O outono de 1940 havia começado na França. Walter Benjamin estava com um fio de esperança naqueles primeiros dias de setembro, enquanto esperava em Lourdes uma possibilidade de fuga do nazismo. O ano que havia começado ruim parecia ainda pior a cada momento.
Desde 1939, Benjamin já sentia a mudança radical do que era ser um alemão judeu exilado na França. Naquele ano, o filósofo e crítico alemão esteve internado por três meses num campo de trabalho para refugiados em Nevers, no sul da França. Ao sair, retorna a Paris, de onde foge após a invasão da capital pelos alemães.
Depois de muita insistência, os amigos Theodor Adorno e Max Horkeheimer haviam conseguido o visto para Benjamin viajar aos Estados Unidos, onde entraria como pesquisador do Instituto de Pesquisa Social. Estava também aliviado por ter em mãos um visto de trânsito para a Espanha. No entanto, não conseguira permissão para deixar a França.
No dia 24, junta-se a um pequeno grupo de fugitivos que iriam partir de Lourdes e atravessar a pé o terreno montanhoso dos Pirenéus até a Espanha. Da Espanha, ele seguiria até Portugal, e daí, de navio, para a América. Dia 26 de setembro, Benjamin chega a Portbou, na Catalunha, cidade fronteiriça do lado espanhol, mas o posto da alfândega havia “acabado” de ser fechado. Foi dada permissão ao grupo de permanecer na cidade e retornar à França pela manhã do dia seguinte. Ele pernoitou numa pousada da pequena cidade. Fora encontrado morto no dia seguinte. O grupo prosseguiu a viagem.
Enquanto caminhava pelas montanhas dos Pireneus, Walter Benjamin era um homem só, acossado pela realidade do seu tempo. Deixava para trás seus manuscritos, que ficaram sob a guarda do escritor Georges Bataille, que os escondera na Biblioteca Nacional da França, as inúmeras possibilidades de estabelecer-se como um homme de lettres, a família judaica alemã - que estava em crise antes de Hitler chegar ao poder - e os poucos amigos.
Nascido em Berlim, em 15 de julho de 1892, Benjamin teve uma infância de menino bem-nascido. Os pais vinham de prósperas famílias. A mãe tinha pais comerciantes de grãos e de gado. O pai fizera fortuna como leiloeiro e sócio de uma casa de leilão de artes na Alemanha. Investira também no setor de produtos médicos, no ramo da construção civil e na distribuição de vinho. Bern Witte, autor de Walter Benjamin, uma biografia, conta que o menino passara a infância entre babás francesas e professores particulares.
Estudou filosofia na Alemanha. Casou-se com Dora Sophie. Foi morar na Suíça para cumprir o doutorado e fugir do recrutamento do exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Benjamin assistia às mudanças do mundo enquanto produzia os alicerces do que hoje é sua filosofia e sua crítica. Após cumprir doutorado em Berna com tese O conceito da crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin não tinha dinheiro nem trabalho fixo.
Conseguira com o pai patrocínio para continuar a tese de livre-docência: A origem do barroco alemão, que teve de desistir para não ser reprovado. Ao livrar-se da tese, deixou de lado também a carreira acadêmica que não engatara.
"Esconderijos"
Voz: Tércia Montenegro
No início dos anos 30, Benjamin, já divorciado, vive entre Berlim, Paris e Ibiza. Atua como jornalista e ensaísta, sempre com dinheiro curto. Durante esta década o mundo de Benjamin vai se deteriorando rapidamente.
A Alemanha corre para os braços de Hitler, deixando os judeus intelectuais na difícil situação de manter-se exercendo suas atividades. Em Paris – cidade do exílio, e da língua com a qual escreve várias de suas obras – após declarada a Guerra, torna-se insegura demais para Benjamin. Ibiza, onde mora a ex-mulher, Dora, é o único lugar que ainda lhe oferece algum abrigo, embora por curto espaço de tempo.
Alguns meses após a morte de Benjamin, Hannah Arendt foi a primeira pessoa a visitar Portbou em busca do túmulo do filósofo. Não encontrou. Mas, escreveu o clássico ensaio sobre Walter Benjamin publicado, em 1968, no livro Homens em tempos sombrios.
