Imagine viver em uma casa onde não existe banheiro. Para tomar banho, realizar atividades fisiológicas ou escovar os dentes, é necessário ir para a parte externa da residência, expondo-se ao ar livre. O que para a maioria das pessoas parece ser algo inimaginável, para 17.035 pessoas que vivem sem acesso a banheiro ou sanitário em seus domicílios nos 29 municípios que compõem a região do Cariri, no interior do Ceará, é realidade.
O levantamento foi feito pelo O POVO+ por meio de dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em cinco cidades da região, a situação é mais grave. O número de moradores que vivem sob essas condições é superior a mil.
Ao todo, 4.454 domicílios no Cariri apresentam falta de estruturas sanitárias adequadas, o que revela uma face da desigualdade social que priva os mais pobres da dignidade humana.
A cidade de Salitre apresenta o quadro mais grave da região do Cariri. De acordo com o IBGE, 3.029 pessoas não têm acesso a banheiro em suas residências. Proporcionalmente, a cidade apresenta o pior resultado entre os 184 municípios do Ceará. Das 5.367 residências, 983 não têm acesso ao cômodo ou ao aparelho, o que corresponde a 18,32% do total.
O índice negativo é seguido pela cidade de Jardim. Dos 27.411 moradores contabilizados no último censo demográfico, 1.934 vivem sem ter estruturas de banheiro em suas casas, o que representa 7,05% da população. Em seguida, Araripe com 1.871 pessoas sem sanitários. Do total de 19.783 moradores contabilizados no Censo 2022, 9,45% vivem nessa realidade.
Santana do Cariri aparece na 5º colocação dos municípios do Cariri com pior acesso de moradores à sanitários em seus domicílios. Segundo o IBGE, são 1.215 moradores que não contam com banheiros nas casas, enquanto o número de residências sem a devida estrutura é de 400.
Para o agente comunitário de saúde da cidade, Davidson Linarte, o grande número de moradores sem acesso a banheiros expõe a desigualdade social presente na população.
“Quando a gente pega o perfil dessas pessoas, a gente vê que são pessoas que têm um perfil de renda per capita bem baixa. A grande maioria dessas pessoas recebem auxílio do governo, seja federal ou estadual”, descreve.
“Quanto à escolaridade, essas pessoas muitas vezes, em pleno século XXI, não têm as informações necessárias sobre a relação entre saneamento e saúde. A maioria da população se encaixa na linha da pobreza”, diz.
Uma das pessoas contabilizadas pelo Censo 2022 que vivem sem banheiro na região do Cariri é a agricultora Ediana Santana, 37, moradora do Sítio Serra do Catolé, na zona rural de Santana do Cariri. Ela vive com o marido, o também agricultor José Santana, 50, e seus seis filhos, incluindo duas crianças de três e seis anos de idade. O dia a dia torna-se difícil pela ausência de infraestrutura na residência para realização de atividades fisiológicas.
Questionada pela reportagem sobre a falta de banheiro em casa, Ediana explica que sua família realiza as necessidades em um buraco no mato: “É em céu aberto, nos matos, aqui é sítio. Tem uma basezinha lá fora que nós toma banho”.
Ela e o esposo afirmam que gostariam de construir um banheiro em casa, mas devido à falta de condições financeiras, o desejo ainda não saiu do papel. “ A dificuldade é grande porque são muitos filhos. A gente quer fazer, mas aí fica difícil”, conclui.
O diretor-presidente do Instituto Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar) , Marcondes Ribeiro Lima, afirma que o problema também está ligado à dificuldade de implantar serviços de abastecimento de água para a população residente na zona rural. Assim como Davidson, ele atribui o alto número de famílias que vivem em residências sem banheiro à enorme desigualdade de renda na sociedade.
“Quando a gente fala em banheiro na zona urbana, a gente pensa em um local que temos um sanitário, uma pia, um piso adequado. Infelizmente, na zona rural, onde é considerado que tem banheiro, muitas vezes é um banheiro muito precário”, diz.
