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Travessias do pensamento benjaminiano no Brasil
Reportagem Seriada

Travessias do pensamento benjaminiano no Brasil

Livro de pesquisador alemão radicado no Brasil, Gunter Karl Pressler, revela o percurso da obra de Walter Benjamin no País. O escritor cearense José Alcides Pinto foi um dos primeiros no Ceará a recepcionarem a obra do filósofo alemão, no Ceará, no início dos anos de 1970
Episódio 2

Travessias do pensamento benjaminiano no Brasil

Livro de pesquisador alemão radicado no Brasil, Gunter Karl Pressler, revela o percurso da obra de Walter Benjamin no País. O escritor cearense José Alcides Pinto foi um dos primeiros no Ceará a recepcionarem a obra do filósofo alemão, no Ceará, no início dos anos de 1970
Episódio 2
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Quando o livro Benjamin, Brasil chegou às livrarias do País, em 2006, o filósofo Walter Benjamin já era um autor clássico cuja obra reverbera entre o público acadêmico, seja no País, seja no Exterior. No entanto, a obra de Gunter Karl Pressler ilumina essa recepção, relevando as travessias do pensamento de Walter Benjamin no Brasil por meio da sua produção ensaística. Seu autor, Gunter Karl Pressler, havia começado os estudos em Ciências Humanas e Literatura na Alemanha, seu país de origem, e descobrira Benjamin enquanto lia e estudava Marx, Lênin e Trotski.

Walter Benjamin na Biblioteca Nacional de Paris, local onde Georges Bataille escondeu os manuscritos do filósofo alemão durante a ocupação alemã em Paris (Foto: Reprodução: Gisele Freund)
Foto: Reprodução: Gisele Freund Walter Benjamin na Biblioteca Nacional de Paris, local onde Georges Bataille escondeu os manuscritos do filósofo alemão durante a ocupação alemã em Paris

Um título – Swinging Benjamin – e uma capa o atraíram para a obra de Benjamin. “Folheei o pequeno livro de bolso e o impacto foi definitivo. Uma abordagem muito criativa e fora de comum no contexto de estudos acadêmicos”, conta Pressler. O encontro tornou-se decisivo.

 

Capa do primeiro livro de Benjamin lido por Gunter K. Pressler (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Capa do primeiro livro de Benjamin lido por Gunter K. Pressler

No mestrado feito na Alemanha, Pressler já tinha Benjamin como companheiro de estudos na área da filosofia da linguagem, com foco na recepção da obra do filósofo. Quando decidiu fazer o doutorado no Brasil, descobrira que o autor era muito lido no País desde os anos de 1960. Ficou curioso de nunca ter ouvido falar disso no país germânico.

“Percebi, na minha pesquisa de doutorado, entre 1989 e 1995, ampliada e publicada em 2006, que as questões da experiência moderna, da mudança dos meios tecnológicos de reprodução artística, vividas no Brasil moderno, encontraram na obra benjaminiana uma expressão original, atual e de grande valor interpretativo”, afirma o autor que fixou residência no Brasil e é professor de crítica literária há mais de duas décadas na Universidade Federal do Pará.

 

Rua de mão única, de Walter Benjamin
"Ampliações. Criança petiscando"


De acordo com a obra de Pressler – Benjamin, Brasil – o início da recepção do pensamento do filósofo alemão entre os intelectuais brasileiros se deu por meio de um pequeno artigo publicado no extinto Jornal do Brasil, em 1963, no Rio de Janeiro. A obra que havia chamado a atenção do jovem crítico Guilherme Merquior era o ensaio de Benjamin A obra de arte e sua reprodutibilidade técnica, texto que até hoje, segundo Pressler, se mantém como um dos mais lidos no Brasil.

Ao longo dos anos de 1960 e início de 1970, além de Merquior, críticos como Roberto Schwarz, Leandro Konder, Benedito Nunes, Augusto de Campos, Luiz Costa Lima se voltam para a obra de Benjamin. Entre eles, o escritor cearense José Alcides Pinto contribuiu com o debate que insere Benjamin no contexto intelectual brasileiro quando se tornou professor do recém-criado Departamento de Comunicação Social da UFC.