Ao longo dos 12 anos em que escrevera o livro que reúne nove perfis de intelectuais europeus que, de uma forma ou outra, influenciaram o pensamento contemporâneo em várias áreas, Arendt viu crescer a fama do filósofo que se transformou numa das principais vozes do século XX.
Ela afirma que Benjamin já era, sim, reconhecido por seus pares. Em 1924, Hugo von Hofmannsthal publicara o artigo de Benjamin As afinidades Eletivas de Goethe. Fora amigo de juventude de Gerard Scholem, sionista, responsável, diz-se, pelas reflexões judaicas monoteístas da sua obra. Tem em Brecht um amigo e interlocutor. Correspondeu-se com Theodor Adorno que foi seu discípulo, o único por sinal.
"Bandeira a meio pau"
Voz: Demitri Túlio
Arendt chama a atenção, no entanto, para o fato de Benjamin ser “inclassificável”. Segundo a filósofa sua grande erudição não o tornava um erudito; seu trabalho de compreensão e interpretação de textos não o tornava um filólogo; embora fosse atraído pela religião, não se tornara um teólogo; era um escritor nato, mas queria escrever uma obra de citações. Era também tradutor – traduziu Proust para alemão -; resenhava livros, mas não era crítico; havia deixado uma obra inacabada sobre a França do século XIX, não era historiador.
O tempo de agora também avança sobre o pensamento de Arendt. Hoje, Benjamin ocupa o espaço de uma voz multifacetada que dialoga com a Filosofia, com a História, com a Literatura.
Para a professora Tereza Callado, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), criadora do periódico Cadernos Walter Benjamin, esse aspecto diverso da obra do filósofo alemão faz parte da “sua crítica ao método filosófico da tradição cartesiana que concebe o conhecimento”.
Segundo a autora do livro Experiência da Origem, publicado em 2006 – obra que aborda a teoria da soberania política de Benjamin – o que é “sedutor” em Benjamin “é a aposta que ele faz no homem”, afirma Callado.
“Sua bela teoria política, que não abre mão de remanescentes teocráticos do cristianismo da Idade Média, leva em consideração as diferentes interfaces do conhecimento, a antropologia, a política, a teologia, a arte e a história para se conhecer as condições do homem tanto mandatário e subalterno do poder, rei ou súdito”, analisa a professora em referência ao livro Origem do drama barroco alemão, para a professora, o “o livro mais importante de Benjamin, publicado em 1928.”
De acordo com o professor Gunter Karl Pressler, autor do livro Benjamin, Brasil, obra que traça o percurso da recepção da chegada da obra de Benjamin no Brasil, o termo “inclassificável” de Hannah Arendt pode ser compreendido hoje como “o hermético”. Pois, segundo Pressler, “os estudiosos benjaminianos, hoje, são acadêmicos e não intelectuais envolvidos politicamente como décadas atrás”.
O pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA) afirma que a obra de Benjamin teve impacto pela sua biografia, por ter sido o “o intelectual ‘vencido’ na Escola de Frankfurt e (pelo) caráter literário da obra, na leitura – da obra de Benjamin - se sente a autenticidade das questões tratadas”, observa Pressler.
Ao criticar o academicismo que ronda o filósofo alemão, o professor da UFPA há 23 anos afirma que há um descompasso entre o pensamento benjaminiano e a prática acadêmica. “Desde o meu encontro com a obra de Benjamin segui a lema dele: sempre radical, nunca ‘consequente´, quer dizer, interpretando Benjamin: nunca politicamente correto. Ele é um pensador radical nas perguntas e percepções. A sua crítica era isto na década de 1930 e sua metodologia, que deve seguir sempre se atualizando nos temas e coisas”.
Para Marcio Seligmann, autor de Ler o livro do mundo, Benjamin como pensador, unia o rigor acadêmico à criatividade das vanguardas artísticas da sua época, principalmente o surrealismo. “Sua criatividade não tinha limites. Isso possibilitou a ele criar um pensamento único que até hoje cativa milhares de leitores no mundo”.