“Esse número de 17 mil (pessoas sem banheiro no Cariri) pode ser muito maior. (...) Na zona rural, temos pouca adesão ao esgoto. Essa realidade não deveria existir em 2024. Pessoas fazendo suas necessidades ao ar livre também estão contaminando o solo, mas essa não é a maior preocupação. É a questão da dignidade do ser humano”, defende.
Procurada pelo O POVO+, a Prefeitura de Santana do Cariri informou que irá intensificar as ações para melhorar as condições de vida da população financeiramente vulnerável por meio da construção de moradias populares.
“O município foi contemplado com a construção de 50 casas populares na zona rural, que incluem infraestrutura básica e banheiros, além da inclusão de famílias em programas habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida”, informa em nota.
No triângulo Crajubar, perímetro formado pelas cidades de Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha, 1.955 pessoas vivem em residências sem nenhum banheiro. Os três municípios acumulam o maior índice populacional da região do Cariri, com 492.203 habitantes ao todo. Segundo o IBGE, 692 domicílios não dispõem de acesso a sanitários na área.
Juazeiro do Norte, maior cidade do Cariri, apresenta o melhor cenário quanto ao percentual de moradores com banheiros em suas residências. Dos 286.120 moradores contabilizados no último censo, apenas 191 não tem banheiro em casa, equivalente a 0,06%. Quanto ao número de domicílios, apenas 94 dos 97.385 totais não dispõem tais instalações (0,09%).
No Crato, dos 131.050 moradores, um total de 1.300 não têm banheiro (0,99%). Esse é o 4º pior resultado na região do Cariri. Quanto aos domicílios, de 44.610 contabilizados pelo IBGE, 449 (1%) não têm espaços adequados para necessidades fisiológicas.
Ao O POVO+, a Prefeitura do Crato informou que a Secretaria da Infraestrutura e a Secretaria do Desenvolvimento Social irão realizar um levantamento para identificar as residências do município que têm ausência de banheiro ou sanitário.
O levantamento prevê localizar famílias em situação de vulnerabilidade social e integrá-las a programas do Governo Federal que buscam mitigar os efeitos de pessoas que vivem nessa situação.
Já em Barbalha, que apresenta uma população de 75.033 pessoas, 464 moradores não residem em casas equipadas com sanitários (0,61%) desse grupo. Dos 24.142 domicílios contabilizados pelo Censo 2022, 149 não têm banheiro (0,62%).
No Ceará, 93.979 pessoas ainda vivem em um local sem estrutura sanitária de banheiro. O número representa 1,1% da população total do Ceará. No Nordeste, o estado do Piauí também apresenta um resultado negativo, com 5% dos residentes vivendo sem banheiro ou sanitário em casa. Essa é a maior taxa do Brasil.
O pior cenário no Ceará é observado no município de Granja, na região Norte. A cidade tem o maior número absoluto de moradores e domicílios sem banheiro. Ao todo, 6.934 pessoas vivem em 2.198 residências sem acesso a sanitário, conforme o Censo 2022.
Na capital Fortaleza, 464 aparecem sem acesso a banheiros, enquanto o número de domicílios sem essas estruturas marca 265.
A regularização dos serviços de água e esgoto é a principal meta do Marco Legal do Saneamento, estabelecido pela Lei Nº 14.026/2020. A lei determinou mudanças significativas no tratamento do saneamento básico no Brasil, como incentivos de investimentos privados no setor, o aumento da eficiência dos serviços e a conclusão de metas de universalização do saneamento.
O principal desafio é alcançar nacionalmente, até 2033, o percentual de 99% da população com acesso à água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto.
A legislação também dispõe acerca da competitividade na prestação de serviços. Ficou estabelecida a substituição dos contratos de programa (firmados diretamente entre municípios e empresas públicas de saneamento) por licitações, o que possibilitou que empresas privadas concorressem com as públicas, fomentando maior concorrência e eficiência.
