipo de tratamento. “Cai tudo no riacho: água de roupa, água de pia, água do vaso sanitário.”
A diarista explicou que esse riacho vem de outro bairro e segue com fluxo próximo à região litorânea, se conectando a grandes rios a partir da Lagoa da Precabura, chegando até o Rio Cocó e, posteriormente, ao mar.
Apesar dos riscos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde da população, Maria disse que nunca ficou doente por conta da falta do saneamento básico no local, mas que anseia por mudanças.
Ela detalhou que mal pode esperar para o esgotamento sanitário chegar à sua rua. “Ah, eu não vejo a hora”, tendo em vista que a situação piora quando chove.
A água contaminada do riacho invade as casas até a altura do joelho, em torno de meio metro do chão. “Ficou faltando um dedo para entrar na minha casa, mas nas casas dos meus vizinhos entrou.”
Para evitar o problema, as casas próximas ao riacho foram construídas com uma arquitetura diferente, apresentando altos batentes acima do nível da rua, a fim de impedir a invasão da água.
“Quem tinha dinheiro conseguiu elevar as moradias, mas quem não tinha, continuou enfrentando a entrada da água. Muita gente aqui perdeu suas coisas. Eu não, porque eu consegui subir”, explicou.
Já o constante mau cheiro associado ao riacho, que também invade as casas, não conseguiu ser contornado pelos moradores, assim como o nível das águas.
“Eu não moro tão perto do riacho quanto os meus vizinhos, mas, quando fica tudo seco e não chove, também não é muito bom, porque, na época de chuva, até que não incomoda tanto o mau cheiro.”
A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou que o local está incluído no programa de universalização à coleta e ao tratamento de esgoto, mas não informou quando a rede de esgoto ficará ativa na região.
“Enquanto não há rede disponível para a interligação dos imóveis, os moradores são responsáveis pelo correto descarte do esgoto doméstico e a fiscalização é realizada pelos órgãos ambientais.”
A falta de saneamento básico também foi um problema recorrente por muitos anos na vida da autônoma Francisca das Chagas, 53, residente no bairro Granja Portugal.
No caso dela, o desafio não estava relacionado aos riachos, mas ao uso de fossas domésticas, que frequentemente transbordavam durante as chuvas.
“Não tinha para onde correr, onde a gente mora já é muito alagado por natureza”, afirmou a moradora, que vive na mesma rua há mais de duas décadas.
De uns anos para cá, no entanto, houve a tão esperada conexão da casa de Francisca e de seus vizinhos à rede de esgotamento sanitário, trazendo melhorias, na visão da moradora.
“Mesmo tendo a fossa antes, a gente tinha que ficar limpando ela, e não era menos de R$ 100. Na época de chuva, então, ficava ainda mais caro. Hoje, a minha conta da Cagece custa em torno de R$ 60. Antes, era cerca de R$ 30 só com o custo da água, e depois dobrou com a taxa de esgoto, mas valeu a pena sim”, detalhou. (Ana Luiza Serrão)
*Nome fictício para preservar a identidade da fonte.
Apesar de Fortaleza ter, ao todo, cerca de 66% do território com esgotamento sanitário, o cenário não é o mesmo em todos os locais da Capital.
Enquanto 54 bairros têm rede de esgoto em mais de 90% da área, em outros 40 a rede coletora não está nem na metade da extensão.
A discrepância fica evidente nos dados divulgados pela Ambiental Ceará ao O POVO.
Dos 121 bairros da Capital, o que tem a maior porcentagem de esgotamento é o Parque Araxá, com 99,92%. Já o que tem a menor taxa é o Curió, com 0,08%.
André Facó, diretor-presidente da Ambiental Ceará, explica que historicamente o critério para decidir onde a rede será implantada leva em consideração o adensamento da região.
“Assim você atinge com o mesmo recurso a maior quantidade de pessoas possíveis”, diz. Na década de 1960, isso significava os bairros mais próximos do Centro e do mar.
Com a migração dos residentes para os bairros mais distantes da região central, o desenvolvimento da rede coletora não acompanhou.
Segundo Facó, os investimentos em esgotamento ao longo dos anos foram limitados e descontínuos, impedindo a expansão ao mesmo passo da construção imobiliária.
Além disso, ocupações irregulares presentes no meio urbano dificultam o atendimento nas áreas mais vulneráveis.
“Boa parte dos problemas de saneamento são, na verdade, problemas de planejamento urbano”, afirma. Em locais como a comunidade do Gengibre, que se estruturou no entorno da lagoa, a instalação de infraestrutura de esgotamento não precisa apenas de investimentos, mas de autorizações diferenciadas.
“A primeira grande dificuldade é que nós, enquanto prestadores de serviço público, não temos autorização de formalizar infraestrutura pública nessas áreas. Algumas são áreas de preservação ambiental. Tem vários casos como esse, em torno das lagoas de Fortaleza”, explica.
Apesar da legislação prever a possibilidade de uma infraestrutura temporária, que possa ser retirada após a regularização do território, André relata que órgãos de fiscalização tendem a analisar isso como uma “formalização” daquela ocupação.
“Do ponto de vista de engenharia, a gente consegue fazer quase tudo, colocar rede de esgoto aéreo, implantar rede mesmo em áreas alagáveis, mas a grande dificuldade é institucional. Ideal é que tivesse planejamento urbano sendo muito casado com a infraestrutura de saneamento”, afirma.
Uma ocupação irregular no Mucuripe chamada Praia dos Botes, onde as casas foram erguidas na areia da praia, receberá obras de esgotamento. Para isso, Pedro Henrique Pascoal, gerente de parcerias da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), explica que são necessários estudos extras.
“Muitos entes estão envolvidos para verificar a viabilidade disso. As ocupações irregulares geram um grau de dificuldade a mais. Isso não é só em Fortaleza, os grandes centros urbanos tendem a ter essa problemática”, diz.
Por meio da Parceria-Público Privada (PPP) entre Cagece e Ambiental Ceará, os bairros de Fortaleza que devem receber obras ainda em 2024 são Passaré, Parque Santa Rosa, Vila União, Quintino Cunha, Praia do Futuro, Vicente Pinzón, Caça e Pesca, Paupina, José Walter e Cajazeiras.
Entre dados e relatos, O POVO+ traz o especial desafio do esgotamento sanitário no Ceará. A reportagem de dois episódios traz o cenário atual do saneamento no Estado, histórias de gente que nem banheiro tem e que convive com a falta de conhecimento e de esgoto, os passos a serem superados e o que se espera do futuro.