Trechos de cartas escritas por Asja Lacis e Walter Benjamin
A interpretação é dos Nádia Fabrice e Marcos Miramar, do grupo de teatro Terceiro Corpo, especialmente para esta reportagem
No livro Rua de mão única, publicado no Brasil pela editora brasiliense, em 1987, Walter Benjamin, crítico alemão escreve um complemento ao título em forma de dedicatória à obra escrita em 1928: “Esta rua se chama Asja Lacis, em homenagem àquela que, na qualidade de engenheiro, a rasgou dentro do autor”.
Cinco anos antes, em 1982, a mesma editora havia publicado o livro da professora e filósofa suíça Jeanne Marie Gagnebin, Walter Benjamin: os cacos da história, reeditado em 2018 pela N-1. Trata-se de um texto biográfico, no qual nos deparamos com alguns detalhes sobre a vida de Benjamin num contexto de exílio, solidão, nazismo e guerra.
Em 1924, Benjamin conhece Asja Lacis, em Capri. Asja, atriz e diretora teatral soviética e Benjamin tornam-se amantes. Os amigos do filósofo, principalmente Georges Scholem, responsabilizam a nova “amiga russa” de Benjamin por desviá-lo da metafísica e do judaísmo e o influenciá-lo com a teoria materialista.
Scholem também credita a Asja o fato de Benjamin nunca ter estudado hebraico seriamente e ter aceito o convite de ir para a Universidade de Jerusalém, onde já estava o amigo. Entre o fim de 1928 e início de 1929, Benjamin vai ao encontro de Asja em Moscou e Riga, o que, segundo o texto de Jeanne Marie Gagnebin, apressa o divórcio de Benjamin de Dora Sophie.
De acordo com Gagnebin, a relação entre os dois era tumultuada demais, ora devido à política, ora devido aos posicionamentos de Benjamin que, para Asja, eram tímidos e exitantes. Mais tarde, Asja escreve em sua autobiografia: “Tive violentas discussões com ele, critiquei-o por não se livrar da estética tradicional idealista (Benjamin discutia com distinção, falava tranquilamente, jamais gritava, mas agitava a cabeça quando uma objeção o ofendia). Mas tarde compreendi que ele tinha razão e que havia identificado o ponto fraco de muitos críticos da época – a sociologia vulgar”.
Asja Lacis foi deportada para a Sibéria, em 1938, durante o que ficou conhecido como o Grande Expurgo de Stalin. Ficaria ali por dez anos.
"Ler romances"
Voz: Ricardo Guilherme
> Entrevista
O professor da Unicamp Márcio Seligmann-Silva leu, aos 19 anos, a tese de livre-docência de Walter Benjamin, traduzida no Brasil por Sérgio Paulo Rouanet. Era o início dos anos de 1980, o Brasil ainda estava sob a ditadura militar.
Ele narra que o efeito da leitura da Benjamin fora imediato: “O seu pensamento abriu uma enorme clareira em um momento que predominava, de um lado, a estultice no poder, ou seja, a ditadura e, do outro, um pensamento dogmático que dominava nas Universidades, ainda acuadas pela falta de liberdade”, relembra.
Três décadas depois, Márcio Seligmann tornou-se um dos principais autores de livros sobre Benjamin no Brasil. Sua obra Ler o livro do mundo acaba de ser relançada. “Fiquei muito feliz com isso, pois a atualidade do pensamento de Benjamin hoje é absoluta”, afirma o pesquisador.
Ainda este ano, ele também lança em parceira com o professor Adalberto Müller, da Universidade Federal Fluminense, a tradução das quatro principais versões das teses Sobre o conceito de História, ainda inéditas em português. Virão junto com esse trabalho uma série de notas e rascunhos a essas teses que Benjamin escreveu enquanto fugia do nazismo, entre 1939 e 1940.
Para Seligmann, esse conjunto de textos – os últimos escritos pelo filósofo alemão – é “o seu testamento e o seu testemunho de sua era”. Leia a seguir a entrevista concedida – por email - com o professor Seligmann ao O POVO.
O POVO - Quero começar essa conversa lhe perguntando como se deu seu encontro com Walter Benjamin e o que o motivou a seguir uma caminhada de estudos (interpretação ou decifração) de sua obra?