É o caso da parceria público-privada (PPP) entre o Estado, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e a Ambiental Ceará, iniciada em 2023 e com contrato de concessão de 30 anos. No acordo, a Ambiental atua em serviços de ampliação e operação de esgotamento sanitário em 24 cidades do Ceará, incluindo Fortaleza e municípios da região do Cariri.
Ao longo das três décadas de atuação no estado, a companhia informou que irá investir R$ 6,2 bilhões em esgotamento sanitário. O objetivo é alcançar as metas de universalização do Marco Legal do Saneamento.
Apenas em 2024, o montante de investimentos da Ambiental Ceará em obras de esgotamento é de R$ 413,97 milhões. A meta é implantar 370 quilômetros de redes coletoras, além de restaurar estruturas já existentes nas cidades, as chamadas “redes ociosas”. O planejamento da companhia prevê a construção de 22 Estações Elevatórias de Esgoto (EEE) e seis Estações de Tratamento de Esgoto (ETE).
André Facó, diretor-presidente da Ambiental Ceará, enfatiza que os investimentos refletem o compromisso firmado para alcançar as metas de universalização do saneamento. Segundo ele, a PPP firmada entre as duas companhias expandiu a meta percentual de residências com coleta e tratamento do esgoto de 90% para 95% até 2040.
“Serão quatro milhões e trezentos mil cearenses que terão pelos próximos nove anos a sua infraestrutura básica garantida. Não existe cidade desenvolvida sem saneamento básico plenamente disponibilizado para a população. Para que isso aconteça, serão feitas obras e intervenções de maneira discutida com cada cidade de tal modo que se tragam os benefícios o mais breve possível, diminuindo os impactos na dinâmica de cada local”, finaliza.
O plano da empresa mira resolver problemas históricos presentes nas cidades do Cariri. Em Santana do Cariri, moradores convivem há 139 anos sem tratamento de esgoto. A obra de construção da ETE do município, fruto de uma parceria entre a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e a Ambiental Ceará, irá tratar 20,8 milhões de litros de esgoto por mês, coletados de 1.158 imóveis.
O projeto prevê, ainda, duas expansões na estação de tratamento, elevando a expectativa de tratamento para 31,1 milhões de litros de esgoto por mês até 2032. O investimento total é de quase R$ 10 milhões e a previsão de conclusão da obra é para setembro de 2025.
Tadeu Bezerra, diretor de unidade da Ambiental Ceará, explica que a construção da unidade alinha-se com as metas de universalização do saneamento no estado.“Com a implantação da ETE de Santana do Cariri o município vai dar um salto de 0% de esgoto coletado e tratado para aproximadamente 70%", aponta.
"Isso é possível porque já existiam redes que passaram por revitalizações como também foram feitas obras para interligar essas redes. Implantando a estação de tratamento, essas redes existentes já entram em operação”, explica.
Bezerra pontua ainda que os planos da empresa para obras de saneamento também englobam a população flutuante durante a Romaria de Benigna. Segundo a Prefeitura, em 2024, 47 mil pessoas visitaram o município por conta das celebrações da primeira beata do Ceará.
O número é quase o triplo da população da cidade. “O projeto é pensando na sazonalidade que ocorre dentro do município. São feitos estudos de vários anos, entendendo a funcionalidade e crescimento para chegar na concepção da estação de tratamento. Entende-se que a estação vai atender o aumento populacional durante os períodos de romaria”, afirma.
Nova Olinda e Farias Brito, localizadas na Região Metropolitana do Cariri, também serão beneficiadas com construções inéditas de Estações de Tratamento de Esgoto. Segundo a Ambiental, “redes inativas, que não recebem e nem direcionam o esgoto para tratamento, entrarão em operação”.
Outra obra importante originada pela PPP é a construção da rede área do Canal do Riacho São Pedro, que corta o centro de Santana do Cariri. Moradores do local vivem há décadas sem coleta e tratamento do esgoto.
O material é despejado em canos que saem das residências e vão diretamente para o canal, criando uma grande área de esgoto a céu aberto e causando transtornos à população, como mau cheiro e proliferação de doenças.