O autor da trilogia da maldição organizou um seminário sobre o pensamento frankfurniano. Pensadores como Adorno, Horkheimer e Benjamin figuram nas discussões. É também de Merquior o primeiro livro publicado no País sobre o filósofo alemão.

 

Para Gunter, “a constatação de que Benjamin é um dos maiores críticos literários da primeira metade do século XX diz muito sobre o próprio crítico brasileiro da segunda metade do século, na altura do debate internacional num país em ‘subdesenvolvimento´”.

Benjamin se estabelece entre os intelectuais brasileiros quase ao mesmo instante em que os militares dão um golpe e se alojam no poder por mais de duas décadas. Nesse período, o filósofo alemão segue adiante. Segundo Pressler, Benjamin passou incólume pelo regime militar pelas características próprias do seu pensamento.

Apesar de os militares terem infringido uma verdadeira caça aos partidos de esquerda no Brasil, Pressler afirma que “não foi tanto uma caça a comunistas´ em geral. Falei no meu livro que muitos intelectuais traduziram e publicaram obras de Marx e outros autores e autoras críticos naquela época”.

Gunter Karl Pressler, professor da UFPA, autor do livro Benjamin Brasil (Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Gunter Karl Pressler, professor da UFPA, autor do livro Benjamin Brasil

Ele complementa afirmando que: “Essa ‘caça’ era mais política do que ideológica, sabemos que questões ideológicas não tem tanta importância num país colonizado. Benjamin não era um comunista partidário, ele era um filósofo radical político, não acadêmico. E sua obra não uma obra de chamar atenção, no sentido político. Uma obra também bastante filosófica e menos ‘prática´”, reforça.

Para traçar o percurso dessa recepção em todo o Brasil e não apenas no Rio de Janeiro e São Paulo Gunter Pressler tinha diante de si dois grandes obstáculos: a ausência de registros bibliográficos e o tamanho do País. “Falta um registro da produção bibliográfica. Na Alemanha, tanto nas bibliotecas quanto nas livrarias, há um registro de tudo que foi publicado em qualquer língua. Isto é uma ilusão no Brasil, por isso, precisava sair de São Paulo e fazer a pesquisa de campo”, revela o pesquisador.

Nos anos de 1980 o caráter fragmentário da obra de Benjamin encontra outros interlocutores, entre eles N. Brissac e Lúcia Santaella. Na transição do século XX para o século XXI, o ensaio O Narrador encontra inúmeros intérpretes no Brasil.

 

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Voz: Karlos Kardoso

 

Crítica ao academicismo

Apesar da alentada produção que envolve a obra do filósofo alemão no País, Pressler critica a vasta “produção” de artigos com fins de publicação no Curriculum Lattes. “Recentemente, li um artigo de um colega benjaminiano que cabia bem na discussão da década de 1990. Hoje é obsoleto, diz nada. Quer dizer, a obra de Benjamin poderia valer, mas falta a competência refletiva e engajamento como está no termo ‘radical´, querendo saber a fundo as coisas, ir na direção vertical”, analisa Pressler.

O pesquisador critica o discurso acadêmico que, para ele, não se traduz em experiência. “O discurso acadêmico é só discurso sem vivência. Melhor se recolher no studium”, afirma. Segundo ele, o discurso é o equivalente ao “escrito” que, em Benjamim se opõe a escrita que é, de acordo com o filósofo alemão de onde vem a “verdade”.

“O escrito é em grande parte reprodução de subjetividades e vaidades de ‘conhecimentos’. A escrita leva em consideração um desdobramento sobre as palavras, tanto oral quanto escrita. As verdades estão na ‘escrita' ou, como diz um pesquisador, na “scriptOralidade”. A palavre sente e soa, o escrito é plano e muitas vezes oco, vazio demais, até dói pelo papel”, sentencia Pressler.

 

Sobre uma enciclopédia mágica

A obra Passagens foi para o alemão Walter Benjamin uma espécie do Em busca de um tempo perdido para o francês Michel Proust: o trabalho de uma vida. Tanto Jeane- Marie Gagnebin quanto Bern Witte, além dos seus inúmeros estudiosos apontam Passagens como uma preocupação constante de Benjamin, manifestada na sua imensa correspondência.