Márcio Seligmann - Eu conheci a obra de Benjamin durante o curso de História, na PUC de São Paulo, no início dos anos 1980. Na ocasião fui aluno do saudoso professor Nicolau Sevcenko, que ministrava cursos de História Moderna, mas também de teoria da história. Foi um início nada fácil, pois li a tese de livre-docência de Benjamin, o seu Origem do drama barroco alemão, com apenas 19 aninhos de idade... Foi difícil, mas fascinante. A tradução de Sérgio Paulo Rouanet, primorosa, pese seus lapsos, ajudou bastante. Não larguei mais de Benjamin.
O seu pensamento abriu uma enorme clareira em um momento que predominava, de um lado, a estultice no poder, ou seja, a ditadura e, do outro, um pensamento dogmático que dominava nas universidades, ainda acuadas pela falta de liberdade. Benjamin é um pensador que unia o rigor da academia alemã e de sua enorme tradição na Filosofia, com a criatividade das vanguardas artísticas, sobretudo nas suas vertentes dada e surrealista. Sua criatividade não tinha limites. Isso possibilitou a ele criar um pensamento único que até hoje cativa milhares de leitores no mundo.
O POVO - Na introdução do seu livro Ler o livro do Mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética, o senhor alerta o leitor sobre as dificuldades de ler Benjamin, mesmo ele tendo se tornado um clássico. Apesar dessas dificuldades, por que ler Benjamin hoje?
Márcio Seligmann - Antes de mais nada comento que esse livro (o Ler o livro do Mundo) acaba de sair em reedição. Fiquei muito feliz com isso, pois a atualidade do pensamento de Benjamin hoje é absoluta. E isso já ajuda a responder a essa questão. Benjamin escreveu nos anos 1930 sob o impacto da ascensão do nazifascismo. Sua obra é uma obra de resistência que nos ajudou e ajuda a repensar a História e a filosofia de um outro ponto de vista, o dos subalternizados, o dos esmagados pela história do capital.
A dificuldade maior na leitura de sua obra está em conseguirmos abandonar certos hábitos e formas de pensar que apenas repetem e reforçam o modelo de sociedade que tem produzido incessantemente tanto sociedades fascistas como genocídios. Essa dupla face do progresso atravessa o século XX e agora adentra o nosso século. Ler Benjamin é um poderoso antídoto contra esse processo de fascistização da política e da vida.
O POVO - WB viveu como jovem e parte da sua vida adulta num conturbado mundo entre duas guerras e o nascimento do fascismo e do nazismo europeus. Como o senhor considera que a leitura do próprio mundo vivido por Benjamin influenciou na sua obra?
Márcio Seligmann - Precisamente, a sua obra é uma das mais elaboradas e acabadas expressões de sua própria época. E daí advém a sua incrível atualidade. Pois o fascismo que lhe foi contemporâneo volta agora com toda força. Nas notas às suas teses Sobre o conceito de história ele escreveu de modo claro: “E necessária uma teoria da história, a partir da qual se possa encarar o fascismo.” Essas teses, aliás, devem ser lidas e relidas hoje. Pensando nisso, eu e meu colega da Universidade Federal Fluminense, o professor Adalberto Müller, fizemos uma tradução das quatro principais versões dessas teses, ainda inéditas em português, bem como de uma série incrível de notas e rascunhos a essas teses que Benjamin escreveu entre 1939 e 1940.
Essa foi a última obra de Benjamin, ele se suicidou poucos meses depois de tê-la escrito. É o seu testamento e o seu testemunho de sua era. Fiquei muito feliz que a Editora Alameda de São Paulo tenha aceitado essa publicação que está saindo ainda neste mês (setembro 2020), coincidindo com os 80 anos da morte de Benjamin. Se nós tivéssemos aprendido e incorporado o pensamento que Benjamin expresso nessas teses, não teríamos chegado onde estamos agora, neste beco aparentemente sem saída.
O POVO - Como refletir, hoje, no século XXI, sobre a concepção benjaminiana da História, num momento em que o passado está em xeque no mundo?