Segundo a Ambiental, serão construídos 400 metros de área de esgoto nas margens do riacho e mil metros de rede coletora de esgoto subterrânea nas ruas do bairro onde o canal está situado. Além disso, 300 imóveis vão ser ligados ao sistema de esgotamento sanitário, o que beneficiará pelo menos mil pessoas.
Uma delas é o radialista Francisco Cardoso, que atua como representante dos moradores do bairro. Ele celebra a realização da obra e enfatiza que o problema é uma demanda antiga da cidade.
“Eu moro nesse bairro, em Santana do Cariri, há 59 anos. Nenhuma das residências do local, antes das obras da Ambiental, eram conectadas à rede de esgoto. O esgotamento da cidade é uma das obras mais relevantes do município, o que vai trazer saúde, bem-estar e vida digna para o povo”, conclui.
A falta de saneamento básico contribui para o adoecimento da população. É o que indicou uma pesquisa feita pelo Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon), através de dados do Sistema Único de Saúde (SUS). O levantamento mostrou que mais de 30 doenças relacionadas à falta de saneamento causaram, em média, 7,8% dos óbitos em internações no Brasil no período de 2021 a 2023.
No Ceará, o quadro resultou em 18.008 internações e 3.884 óbitos de pacientes internados apenas no ano de 2023. O estado apresenta a terceira pior taxa em todo país de pacientes que vão à óbito por doenças relacionadas ao problema (13,3%). Em primeiro lugar, aparece o estado do Amazonas (15%), seguido por Pernambuco (13,7%).
Para o professor do departamento de ciências biológicas da Universidade Regional do Cariri (URCA), Laercio de Moraes, saneamento básico e saúde pública são conceitos diretamente ligados. Ele defende que investimentos feitos para o tratamento adequado de esgoto e fornecimento de água própria para consumo humano têm consequências imediatas para o bem-estar da população.
“No Brasil, ainda temos cerca de 90 milhões de brasileiros, o que correspondente a cerca de 45% da população, que não têm acesso a coleta de esgoto. Esse esgoto tem uma série de componentes que afetam a qualidade do meio ambiente e a saúde da população, uma vez que várias doenças são de veiculação hídrica. A população acaba entrando em contato com o esgoto à céu aberto, porque não há redes de coleta, e por isso têm aumentado o número de doenças relacionadas às águas servidas”, pontua.
Além disso, o pesquisador afirma que a falta de saneamento básico acarreta em consequências econômicas. Segundo ele, quanto maior o adoecimento da população, maior a sobrecarga dos serviços públicos de saúde.
“Esses problemas sendo aumentados, a gente tem uma pressão sob o sistema de saúde pública. Esse sistema, embora seja muito importante, como é o caso do SUS aqui no Brasil, ainda tem suas fragilidades. Temos visto cada vez mais uma certa ineficiência do serviço devido a alta pressão sob ele, havendo a necessidade de mais investimentos”, explica.
Um levantamento feito pelo Instituto Trata Brasil, usando dados da Pesquisa Nacional de Saúde feita em 2019 pelo IBGE, mostrou que 1,6 milhão de brasileiros afastaram-se do trabalho para tratar doenças de veiculação hídrica. Apenas no Ceará, o número de trabalhadores que adoeceram naquele ano foi de 2,1 milhões. A taxa de incidência no Nordeste foi maior que a média nacional.
“As doenças de veiculação hídrica, como é o caso da dengue, cólera, diarreia, leptospirose, hepatite A, giardíase e outras verminoses que podem ser adquiridas a partir da água não tratada, causam um impacto econômico direto", indica.
"Essa população, ao adoecer, não comparece aos seus postos de trabalho e precisam ser substituídas, diminuindo a produtividade pela ausência de mão de obra, além do aumento da pressão do sistema de saúde, público ou privado. Seja pela ausência ou não preparo das municipalidades para o tratamento das doenças, ou seja pelo próprio custeio dos tratamentos e das consultas médicas necessárias em caso de adoecimento”, finaliza Laercio.
Especial trata dos desafios e o que está sendo feito para avançar na universalização do esgotamento sanitário no Ceará