Ao fugir de Paris, em 1940, os manuscritos das Passagens ficaram escondidos na Biblioteca Nacional da França, sob os cuidados do filósofo Georges Bataille, e somente em 1982 a obra foi publicada na França. Daí para cá, a leitura e os estudos sobre esse monumento literário inacabado, edificado sobre citações, aumentam a cada ano.

Willi Bolle com a edição brasileira das Passagens, de Benjamin Bolle(Foto: Acervo pessoal )
Foto: Acervo pessoal Willi Bolle com a edição brasileira das Passagens, de Benjamin Bolle

No Brasil, o livro chegou ao público em 2006 pela Editora da UFMG, organizado pelo professor titular de Literatura da USP, Willi Bolle. Em entrevista ao O POVO, ele conta que durante cinco anos um grupo de tradutores, revisores e alunos de pós-graduação da USP se debruçaram sobre as mais de 1 mil páginas da obra.

A densidade da obra não impediu que a primeira edição, em um único volume se esgotasse rapidamente. Em 2018, saiu uma nova publicação em três volumes. Este ano, quando se completam 80 anos de morte de Benjamin, a UFMG planeja editar novamente o texto em um só volume.

Para Bolle, a recepção de Passagens entre o público brasileiro não surpreendeu. “O Brasil é um dos países com a mais intensa recepção dos textos de Benjamin desde a década de 1960”. Para ele, o texto pode ser lido como “livro”, “arquivo” ou uma “enciclopédia mágica, para usar os termos do próprio filósofo”.

Ao longo de 14 anos, Benjamin deambulou por Paris como um flanêur que se empenha a narrar a história da cidade como um colecionador que reúne, de forma quase obsessiva, cartões postais. Benjamin, no caso, se voltou para as imagens de Paris do século XIX e uma incessante pesquisa de textos sobre a cidade que, para ele, estava sendo destruída pelo presente nazifascismo que imperava na Europa desde o final dos anos de 1920. O livro nunca foi concluído.

Galeria Vivienne, uma das paisagens que o flâneur Benjamin aborda em Passagens(Foto: Foto: David Perdery)
Foto: Foto: David Perdery Galeria Vivienne, uma das paisagens que o flâneur Benjamin aborda em Passagens

Benjamin idealizou uma “dialética do flânerie” que, segundo ele, trazia “de um lado, homem que se sente olhado por tudo e por todos, como um verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente será encontrado, o escondido. É provavelmente esta dialética que se desenvolve em ‘O homem da multidão´”, afirma Benjamin, em Passagens, numa referência ao texto de Edgar Allan Poe.

Até os últimos dias da sua vida, Benjamin trabalhou na enciclopédia parisiense que se tornou objeto de fascínio, atração e densidade para os leitores. Ler Passagens é como se perder numa floresta, encontrar-se e novamente sentir-se perdido. Bolle sugere, então, que o leitor “mergulhe na obra labiríntica das Passagens conforme o seu desejo e intuição”.

Passagens é também considerada uma síntese do trabalho intelectual caleidoscópico de Benjamim. “Nessa obra – ao retratar a história econômica, social, cultural e política de Paris, ‘capital do século XIX` –, o subtexto é a experiência vivida pela geração do próprio Benjamin, ou seja: a passagem da Alemanha imperial, que provocou a Primeira Guerra Mundial, para a República de Weimar, que acabou sendo aniquilada pela ditadura nazista, responsável pela Segunda Guerra Mundial e pelos crimes do holocausto”, analisa o professor Bolle.

Place du Caire, em 1903, citada por Benjamin na obra Passagens (Foto: Foto: Eugène Atget)
Foto: Foto: Eugène Atget Place du Caire, em 1903, citada por Benjamin na obra Passagens

De acordo com o pesquisador, o principal legado da obra de Benjamin, em toda a sua extensão, é que ela “nos estimula a observar a nossa cultura cotidiana, a nossa sociedade, vida econômica e política, e os rumos do nosso país, numa perspectiva internacional”.