Márcio Seligmann - Uma das principais concepções de Benjamin consiste justamente em afirmar que nenhuma sociedade consegue se estruturar politicamente de um ponto de vista mais democrático e igualitário sem ter presente para si o seu passado.
Mas não se trata do passado tal como ele se encontra apresentado nos livros didáticos tradicionais.
Benjamin percebeu a força emancipadora da presença do passado de lutas que pontuam toda e qualquer sociedade, mas que normalmente são recalcadas e ocultadas por narrativas encobridoras.
Hoje fala-se muito em “fake news”, podemos dizer que boa parte de nossa história consiste em “fake histories”, em construções ideológicas que barram a construção de uma história que sustentaria uma outra cultura política. Nossas identidades são construídas a partir de nossas histórias. A uma história mentirosa, que exclui a maioria da população, correspondem políticas igualmente elitistas, racistas e violentas. A redenção da história, o gesto benjaminiano de apropriação da história das catástrofes, da violência e das resistências, que ele denominou de “escovar a história a contrapelo”, essa é a seiva que seria capaz, para ele, de produzir uma outra cultura política.
No nosso caso específico, pergunto quantos de nós estudou e cultiva memórias de nossos importantes movimentos populares, quase todos massacrados com chacinas e genocídios bárbaros, como os casos de Rodeador 1817-20 (PE); Pedra Bonita 1838 (PE); Cabanada 1832-35 (PE); Revolta dos Malês 1835 (BA); Cabanagem 1835-40 (PA); Muckers 1873/74 (RS); Canudos 1896-97 (BA); Contestado 1912-16 (PR); Caldeirão/ Pau de Colher 1937 (CE); Panelas 1940 (PE) ou da Revolução Federalista de 1893-95 (também conhecida como Revolução da Degola, RS)? Por que tivemos que esperar 26 anos para se instaurar uma comissão da verdade, em 2011, sobre a ditadura de 1964-85?
O POVO - Gostaria que o senhor comentasse a concepção de escritura em Benjamin, escritura esta que vai muito além das palavras.
Márcio Seligmann - Essa pergunta é muito importante, mas também sua resposta é difícil de ser resumida aqui. Destaco então dois pontos. Primeiro a mencionada afinidade de Benjamin com o movimento surrealista.
Como se sabe, para os surrealistas, a escrita automática teria a capacidade de expressar elementos que normalmente são censurados e reprimidos por um decoro que é cúmplice de nossas amarras e produz uma cultura controlada e do controle. Também Benjamin procurou libertar aquilo que a escritura da história recalcou e impediu de ser inscrito.
Para ele, a libertação das pessoas no presente se daria em compasso com a libertação das infinitas histórias recalcadas. Trata-se de uma utopia também mnemônica. Outro ponto importante são os estilos e modalidades de escritura desse autor.
Ao invés de produzir textos acadêmicos convencionais, ele produziu milhares de fragmentos, de aforismos, na linha de pensadores alemães como Friedrich Schlegel, Novalis e Nietzsche.
Seus ensaios mais longos, como o mencionado sobre o drama barroco alemão, são marcados por uma profusão de citações e de insights, que fragmentam o texto e exigem participação do leitor na construção de sua obra. Seu método e estilo também eram revolucionários.
O POVO - Benjamin aponta outras possibilidades de concepção teórica para a Filosofia e a História? Quais os principais pontos de corte que o pensamento de Benjamin incide sobre essas disciplinas das Ciências Humanas?
Márcio Seligmann - Podemos dizer, usando uma expressão que o Benjamin das teses utilizou bastante, que a sua filosofia e concepção de história fizeram explodir o que se entendia sob essas disciplinas até então. Daí ter sido barrada a sua entrada nas Universidades. Ainda hoje, apesar da ampla recepção de sua obra, existe uma enorme resistência, sobretudo nos departamentos de Filosofia, à leitura de sua obra. Resumidamente, sua ideia de escovar a história a contrapelo pode ser pensada como uma das nascentes que está nas origens da virada decolonial que marca o que tem de mais importante e avançado hoje nas ciências humanas. A tarefa de reescrevermos a história e de pensarmos conceitualmente do ponto de vista decolonial é uma consequência que apenas nos últimos anos aprendemos a extrair dos textos desse poderoso e profícuo pensador.