Para Willi Bolle o legado da obra benjaminiana tem início com o artigo da adolescência do filósofo “A vida dos estudantes”, escrito quando ele por volta dos 13 anos, passando pelos ensaios que se tornaram clássicos, até obras como Rua de mão única que reúne textos “críticos sobre a vida literária, cultural e política na Alemanha, na França e na União Soviética e se estende até estende até “às Passagens (1927-1940) e as teses 'Sobre o conceito de História´ (1940)”, conclui Bolle.

 

"O Cronista"
Voz: Regina Ribeiro


Passagens, uma luz do presente

Por Abrahão Sampaio *

 

Para se compreender as Passagens é preciso situá-la na qualidade de projeto de pesquisa da fase mais madura do pensamento de Benjamin, como work in progress, ou seja, sua resolução não estava acabada. Seria um erro considerar as Passagens como uma obra no sentido próprio do termo. Sua primeira edição aparece apenas em 1982, editada por Rolf Tiedemman, ou seja, 42 anos após o falecimento de Benjamin.

Abrahão Sampaio, filósofo e professor, é autor de um livro que aborda a obra Passagens de Walter Benjamin (Foto: Foto: Acervo pessoal )
Foto: Foto: Acervo pessoal Abrahão Sampaio, filósofo e professor, é autor de um livro que aborda a obra Passagens de Walter Benjamin

Nesse meio tempo o trabalho alcançou uma reputação mitológica devido ao fato de ser constantemente referenciada por Adorno, que considerava, com razão, ser a prima philosophia de Benjamin.

As Passagens representam um momento importante na obra do autor alemão basicamente por duas razões: pelo encontro com o marxismo, intermediado por Bertold Brecht e Asja Lacis, como pelo adensamento teórico marcado por uma nova configuração, um “estilo fraco” que se distanciava do hermetismo dos textos de juventude. Se há mudança no estilo, não há, por sua vez, alteração nas suas proposições emancipatórias fundamentais. Nesse contexto a categoria do fetichismo da mercadoria de Marx seria mediado por uma exposição imagética.

Benjamin pretendia escrever uma obra sui generis, pois não se tratava apenas de elaborações intelectuais e altos voos teóricos, mas também a possibilidade de reintegrar as imagens históricas à nossa percepção sensível. Por isso o recurso às abundantes citações e à montagem a essa nova forma, imagética, de escrever a história.

Ao focar na Paris do século XIX, Benjamin partia de sua época, ou seja, dos perigos iminentes da ascensão fascista. Assim, Benjamin se propunha erigir uma pedagogia antifascista ao mesmo tempo em que nos propiciava reconhecer o núcleo utópico das ações e aspirações dos vencidos do passado.

Para o crítico alemão, há uma passarela temporal que liga o momento crítico do presente ao malogro dos ocorridos, que o historiador materialista pode captar com sua presença de espírito e a geração presente pode tomar por herança para orientar suas ações. Não à toa, para Benjamin, um mundo redimido de seu passado tornaria todos os seus momentos citáveis e se livraria da má repetição e da amnésia histórica. É o presente que ilumina o passado nessa perspectiva, não o contrário.

Mesmo um leitor não iniciado em Benjamin deve ler Passagens de cabo a rabo. Pode ser desencorajador em uma época de sobrecarga cognitiva e soluções rápidas. Apesar de ser o calhamaço, inclusive de manuseio complicado, recomendo a leitura integral e contínua. Vale a pena.

As Passagens, para o leitor culto, se oferecem como uma constelação, seus fragmentos são intercomunicantes. Apesar do caráter fragmentado, ela se oferta primeiramente à percepção do leitor que a pode, posteriormente, recompô-la em seu quadro intelectual. O leitor das Passagens se comporta forçosamente como escritor, reescreve-a pelos lampejos de imagens que experimenta, rompe com os condicionamentos habituais.

A leitura provoca realmente uma iluminação, uma visão orgânica. Benjamin promove um texto sem hierarquias, por isso surgem tanto textos teóricos de alta complexidade como um anúncio de reclame ou um drapeado de vestido, uma teoria revolucionária e o cenário de prostituição, e assim vai. Claro que algumas chaves facilitam a leitura: as imagens oníricas, as imagens dialéticas, o despertar histórico.

* Abrahão Sampaio, filósofo e professor, autor do livro Imagens em fuga de um mundo em miniatura (Editora Fi, 2018)

 

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