O POVO - Como traduzir a construção do conhecimento em forma de “constelação” como pressupõe Benjamin?
Márcio Seligmann - A noção de constelação em Benjamin faz parte de sua teoria da escrita e da política da história. Diferentemente do modelo positivista da história, irmanado a uma concepção de história universal, que enfatiza o progresso linear, unívoco e ascendente do processo, Benjamin destacava a necessidade de interrupção desse modelo e do próprio curso da história.
Essa interrupção equivalia ao encontro com uma outra época, encontro esse fruto de uma identificação com uma determinada imagem desse passado. O historiador associado à liberação do presente e do passado tem que poder perceber essas afinidades entre cada presente e o ocorrido que lhe corresponde.
No conceito de constelação encontra-se, portanto, o de interrupção do histórico e uma concepção não mais cronológica-temporal do percurso histórico, mas sim imagética. Daí ele denominar também essa constelação de “tempo-agora”. Cito Benjamin: “Articular o passado historicamente significa: reconhecer no passado o que comparece na constelação de um único e o mesmo instante.”
O POVO - O que a obra inacabada “Passagens” representa ou sintetiza de alguma forma para o conjunto da obra de Benjamin?
Márcio Seligmann - O trabalho das Passagens acompanhou Benjamin nos últimos 14 anos de sua vida. Nele, ele procurou sintetizar o seu método e a sua visada sobre a história. O trabalho tomou uma dimensão tal que (aliada à situação de exílio de Benjamin após a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha em 1933) impediu que ele pudesse concluir esse projeto. Mas em torno dele ele produziu poderosos ensaios e artigos, como o seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire, ou o artigo “Eduard Fuchs, o colecionador e o historiador”. Por outro lado, o volume Passagens, com milhares de citações colecionadas e montadas, constitui em si uma das principais obras de Filosofia e de história do século XX. Sua forma tornou-se parte de sua proposta.
O POVO - Ao longo do livro Walter Benjamin, uma biografia, Bernd Witte mostra como a obra A Interpretação dos Sonhos, de Freud, teve impacto no pensamento de WB quanto a pensar no passado como um sonho do qual é necessário despertar. Quais outros autores o senhor aponta como importantes para a construção das ideias de Benjamin?
Márcio Seligmann - Benjamin era antes de mais nada um grande leitor. Para mencionar alguns dos nomes de sua biblioteca lembraria de: J. G. Hamann, Georg Büchner, J. W. Goethe, F. Hölderlin, Friedrich Schlegel, Novalis, W. Humboldt, F. Nietzsche, K. Marx, Auguste Blanqui, C. Baudelaire, Aby Warburg, M. Bakunin, F. Dostoievski, Georges Sorel, B. Brecht, G. Appolinaire, A. Breton, Gershon Scholem, Pierre Naville, A. Rimbaud, Paul Valéry, M. Proust, Louis Aragon, Paul Scheerbart, Sigfried Giedion, F. Kafka… São muitos os autores que ele leu e incorporou ao seu pensamento, inclusive foi colecionador de livros de “loucos” e de literatura infantil. Benjamin era um exímio comentador e um incansável resenhista.
O POVO - Se o leitor dessa entrevista se sentir estimulado a começar uma trajetória de leitura da obra de Walter Benjamin, o que o senhor indicaria para o início dessa caminhada?
Márcio Seligmann - Isso realmente depende muito de cada leitor e de seus interesses. Para quem curte arte, arquitetura e o tema das cidades eu indicaria o ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidede técnica, cuja edição eu organizei e está disponível em livro de bolso acessível pela L&PM. Para quem curte teatro indico o imperdível Ensaios sobre Brecht (Editora Boitempo) e para mentes mais filosóficas e historiadores acho imprescindível o mencionado volume Sobre o conceito de história (Editora Alameda).
No próximo sábado, 26, quando se completam 80 anos da morte Walter Benjamin, OP+ publica o segundo episódio deste especial, que mostrará como o pensamento benjaminiano entrou no Brasil.
Walter Benjamin morreu em setembro de 1940. Em 80 anos sua obra plural se consolida no Brasil